Por Luiz Carlos Prestes Filho –
Para o engenheiro civil, Humberto Lemos, presidente do Sindicato dos trabalhadores em Saneamento e Meio Ambiente do Rio de Janeiro (Sintsama-RJ): “Água não é mercadoria. Onde foi privatizado o serviço piorou e as tarifas aumentaram. Quem perde é a população mais pobre, que não terá como pagar as altas tarifas.” Trabalhando há 34 anos como funcionário concursado da CEDAE, ele denuncia:
“O governo Bolsonaro publicou o decreto nº10.329, de 28 de abril de 2020, que excluiu o saneamento como serviço essencial. Um crime contra o povo!”
Prestes Filho: Em quais países a administração dos serviços de água e esgoto é 100% estatal? O mesmo é eficiente? Quais indicadores podem ser destacados?
Humberto Lemos: Depois de um período de privatizações, principalmente com o avanço do neoliberalismo na década de 1990, a luta pela retomada dos recursos naturais, como a água, ganhou força. Pois o que se viu foi que a qualidade do serviço prestado pelas empresas privadas era péssima e o valor cobrado aumentou fortemente, deixando muitas pessoas sem condições de pagar pela água. Nos Estados Unidos, cidades como Atlanta, Los Angeles e outras reestatizaram o controle público da água. Na Europa, cidades como Paris (França), Berlin (Alemanha), Budapeste (Hungria) e muitas outras a água também voltou para o controle dos governos a favor do povo. Na América do Sul, vários municípios da Argentina, Bolívia e Uruguai também retomaram a água. A mesma coisa ocorreu na África e Ásia. Em 2017, na Encíclica Laudato Si, o Papa Francisco afirmou que “enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado. Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável”. Essa é uma luta que precisa ganhar mais a sociedade.
Já está claro que onde foi privatizado, o serviço de água ficou pior e com tarifas mais caras. Mas com a resistência da população podemos barrar este processo.
Prestes Filho: A legislação de proteção das nascentes, das margens dos rios e das praias nos levam ao reinado de Dom João VI. A visão dele foi estratégica?
Humberto Lemos: Já naquela época, o fornecimento de água era uma questão a ser resolvida. A chegada da Família Real, em 1808, ampliou o problema, tanto na obtenção dessa água, como na distribuição e no despejo dos dejetos. Naquele momento já se entendia que a falta de água, assim como o não descarte correto dos dejetos eram motivos de doenças. Foi preciso então realizar esse controle e aumentar a rede de abastecimento de água para uma cidade que crescia rapidamente. A importância do rio Carioca – que abastecia a cidade – era tão grande que havia uma legislação ambiental especial, de modo a proteger as águas que seriam usadas pela população, bem como a mata que as circundava. A proteção das nascentes é vital para a preservação da água, para que possa chegar a todas as pessoas. O uso precisa ser controlado, assim como preservado para que não sofra contaminação. Até mesmo para que o dano seja reversível, principalmente diante de uma crise hídrica que vivemos nos últimos anos. Não podemos ficar parados, assistindo que nossos reservatórios fiquem cada vez mais vazios, sem nenhuma medida tomada.
Prestes Filho: A legislação que garante o pleno funcionamento dos serviços de água e esgoto no Brasil está atualizada?
Humberto Lemos: O governo Bolsonaro publicou o decreto nº10.329, de 28 de abril de 2020, que excluiu o saneamento como serviço essencial. Mais um crime contra o povo! O serviço da Cedae é tão essencial que as trabalhadoras e os trabalhadores estão na linha de frente na prevenção a saúde e da qualidade de vida do povo do Rio de Janeiro. É a água tratada e de qualidade que impede várias doenças e a proliferação do vírus.
Prestes Filho: A legislação que estabelece o monopólio na administração dos serviços de água e esgoto no Estado do Rio de Janeiro é robusta? A mesma foi enfraquecida nos últimos anos?
Humberto Lemos: Não existe um monopólio da Cedae. A questão é que a água deve ser vista como um bem público. Os municípios têm grande responsabilidade. A companhia tem convênios de esgoto com apenas dois municípios: Rio de Janeiro e Itaperuna. Mesmo assim, no Rio, há exceção em relação às favelas e à Área de Planejamento 5, na Zona Oeste. Em 62 cidades não tem convênio, mas querem colocar nas costas da Cedae uma responsabilidade que é dos municípios. Além disso, ninguém fala das indústrias que jogam seus rejeitos impuros direto nos rios. Ao longo de décadas a Cedae vem abastecendo a população do Rio de Janeiro com água de boa qualidade, graças aos serviços prestados pelos seus funcionários (técnicos, engenheiros e demais trabalhadores e trabalhadoras). Há anos, esses profissionais recebem uma água de péssima qualidade vinda do Guandu e transformam em água potável para a população consumir. Essa água é distribuída para a grande maioria do povo do Rio de Janeiro e comunidades (onde moram cerca de três milhões de pessoas). A água tratada na Cedae, ao chegar às comunidades, tem ajudado na prevenção das doenças hídricas, como hepatite, cólera, diarreia e tifo, entre outras, evitando a superlotação dos hospitais por esses motivos. A água na Estação de Tratamento do Guandu já chega extremamente mal tratada por conta da poluição que ela recebe ao longo do percurso do rio. A poluição também vem dos afluentes do rio Guandu, como o rio Ipiranga, rio Queimados, rio Poços e outros. Essa poluição é gerada pelas fábricas, indústrias, loteamentos e lixões irregulares localizados nas margens de todos esses rios. Além disso, o rio Paraíba do Sul também está poluído pelos mesmos motivos.
