Por Jeferson Miola –
No exercício do mandato, Bolsonaro foi denunciado pela prática de inúmeros crimes – não só de responsabilidade, como também crimes comuns. Ele coleciona uma extensa ficha corrida de ilícitos tipificados em vários artigos do Código Penal brasileiro.
Além dos crimes praticados no cargo, Bolsonaro ainda terá de enfrentar a retomada de investigações e processos relativos a outros ilícitos cometidos previamente ao mandato, como lavagem de dinheiro, corrupção ativa, enriquecimento ilícito, peculato [a chamada “rachadinha”], envolvimento com milícias.
Bolsonaro também foi denunciado em tribunais internacionais pelo cometimento de crimes contra a humanidade e de genocídio.
Devido, contudo, a decisões monocráticas dos presidentes da Câmara dos Deputados na atual legislatura, Bolsonaro se safou de responder por todas as graves denúncias; ficou protegido por uma impunidade ilegalmente concedida a ele.
No biênio 2019/2020 o deputado Rodrigo Maia engavetou dezenas de denúncias contra Bolsonaro. Maia estava mais interessado em “aproveitar a janela de oportunidades” para concretizar os desajustes ultraliberais anti-povo, como na previdência social, do que em preservar a democracia da devastação promovida por um criminoso.
No biênio 2021/2022 o notório colaboracionista do fascismo Arthur Lira, sucessor de Maia na presidência da Câmara, sentou em cima de outras dezenas de denúncias, uma mais grave que a outra.
O preço pago pelo governo militar para comprar a impunidade foi alto. Lira foi aquinhoado com o bilionário e corrupto “orçamento secreto”. Em troca, mostrou uma fidelidade canina e garantiu a cumplicidade incondicional com os crimes não só do Bolsonaro, como também de outros agentes do governo, inclusive das cúpulas militares.
Devido à blindagem férrea de Bolsonaro na Câmara, o STF ficou impedido de julgá-lo e de condená-lo por crimes comuns; do mesmo modo que o plenário da Casa teve sequestrado o direito de deliberar sobre mais de uma centena de pedidos de impeachment.
Tanto Maia como Lira, pelas alegações específicas de cada um, abusaram das prerrogativas do cargo e debilitaram a democracia ao protegerem um criminoso na presidência do Brasil. Ambos engavetaram denúncias fundamentadas e com objeto determinado. Procederam de maneira absolutamente oposta, portanto, à postura adotada por ocasião do impeachment fraudulento e farsesco da presidente Dilma.
Depois do trauma profundo vivido pela sociedade brasileira com as rupturas, violências e golpes, seria fundamental uma justiça de transição para a restauração da democracia, da coesão nacional, da reconciliação e da paz.
No bojo de um processo de justiça de transição, violadores e perpetradores de crimes – como Bolsonaro, agentes públicos e, também, particulares – seriam processados segundo o devido processo legal e, comprovadas as culpas, punidos e presos.
Esse é um remédio essencial para fortalecer as instituições, a justiça e a democracia no pós-trauma; é um recurso pedagógico para evitar que atrocidades voltem a se repetir de ciclos em ciclos, o que sempre acontece quando criminosos se sentem encorajados pela impunidade, por anistias ou por esquecimentos.
Nas circunstâncias atuais, entretanto, lamentavelmente a tendência é de que a sociedade brasileira, mesmo profundamente traumatizada pelo fascismo, mais uma vez não promova uma justiça de transição que lhe permitiria projetar um horizonte de futuro sem a repetição de novas barbáries e horrores.
O mínimo que se espera do judiciário brasileiro, no entanto, é que adote os procedimentos normais e corriqueiros da justiça e investigue, processe e, quando pertinente, condene Jair Bolsonaro pelos graves crimes cometidos contra o povo brasileiro, a República e a democracia.
Bolsonaro e sua horda fascista são incompatíveis com a democracia. É um equívoco perigoso aceitar manifestações fascistas que atentam contra a democracia como liberdade de expressão. A aceitação e a naturalização destes segmentos assumidamente criminosos como sinal de tolerância democrática é um erro tremendo, que pode se mostrar fatal à própria democracia.
A trajetória do Bolsonaro na política nacional deveria ter sido abortada desde o princípio, quando ele se iniciou na carreira terrorista planejando jogar bombas-relógio para explodir instalações militares. Ao invés da expulsão do Exército, no entanto, o promoveram a capitão.
Na condição de deputado profissional durante 28 anos, Bolsonaro ofendeu povos originários, agrediu mulheres, defendeu a ditadura e a tortura, enalteceu torturadores sanguinários e preconizou o assassinato de adversários políticos, a quem sempre tratou como inimigos a serem aniquilados.
Se ainda faltava algum motivo para cassar Bolsonaro e bani-lo da vida política e democrática do país, o voto dedicado ao coronel assassino Brilhante Ustra na votação do impeachment fraudulento da Dilma seria suficiente para isso.
Mas, ao invés de ser cassado, ele acabou premiado pelas cúpulas militares com a cabeça da chapa militar na eleição fraudada de 2018 com o impedimento do Lula.
Bolsonaro terá de ser julgado pelos seus crimes. Julgar Bolsonaro de acordo com as Leis e a Constituição é um imperativo democrático, e seu julgamento é uma obrigação inarredável da justiça na democracia.
A partir de 1º de janeiro de 2023 Bolsonaro estará livre para responder nos tribunais brasileiros e, também, nos tribunais internacionais, “no tocante” aos crimes de genocídio e contra a humanidade, pelos quais existem denúncias formalizadas.
Não se trata de justiçamento, de espírito de vingança ou de qualquer sentimento moral mesquinho que não exclusivamente a defesa da justiça e da democracia.
Ninguém defende que Bolsonaro seja decapitado e tenha partes do seu corpo pendurados em vias públicas, como aconteceu com Mussolini na Itália de 1945; mas ele precisa ser processado dentro do devido processo legal e responsabilizado pelos seus crimes.
É desse modo que procedem sociedades civilizadas e democráticas.
JEFERSON MIOLA – Jornalista e colunista desta Tribuna da Imprensa Livre. Integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), foi coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial.
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