Redação –
Um HC do início do século 20 e o arbítrio estatal no combate à febre amarela.
Rio de Janeiro, 1904. A nascente República se via às voltas com epidemias de todas as ordens, tanto mais no Distrito Federal daqueles tempos. Entre a imposição de um discurso científico-higienista e uma população cética quanto à possibilidade de que uma orquestração das autoridades pudesse estancar sangrias, estava o senhor Manoel Furtunato de Araujo Costa.
Foi em nome dele que o advogado Pedro Tavares Júnior interpôs um Habeas Corpus preventivo no Supremo Tribunal Federal. O objetivo era evitar a prisão do senhor Costa, já que ele se recusava a obedecer a um ilegal comando sanitário.
É bem verdade que a capital federal se recompunha de mais um surto de febre amarela: em 1903, a doença transmitida pelo mosquito levara à morte 584 pessoas. Oswaldo Cruz era o diretor geral de Saúde Pública, nomeado pelo presidente Rodrigues Alves [1902-1906] — o mesmo que, eleito em 1918 mais uma vez ao cargo da magistrado maior da nação, deitou-se “espanholado” na cama para não mais acordar. Tragédias de uma platônica República. A gripe espanhola matara depois da Primeira Guerra Mundial cerca de 30 mil brasileiros.
Segundo a exordial escrita à mão, o senhor Oliveira Borges, inspetor do serviço sanitário, desembarcou no bairro do Rio Comprido. O objetivo seria expurgar um caso de febre amarela, que lá teria se dado havia três anos. Feita a visitação ao distrito, o servidor, no dia 17 de janeiro, ordenou que se apregoasse uma intimação à porta da residência do senhor Costa, à casa C2 da rua Dona Eugênia.
Português naturalizado brasileiro, Costa, ao tempo do Império, “colaborou com a propaganda republicana”. É o que narra a petição. “Do que deve estar muito arrependido”, alfinetou dr. Tavares Júnior.
A intimação determinava que o senhor Costa, às 10h do dia seguinte, deixasse seu lar aberto às autoridades, para que estas pudessem proceder ao “expurgo” dos mosquitos.
Boa fortuna não tiveram os agentes sanitários, pois Araújo Furtunato Costa não os recebeu, talvez por desconfiar do arbítrio da medida estatal. Ou então simplesmente por não querer que sua residência ficasse por dias inabitável.
Ante a recusa de Costa, nova intimação foi expedida, desta vez com a ameaça da sanção pretensamente legal: multa de 200 réis ou prisão de oito dias a um mês, além de manejo do aparato policial para que a operação sanitária pudesse ser realizada.
É que a medida estava prevista por um decreto (Decreto 5.156/1904), cujo artigo 172 assim rezava:
Ordenada a desinfecção pela autoridade sanitaria, ninguem poderá della eximir-se nem embaraçar ou impedir sua execução, sob pena de multa de 200$ ou prisão por oito dias a um mez, devendo o inspector sanitario requisitar o auxilio da Policia para que a operação sanitaria seja levada a effeito immediatamente.
Foi então impetrado um primeiro HC, indeferido pela 2ª Vara do Distrito Federal. O pleito fora denegado porque o writ só poderia ser admitido “como medida protetora da liberdade corpórea do cidadão, pelo que, não ocorrendo no caso dos autos prisão e nem ameaça dela, era descabida a providência solicitada”.
E assim o caso chegou ao recém-criado STF — desenhado pela texto maior de 1891 —, cuja jurisprudência acerca da matéria vinha sendo construída, não sem a contumaz colaboração de Rui Barbosa. Agindo em nome da ordem jurídica, o jurista impetrou inúmeros HCs no tribunal. Mesmo derrotado em vários deles, pôde mostrar a importância desse remédio constitucional para controlar o Executivo e proteger direitos e garantias individuais.
Questão de competência
No STF, a relatoria coube ao ministro Hermínio Espírito Santo. Ele admitiu o HC, mesmo que a jurisprudência da época considerasse que tal remédio constitucional apenas visava a “garantir a liberdade física do cidadão”. Para tanto, o ministro considerou que o artigo 172 do decreto previa a hipótese de restrição de liberdade de quem se opusesse às medidas sanitárias.
Além disso, o magistrado entendeu que o decreto ofendia a Constituição republicana, pois a Administração não teria competência para legislar sobre a matéria. Até havia uma lei que delegava ao Executivo a missão de organizar o serviço sanitário. Mas o ministro entendeu que era “função exclusivamente legislativa regular a entrada forçada em casa do cidadão”, conforme dispunha o artigo 72, parágrafo 11, da Constituição de 1891:
Art. 72 A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 11 – A casa é o asilo inviolável do indivíduo; ninguém pode aí penetrar de noite, sem consentimento do morador, senão para acudir as vítimas de crimes ou desastres, nem de dia, senão nos casos e pela forma prescritos na lei.
Epidemias, Ciência e Direito
A partir de meados do século 19, a irrupção de duas epidemias alterou o padrão de enfermidade dos séculos anteriores, com grande repercussão na organização sanitária: a febre amarela apareceu em dezembro de 1849, quando atracou no porto do Rio de Janeiro o vapor norte-americano Navarro, vindo de Salvador. A cólera faria suas primeiras devastações em Salvador e no Rio de Janeiro, em 1855. Ambas “se aclimataram” perfeitamente às condições insalubres dos centros urbanos do império tropical, ceifando a vida de indivíduos de todas as raças e condições sociais.
Em relação à febre amarela, inicialmente se pensava que ela era causada por indigestão, ou mesmo a supressão da transpiração (em decorrência da umidade). Cogitou-se até de “sereno da madrugada” e “insolação”. A existência dos chamados “miasmas” também foi tida como causadora da moléstia. Miasmas são o conjunto de odores fétidos provenientes da putrefação de matéria orgânica; mas essa linha de pensamento foi posta em xeque pela teoria microbiana das doenças.
Até que o verdadeiro transmissor da febre amarela — um mosquito — fosse descoberto por um cientista cubano em 1901, passou-se a procurar microrganismos para quase todas as doenças, inclusive febre amarela. Em vão, como hoje se sabe.
Diante de uma sequência de fracassos e pela importância da doença, Dom Pedro 2º chegou a convidar o renomado cientista Louis Pasteur a vir ao Brasil estudar a febre amarela. O francês pareceu interessado e solicitou ao imperador permissão para fazer experiências com alguns condenados. O imperador disse que isso era impossível, e o francês desistiu da pesquisa.
À medida que a medicina e a farmácia encontravam as primeiras soluções para o enfrentamento de epidemias, contudo, a população se mostrava cética e perplexa com a repentina aparição do Estado para tentar conter os surtos. É assim que passa a grassar a chamada “Revolta da Vacina”, um motim popular que eclodiu no Rio de Janeiro, em 1904, contra a obrigatoriedade da aplicação de vacina de varíola.
Passado mais de um século, o Brasil e o mundo novamente se veem às voltas com o tênue equilíbrio entre a coerção estatal que visa ao bem comum e a garantia de direitos individuais. Dilema que nem sempre se resolve com técnica jurídica, apesar de ela ser indispensável.
No contexto atual, não têm sido raras as críticas à possibilidade de arbítrio estatal, conforme reportagens da ConJur publicadas ao longo deste mês de março, sobre a Lei 13.979/2020 — que dispões sobre as medidas de enfrentamento à pandemia — e a portaria que a regulamenta.
Clique aqui para ler a decisão
HC 2.244
Fonte: ConJur
MAZOLA
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