O governo do Estado, com o governo Federal, tem a obrigação de tratar os mananciais para garantir uma água de qualidade para a população. Há um projeto já aprovado para fazer o desvio de parte da água desses rios (rio Poços, rio Queimados e rio Ipiranga) para que não chegue ao Guandu, obra até hoje não realizada pelo governo do estado.
Prestes Filho: Porque falta saneamento básico em todas as cidades do Estado do Rio de Janeiro?
Humberto Lemos: A Cedae atende com qualidade milhões de pessoas, mantém uma tarifa social acessível para a população. Por ser pública, a Cedae pratica o subsídio cruzado, ou seja, o rendimento que a companhia recebe das regiões mais ricas são aplicados no saneamento das regiões mais carentes. A Cedae é uma empresa pública que fortalece o Estado do Rio. Em 2018, foram mais de R$ 800 milhões para o governo, em 2019, mais de R$ 1 bilhão, sendo repassados para os cofres do Estado cerca de R$ 400 milhões. A Revista Exame concedeu a Medalha de Ouro para a Cedae, como a melhor empresa de infraestrutura do Brasil.
A ETA Guandu é a maior estação de tratamento de água do mundo em produção contínua.
Prestes Filho: Desde o início da década de 1990 o Brasil assiste uma onda de privatização de serviços e empresas que historicamente desempenharam papel relevante na História do desenvolvimento econômico e social do país. Esta onda agora deseja levar a Cedae. Quais podem ser as consequências de imediato? Existe transparência nos encaminhamentos legais de privatização da Cedae?
Humberto Lemos: Privatizar é um crime contra a população. Água não é mercadoria. Onde foi privatizado o serviço piorou e as tarifas aumentaram. Quem perde é a população mais pobre, que não terá como pagar as altas tarifas. O Sintsama-RJ está de olho e espera que os próximos prefeitos tomem uma atitude correta e garanta a presença da Cedae pública, com debates democráticos, com ampla participação da população e que defenda a água e o saneamento públicos. Quem quer privatizar usa sempre a mesma fórmula, tenta sucatear a empresa, não faz investimentos, nem concurso público. Lança inverdades na imprensa e tenta jogar a população contra a companhia pública. O Instituto Trata Brasil, que se traveste de isento, na verdade é um grupo de empresários com único interesse em abocanhar as empresas públicas como a Cedae. Não caímos neste conto! Querem privatizar, mas não investir. Querem continuar contando com os recursos públicos, do BNDES. Basta ver trens e metrôs.
Privatizaram a bilheteria, enquanto isso o Estado continua tendo que comprar os vagões. Quantas novas estações foram construídas por essas empresas privadas? Nenhuma!
Prestes Filho: Quais seriam as alternativas para modernização da Cedae como empresa pública?
Humberto Lemos: Para fortalecer a Cedae e ampliar seu atendimento de qualidade, é preciso realizar concurso público para todas as áreas da companhia; reduzir a participação das empresas terceirizadas para melhorar o serviço prestado à população; ampliar a universalização do serviço de água e esgoto em todo o estado, inclusive Baixada Fluminense, Interior e comunidades; aprovar na Assembleia Legislativa (Alerj) uma política estadual de saneamento, que cria o controle social da Cedae pública, envolvendo a sociedade civil, prefeituras e o Estado.
Prestes Filho: Qual a possibilidade dos funcionários e consumidores fazerem valer os interesses públicos na administração de água e esgoto, desprezados pela elite política e empresarial?
Humberto Lemos: Estamos diante de um governo federal que vem retirando os direitos dos trabalhadores e atacando as entidades que os representam. E ainda com uma pauta de privatizações das empresas estratégicas, entre elas as companhias de saneamento, como a empresa de águas de Alagoas, recentemente privatizada e comprada pela Brookfield (BRK). Essa privatização já ocorreu dentro do novo marco regulatório privatista sancionado pelo governo federal. A Cedae tem sido alvo permanente desses privatistas. A luta contra a venda da companhia é a nossa principal bandeira de resistência no Estado do Rio de Janeiro. Não é por acaso que o Sintsama-RJ não tem poupado esforços para realizar uma ampla campanha de mídia para denunciar os males da privatização, com anúncios em rádio; Busdoor; Outdoor e propaganda nos jornais. Para este ano, vamos retomar as grandes manifestações, mobilizando a sociedade, principalmente os moradores das favelas, que serão duramente atingidos com a privatização da Cedae a partir do aumento do valor da água.
Em 2021 também vamos manter a pressão na Alerj para que os deputados possam impedir esse crime contra o povo do Rio de Janeiro. Já passamos por muitas lutas e não será agora que vamos entregar nosso bem público que é a água.
LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).
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