Por José Carlos de Assis

O verniz ideológico dos porta-vozes do mercado financeiro não pode continuar, portanto, recobrindo diferenças brutais e reais na sociedade.

O verniz aparentemente científico com que os porta-vozes do mercado financeiro propagam através da grande mídia sua ideologia privatista não passa de defesa de interesses próprios. São todos figuras riquíssimas que se tornaram prósperas na base da especulação. Não há ciência verdadeira em suas afirmações, mas simples ideologia. Quando alegam que “o governo não pode gastar mais do que arrecada”, simplesmente negam ao povo o direito de apoio estrutural do Estado para revindicarem seu próprio “direito” a privilégios.

Não vou me ater hoje a outras barbaridades da mesma matriz, como “superávit primário”, “teto de gastos”, “regra de ouro” ou “art. 166 da Constituição”, todas direcionadas para cortar despesas orçamentárias que caracterizam a política fiscal-monetária brasileira como uma verdadeira trava ao desenvolvimento econômico e social do país. Não vou apontar distorções fiscais e financeiras a favor dos ricos. Vou fazer outra coisa. Vou apenas mostrar como nossa política fiscal-monetária é pura ideologia dos ricos, sem qualquer base científica.

Voltando ao ponto acima, o mantra dos fiscalistas é dizer que, se o governo gastar mais do que arrecada, haverá desequilíbrio da economia, instabilidade do mercado financeiro, desconfiança dos investidores em relação aos gastos excessivos do governo. Isso prejudicaria o desenvolvimento econômico e, por fim, os próprios pobres, conforme eles tentam convencer o presidente Lula do imperativo da austeridade fiscal. Isso é verdade comprovada por fatos ou será apenas ideologia interesseira?

Digamos que haja uma situação inversa. Nem todas as economias estão sujeitas a instabilidades financeiras provocadas por governos. Outros fatores influem. Guerras (como atualmente), quebras de safras, desequilíbrios em cadeias produtivas (é o que também ocorre no momento), entre vários outros. Esses são fatores da economia real, não de sua expressão meramente financeira. Para reverter suas consequências, é necessário que o governo, quase sempre, precisa de “gastar mais do que arrecada”. E não necessariamente isso resulta em desequilíbrio econômico e inflação.

Luiz Inácio Lula da Silva, e o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, durante reunião com parlamentares das bancadas aliadas na sede do governo de transição no CCBB. (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Tais políticas se chamam “anticíclicas”. São conhecidas dos economistas há séculos, menos, aparentemente, por Armínio Fraga, Pedro Malan e Edmar Bacha, que escreveram uma carta para Lula há dois dias tentando convertê-lo ao fiscalismo. Esses três estão focados em aspectos financeiros, filtrados por suas próprias carteiras de aplicações no mercado de títulos e de ações. Entretanto, no curto prazo, tais carteiras não têm nada a ver com a economia real. Flutuam segundo expectativas, não fatos. E o longo prazo, por outro lado, não passa de uma sucessão abstrata de curtos.

É aí que entra a “ideologia”, colocada a serviço da especulação.

É preciso construir uma “história”, onde os elementos se encadeiam de forma lógica, porém não realista, para convencer os ingênuos e trouxas. Se eu afirmo que quando o governo “gasta mais do que arrecada” ele comete uma irresponsabilidade fiscal, e relaciono irresponsabilidade fiscal com instabilidade financeira, faço apenas um raciocínio circular abstrato que não tem onde apoiar-se concretamente em lugar algum. Ou seja, a instabilidade pode vir de outra origem, não do gasto público.

Mais do que isso. Não há prova objetiva de que o desequilíbrio fiscal oriundo de gastos superiores a receitas sempre provoque desequilíbrio de qualquer ordem na economia real. Tudo depende de onde são aplicados os gastos. Se são produtivos, e portanto resultam na ampliação da oferta de bens e serviços no mercado real, não têm razão por que resultar em inflação que responde a aumento da demanda real. Em outras palavras, havendo investimento público produtivo em relação a pressão da demanda, não haverá desequilíbrio econômico porque a oferta aumentará.

Convertidos à defesa hipócrita dos pobres, Armínio, Malan e Bacha, capturados numa armadilha histórica entre a barbárie de Bolsonaro e os compromissos sociais de Lula, recorrem a argumentos falaciosos para preservarem seus privilégios nos bolsões de riqueza em que se meteram muitos tecnocratas dos governos anteriores, cevados na especulação financeira. Agora, porém, os tempos são outros. As classes dominantes abusaram de seu poder de ignorar os pobres. Terão que considerar os interesses comuns, como os climáticos e os de segurança coletiva, acima e à margem de “ideologias”. Nesse contexto, Lula já deu seu recado: não será um “mito” fabricado em favor do mercado. Diferentemente de Bolsonaro, assume o papel de uma personagem de carne e osso comprometida efetivamente com os interesses de todo um povo.

O verniz ideológico dos porta-vozes do mercado financeiro não pode continuar, portanto, recobrindo diferenças brutais e reais na sociedade, como as mencionadas acima. Desde os anos 70 eu costumava ouvir uma advertência do tipo: um dia a favela vai descer! Bem, ela está descendo. E não é apenas para dançar no carnaval, mas para fazer cobranças. Se Lula se coloca numa posição de responder a essas cobranças, e se houver um mínimo de colaboração por parte das classes dominantes, todos deveriam ficar satisfeitos: os ricos deveriam mandar seus porta-vozes, e os jornalões que lhes dão espaço, se calarem.

E a sociedade viverá num clima de cooperação, e não de especulação desenfreada, onde bilhões de reais são movimentados por dia para não se produzir um único prego!

JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política; Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964; Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro; Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica. Autor de “A Era da Certeza”, que acaba de ser lançado pela Amazon. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

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