Por João Pedro Stedile

Conheci Brizola quando criança. Ele era governador do meu estado e passou por minha região em atividades politicas. E a camponeisada toda foi vê-lo. Já naqueles idos, era um personagem muito popular, um verdadeiro ícone, que era admirado por muitos e odiado pelas oligarquias.

Na época, estava estudando numa escolinha, que seu governo havia construído em todas as comunidades rurais do estado e que a direita passou a chamar de “Brizoletas”, porque eram todas iguais. O apelido pegou de forma carinhosa. Mas o mais importante é que ele conseguiu universalizar o ensino fundamental por todos os rincões do estado.

Ele sofreu na pele a pobreza e a falta de escola. Órfão desde criança, sua mãe pediu ajuda para amigos para ele poder estudar na cidade, e depois fazer o colegial agrícola de forma de internato em Viamão. O colégio agrícola é famoso até hoje por ter tido Brizola como seu aluno. Estudioso, conseguiu entrar no elitista curso de Engenharia Civil da UFRGS. Deve ter sido o primeiro pobre a se formar engenheiro no Rio Grande. E do movimento estudantil migrou rapidamente para as atividades politico-partidárias.

Foi por descobrir que só o conhecimento e a educação liberta verdadeiramente as pessoas e pode enfrentar a pobreza, que ele mesmo viveu, que passou a aplicá-la como politica publica no Rio grande do Sul e no Rio de Janeiro. E, graças a essa visão, fui um dos beneficiários.

Jovem sabido e ousado, se elegeu em 1956, o mais jovem prefeito de Porto alegre, pelo trabalhismo, e, dois anos depois, foi eleito o mais jovem governador do Rio Grande do Sul, com seus trinta e poucos anos.
Mais tarde, quando cultivei amizade com ele, vivendo no Rio de Janeiro, um dia nos contou sobre sua vida como governador e de que gostava de utilizar feriadões para pegar uma camionete e, sem segurança, com a esposa e seus filhos, acampar em alguma fazenda ou próximo aos rios, para descansar e pescar. Que governador faria isso agora?

No governo, implantou politicas públicas revolucionárias para a época e para os dias atuais, o que me leva a concluir que até hoje foi o único governo realmente de esquerda que tivemos em toda história do País. Brizola universalizou o ensino fundamental para todo povo gaúcho, o que permitiu um salto de qualidade e na cultura, e abriu as portas para que os jovens da classe trabalhadora depois ascendessem ao ensino médio e superior, como ele sonhava.

Criou a siderúrgica rio-grandense, uma empresa estatal, preocupado com a indústria de base. Desapropriou a cia telefônica ITT, e como estatal disseminou a telefonia por todo estado. Criou uma estatal do leite, a CORLAC, para garantir mercado a todos camponeses produtores de leite do estado.

Antes que tivéssemos uma lei nacional de reforma agrária ou políticas fundiárias, ele criou o instituto gaúcho de reforma agrária (IGRA) para organizar a desapropriação de terras improdutivas para agricultores sem terra. E sabia que a reforma agraria não era apenas uma vontade política, mas dependia da capacidade de organização dos trabalhadores do campo. Por isso, deu todo apoio, ao nascente MASTER (Movimento dos Agricultores Sem Terra), que era impulsionado pelo PTB e que organizava acampamentos na beira das fazendas improdutivas.

A maior delas se transformou em um ícone da luta pela reforma agraria em todo País: a fazenda Sarandi. Tinha 24 mil hectares de terras férteis no município que lhe empresta o nome e era propriedade de latifundiários uruguaios, os Mailios, que se interessavam apenas pela exploração dos pinheirais.

Brizola não teve dúvida e, com sua lei estadual, desapropriou a fazenda Sarandi, distribuindo a terra para centenas de famílias de sem terras da região.

Essa prática se repetiu em outras terras de Viamão, Encruzilhada do Sul, etc. Brizola ficou conhecido nacionalmente como o implementador da primeira reforma agrária do País.

Em agosto de 1961, o governo Kennedy, preocupado com a influência da revolução cubana, com o estado de atraso econômico do continente e a possibilidade de outras revoluções eclodirem, organizou uma reunião continental em Punta del Leste, convocando a todos governos para que enviassem seus principais ministros para discutirem a reforma agrária. De Cuba, foi nada menos que Ernesto Che Guevara. Jânio Quadros, astuto, percebendo a jogada dos americanos, pediu então para que representassem o seu governo Celso Furtado e o governador gaúcho, que aceitou prontamente. Neste encontro, Brizola conheceu Che e conversaram muito sobre o futuro do povo latino-americano.

