Redação

Está escrito na Constituição americana: o mandato do presidente dos EUA expira ao meio-dia de 20 de janeiro, quatro anos depois de sua posse. Donald Trump conhece a legislação, mas ainda está pouco claro o que pretende fazer em sua badalada final na Casa Branca. Sem reconhecer a vitória de Joe Biden, o republicano sinalizou que pode se tornar o quarto presidente da história do país a completar o mandato e não ir à posse do sucessor.

Antes dele, três líderes do século 19 não deram as caras na inauguração dos adversários: John Adams, em 1801; o filho dele, John Quincy Adams, em 1829; e Andrew Johnson, em 1869.

OLHAR HISTÓRICO – Os motivos variam pouco: tensão política, disputas eleitorais traumáticas e casos de drama familiar. E a rara quebra de protocolo também permite um olhar histórico pouco animador para Trump, que já fala em lançar sua campanha à Casa Branca para 2024.

Nos três casos do passado, os presidentes que assumiram o cargo sem a presença do antecessor na posse não só exerceram gestões de muito apoio popular como conseguiram se reeleger com facilidade.

O primeiro a deixar de comparecer à cerimônia de estreia do sucessor foi John Adams, o segundo presidente dos EUA. Advogado e diplomata, ele governou o país de 1797 a 1801 e não quis passar o bastão pessoalmente a Thomas Jefferson, que era seu vice e rival político —à época, presidente e vice eram eleitos separadamente, o que muitas vezes resultava em perfis antagônicos no comando do país.

“MONARQUISTA” – Adams tinha sido vice de George Washington e enfrentou uma campanha duríssima ao tentar a reeleição, em 1800. Alvo de insultos por parte da imprensa e de adversários, que o chamavam de monarquista, foi acusado de infidelidade conjugal e viu a opinião pública voltar-se contra ele por suas leis que restringiam atividades de estrangeiros e limitavam a liberdade de expressão e de imprensa no país.

Adams ficou em terceiro lugar de uma disputa confusa, que terminou em empate entre Jefferson e Aaron Burr. A decisão nesse caso fica nas mãos da Câmara dos Representantes, e Jefferson chegou a pedir que Adams, então presidente, interferisse no processo, o que não aconteceu.

Os deputados deram a vitória a Jefferson, e Adams deixou a Casa Branca na madrugada de 4 de março de 1801, dia da posse de seu adversário. Um dos filhos de Adams havia morrido logo após o pleito, em novembro. Fora o estresse emocional, historiadores dizem que o então presidente tentava baixar a temperatura política em Washington ao não comparecer à inauguração de Jefferson.

TAL PAI, TAL FILHO – Quase três décadas depois, em 1829, outro filho de Adams, John Quincy Adams, repetiu o gesto do pai e não foi à posse de seu sucessor, Andrew Jackson. Os dois já haviam disputado a eleição anterior, da qual Quincy Adams saiu vitorioso, mas Jackson prometeu revanche e, durante todo o mandato do presidente, foi um de seus opositores mais ferrenhos.

Adams queria implementar um ambicioso programa de modernização do país, que incluía a abertura de estradas, canais e universidades. Parte disso foi concretizado, porém, sob investidas e críticas duras por parte de Jackson, quase sempre na direção contrária da Casa Branca.

Mesmo com as tensões políticas, Adams tentou manter relações cordiais com o adversário, sem sucesso, e deixou Washington na noite de 3 de março, véspera da posse de Jackson.

ERA EM MARÇO – Durante muito tempo, a posse do presidente dos EUA foi realizada em março, quase quatro meses após a eleição, devido à dificuldade de se deslocar durante o inverno no Hemisfério Norte.

O último e até agora mais recente presidente americano a não aparecer na posse de um sucessor é Andrew Johnson. E isso já faz mais de 150 anos. Johnson assumiu a Presidência depois do assassinato de Abraham Lincoln, de quem era vice, e comandou o país de 1865 a 1869.

Controverso, assim como Trump, foi o primeiro presidente dos EUA a sofrer um processo de impeachment, mas foi absolvido em 1868 pelo Senado, também como Trump.

AGORA, TRUMP – O republicano que hoje ocupa a Casa Branca tem dificultado a transição para Biden, não reconheceu a vitória do democrata e não pretende telefonar ou convidar o adversário para visitar a residência oficial antes da posse, como é de praxe entre os líderes durante a transferência de poder.

Trump, mais uma vez, tenta desviar de assunto e chamar a atenção para outro tema quando algo que domina o noticiário não o agrada. Segundo a imprensa americana, o presidente disse a aliados que estuda fazer um comício para lançar sua campanha à Presidência em 2024 bem no dia da posse de Biden —ou depois do anúncio do Colégio Eleitoral, em 14 de dezembro, o que não eliminaria a possibilidade de um comício no dia 20 de janeiro, na tentativa de dividir os holofotes.

FORÇA POLÍTICA – Com mais de 74 milhões de votos —ante 80,9 milhões de Biden—, Trump ainda é uma força política poderosa, capaz de mobilizar multidões e deve seguir como vetor importante daqui para frente.

Mas, como diz a Constituição americana, o mandato presidencial expira ao meio-dia de 20 de janeiro, quatro anos depois de sua posse. A exceção é se 20 de janeiro cair num domingo, então as regras valem para o dia seguinte. Não é o caso de 2021: 20 de janeiro é uma quarta-feira.


Fonte: Folha de SP