Brizola se preocupou também com a agricultura familiar gaúcha. E organizou outro instituto, o IRGA, para fomentar e apoiar o desenvolvimento do arroz. Criou um programa gaúcho para disseminar a produção de trigo, em que quase chegamos a ser autossuficientes nacionalmente, e estimulou modernas técnicas de mecanização e do uso do calcário nos solos pobres. Criou várias estações experimentais e colégios agrícolas estaduais, esparramados pelo estado, aonde se apreendiam as técnicas modernas e a mecanização. Tendo ele estudado num colégio agrícola, sabia de sua importância para os jovens pobres do campo.

Estavam criadas as bases para termos uma poderosa agricultura produtora de alimentos sob a forma de agricultura familiar, que o Brizola chamava da “turma dos colonos”. Ou seja, tinha uma visão de desenvolvimento econômico e social para gerar riqueza que beneficiassem a todo povo.

Leonel de Moura Brizola foi engenheiro civil e político brasileiro. Considerado um líder da esquerda e um político nacionalista, foi governador do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, sendo o único político eleito pelo povo para governar dois estados diferentes em toda a história do Brasil (Wikipédia)

Nas escolas publicas, garantia calçado, uniforme, cadernos e lápis para cada aluno. Nunca mais esqueci que estava na capa do caderno a figura e a história do lendário líder guarani Sepé Tiaraju, assassinado pelos exércitos espanhóis e portugueses na guerra de 1756. E lá estava a frase de Sepé: “Essa terra tem dono!” Mais tarde, apreendi que foi mal traduzida do guarani, que não tem a palavra dono ou propriedade. Na verdade, Sepé quis dizer que aquele território era do povo guarani. Brizola conhecia a resistência heroica dos guaranis e estimulou que as crianças conhecessem.

Na política, consagrou-se nacionalmente por sua coragem. Em agosto de 1961, com a renúncia de Jânio Quadros, peitou a direita e os milicos, e defendeu a Constituição para garantir a posse do vice, João Goulart. A direita não queria. Era o prenúncio do golpe.

Brizola não teve dúvida, organizou um poderoso movimento de massas em defesa da “legalidade”, ou seja , da Constituição. Foram semanas de intensa luta politica e ideológica com as massas. Organizou a resistência no porão do Palácio Piratini, onde instalou os estúdios da Rádio Farroupilha, de onde transmitia mensagens diárias orientando o povo. Eu estava estudando numa Brizoleta e a professora interrompia a aula quando entrava no ar a palavra do governador e toda criançada escutava em silêncio sepulcral. Quando chegávamos em casa, era comentário de toda família o que Brizola tinha dito no rádio!

Os porto-alegrenses acamparam na frente do Palácio, armaram barricadas por toda cidade. Diante da atitude do povo e do governador, a Brigada Militar, a policia estadual gaúcha, e o 3º Exército aderiram ao movimento da legalidade. Aviões da base aérea de Canoas chegaram a sobrevoar ameaçadoramente o Palácio, até que o movimento dos sargentos os impedisse de alguma aventura.

Diante do impasse, Brizola anunciou corajosamente que, se a direita não recuasse e garantisse a posse, as tropas e o povo gaúcho iniciariam em dias uma marcha rumo a Brasília, repetindo o que Getúlio Vargas fizera em 1930 em direção ao Rio de Janeiro.

Mas o desenlace foi mais um acordão por cima. E o PTB aceitou a fórmula de posse do vice como presidente respeitando a Constituição, mas impondo, ilegalmente o parlamentarismo. Prontamente, Tancredo Neves se cacifou como primeiro ministro. Brizola aceitou, pois sabia que, apesar de parcial, tinha sido uma vitória politica fantástica do povo gaúcho e com isso brecara o golpe.

Mais tarde, ajudou a articular a convocação do plebiscito popular que revogou o parlamentarismo e devolveu amplos poderes ao presidente Goulart.

Preocupado com a onda direitista e a influencia dos interesses estadunidenses nas forças armadas e na politica nacional, Brizola idealizou a necessidade de organização da base social do trabalhismo, em núcleos de 12 pessoas para atuarem na clandestinidade e organizarem as atividades políticas de organização da classe trabalhadora e sobretudo na agitação e propaganda. A ideia se disseminou como um rastilho de pólvora e se organizaram milhares de “grupos dos 12”, sobretudo no Rio Grande do Sul e na região Sul.

O uso da rádio como instrumento de conscientização das massas foi uma descoberta que Brizola passou a utilizar com frequência. Suas locuções eram verdadeiras aulas didáticas de política que a massa acompanhava com impressionante atenção.

Depois de 1962, migrou para o Rio de Janeiro, onde se elegeu o mais votado deputado federal da República. E organizou no parlamento a luta em defesa do governo Goulart, mas agora, não conseguiu impedir a sanha golpista que se realizou dia 1º de abril de 1964.

Triste, teve que amargar o exílio no Uruguai. E os “grupos dos 12” foram os mais perseguidos pelo golpe. Muitos deles, conhecidos, foram presos, torturados e alguns correram para o exílio aproveitando nossas fronteiras secas com Uruguai e Argentina.

Quando o ex-governador Leonel Brizola lembrava a necessidade de existir também uma “democracia econômica”, utilizava esta expressão para propor ênfase na inclusão social. Outra leitura desta mensagem é que, em uma democracia, não só o voto consciente é direito de cada cidadão, mas três pratos de comida ao dia também são. (Foto: Reprodução)

De lá, ainda tentou organizar uma resistência, até armada, mas a hegemonia politica e a força bruta se instalara em todo País. Viveu o exílio, com um verdadeiro luto eterno. Com saudades de seu povo e da luta, Goulart não conseguiu. E morreu no exílio. Durante a ditadura empresarial-militar de 1964-84, os dois líderes mais temidos e odiados pelos milicos direitosos eram o Luís Carlos Prestes e Leonel Brizola.

Primeiro, foi beneficiado pelas mudanças na política norte-americana no governo Carter, que teve atitudes contra as ditaduras militares que eles tinham apoiado, e com isso representou um respaldo também para a Lei de Anistia e a volta do Brizola em 1979.

Havia um entusiasmo muito grande no povo pela volta do Brizola. Lembro, andando pelas estradas do interior, que os crentes das igrejas evangélicas escreviam nas paredes e placas das rodovias“ Jesus Cristo vem aí!”, e aí a turma brizolista acrescentava embaixo: “E Brizola já chegou!”

Brizola imaginava reorganizar seu velho PTB e a vida partidária. Por isso, instalou-se diretamente no Rio de Janeiro. Mas não contava com as astúcia da raposa do general Golbery, que tinha desenhado uma abertura controlada. E entregou a sigla do PTB para a direitista Ivete Vargas, amiga dos milicos. Com isso quebrou a mística do trabalhismo e Brizola teve que refundar como Partido Democrático Trabalhista (PDT).

Amargou mais duas derrotas institucionais. Perdeu a sigla que tanto sonhara e perdeu parte de seus companheiros que preferiram ficar no MDB e não segui-lo.

Disputou então o governo do Rio. E venceu. Mas o então Serviço Nacional de Inteligência, hoje ABIN, sob controle militar tentava de qualquer maneira impedir sua vitória e estava fraudando os boletins que eram somados por computadores. Uma soma paralela de imprensa impediu o golpe dos serviços de inteligência. E a vitória era tão contundente, que eles não conseguiram enganar o povo. Brizola teve que ser empossado.

No Rio, tentou implementar de novo políticas publicas revolucionárias a favor do povo. E cercou-se de grandes sábios como Oscar Niemeyer, Darci Ribeiro, Nilo Batista, entre outros, e passou a redesenhar o estado. E a marca de seu governo foi de novo, a educação, com a implantação dos CIEPS, que garantiam ensino fundamental e médio, em, tempo integral de forma gratuita, com todos os instrumentos pedagógicos possíveis a todos jovens do estado, em especial os que viviam nas periferias.

Em 1989, disputou as eleições presidenciais, quase chegou ao segundo turno, mas perdeu pelo novo reascenso do movimento de massas que brotou da luta contra a ditadura e que havia criado o PT, a CUT, o MST como uma nova geração de lutadores. Nas eleições seguintes, voltou a ser governador do Rio e chegou a ser candidato a vice do Lula.

E, quem sabe, uma de suas últimas vitórias foi ter conquistado na Justiça o direito de resposta no Jornal Nacional, em que o Cid Moreira teve ler uma nota escrita pelo Brizola, em que denunciava o papel manipulador da Globo, que ajudou a dar o golpe de 1964 e se beneficiou dele para construir um império midiático ate hoje.

Grande Brizola, foi uma figuraça, um estadista, um homem comprometido com seu tempo e com o povo brasileiro. Fazem faltas figuras publicas desta tradição.

JOÃO PEDRO STEDILE – Economista e dirigente nacional do MST

Publicado inicialmente no Sul21. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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