Redação –
Coordenador da força-tarefa da Lava-Jato entre 2014 e 2018 e pessoa da convivência do ex-ministro Sergio Moro há pelo menos 22 anos, o procurador da República aposentado Carlos Fernando dos Santos Lima crê que o colega foi empurrado para a política, contra sua vontade, e trouxe em seu depoimento elementos que justificam a abertura de um processo de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
“O presidente radicalizou num sentido que só pode significar que ele está imbuído de má intenção, que é o poder político tomar conhecimento de informações de investigações criminais”, alerta. Ele aponta o risco de uma acomodação anticombate à corrupção, na articulação do presidente com o centrão.
A ameaça à autonomia da PF existia em outros governos?
Houve tentativa de interferência em governos anteriores, em especial no de Temer. Naquele tempo sequer tínhamos uma pessoa de interlocução e de nossa confiança no Ministério da Justiça, por isso ficava complicado. No governo Dilma, a manutenção do (Leandro) Daiello era sempre uma dificuldade, ele dependia muito das nossas manifestações públicas a favor da independência das investigações. A PF não tem essa proteção que o Ministério Público e o Judiciário têm.
Foi correta a saída do Moro?
Correta. Eu já estava engasgado com Bolsonaro desde o episódio do Coaf, porque tenho uma consideração enorme pelo Roberto Leonel (ex-presidente do Coaf) e achei que a condução daquele episódio já mostrava que não havia um compromisso (do presidente) com o combate à corrupção. O compromisso ali era a proteção aos filhos, não é?
O presidente apoiou a decisão do (Dias) Toffoli (presidente do Supremo Tribunal Federal, que restringiu investigações do Coaf), totalmente equivocada, que depois o Supremo reverteu. A gota d’água foi a atuação dele neste episódio da quarentena (do coronavírus). Eu até entendo que exista uma disputa política, essa briguinha de playground, mas quando envolve vida humana não pode.
O presidente foi negligente com a vida dos brasileiros no combate à Covid-19?
Totalmente. Ele tem poucas informações, mas as que são confiáveis, ele aposta politicamente contra isso. Quer ganhar politicamente, mas se estiver errado, o risco são milhares de pessoas morrerem nas portas de hospitais. É inadmissível.
Era o momento adequado para trocar chefe da PF?
Talvez o Bolsonaro esteja realmente preocupado com as investigações do STF, porque o timing dele (para o embate com Moro) é absolutamente sem sentido. Ou talvez tenha ficado feliz com a ideia de que conseguiu derrubar o (Luiz Henrique) Mandetta (ex-ministro da Saúde) e se achou todo-poderoso, ou qualquer outra coisa do tipo.
A Lava-Jato não torceu pelo Bolsonaro?
Eu tive que votar nele no segundo turno. Fazer o quê? O velho Leonel Brizola já dizia que a gente fica entre o diabo e o coisa ruim, por isso o inferno vence sempre. Este é o nosso sistema. E ele não permite a criação de lideranças positivas.
Hoje há risco para o trabalho da Policia Federal?
Sim. O presidente radicalizou num sentido que só pode significar que ele tem má intenção, que é o poder político tomar conhecimento de informações de investigações criminais. O desvio da finalidade das investigações para municiar o poder político é absolutamente ilícito, errado por todos os motivos. Ele (o presidente) pode até dar um passo para trás, mas ele vai dar carga novamente em cima disso, tão logo comece a fritura dos filhos dele nesses inquéritos, se é que já não estão fritos.
Pelo que Moro relatou, o presidente cometeu crime?
Crime de responsabilidade, não tenho dúvida. Muito mais grave do que os da Dilma. Mas o crime de responsabilidade é um conceito muito fluido, e de natureza política. O fato de querer tomar conhecimento, de forma irregular, de informações sigilosas de inquéritos que tramitam em outro poder, para tomar atitudes em relação a beneficiar seus filhos, me parece um crime de responsabilidade claro.
Moro terá que provar essas declarações?
Não foi apresentado motivo para a saída de Valeixo. Temos a palavra de uma pessoa de uma reputação como o Moro, mais uma série de indicativos, isso me parece suficiente para deixar claro a qualquer pessoa de bem o que aconteceu.
Vê ambiente para a abertura do impeachment?
(Rodrigo) Maia (presidente da Câmara dos Deputados) não me parece ter vontade de jogar confete para Moro. Tenho a impressão de que vá acontecer uma acomodação anti-Lava-Jato. De repente eles consigam enquadrar Bolsonaro. Sem uma parte significativa da população que o apoiava, só lhe resta mesmo se submeter ao centrão, algo que ele já começa a fazer. Parecia estar recebendo com mais facilidade investigados da Lava-Jato e do mensalão que o próprio Moro, surpreendido pela mudança na PF.
O senhor se surpreendeu com decisão de Moro?
Me surpreendi que ele não tenha saído antes. Creio que ele se sentiu sendo manietado nesse ano e pouco que ficou lá, mas ainda tentava fazer alguma coisa boa. Chegou um momento em que não havia mais ambiente para isso.
O pensa que ele fará agora?
Estamos vivenciando o mesmo erro que levou o Bolsonaro à Presidência: estão empurrando Moro para a política. Ele nunca quis ir para a política. Mas está sendo empurrado, porque o que pode ser hoje? Político, candidato a vice, talvez senador, algo do tipo. Pode ser advogado, mas é pouco provável. Seria uma alternativa complementar, mas o que resta para uma pessoa com a projeção pública de Moro?
Seria candidato a presidente?
Não acho fácil isso, sem partido ou estrutura. Ele tem nome suficiente. Mas nosso sistema político é tão corrompido e difícil de lidar que seria uma luta árdua. Nesse mar de nulidades e desqualificados, uma pessoa correta e de boa vontade que já teve conhecimento da máquina pública seria um nome perfeitamente palatável.
A força-tarefa Lava-Jato sempre teve pé atrás na crítica ao governo Bolsonaro. A saída do Moro muda isso?
Não podemos dizer que existisse qualquer tipo de posicionamento político dentro da Lava-Jato, tivemos gente que votou no Bolsonaro e no Haddad, por exemplo. A operação se manifestava quando havia algo relacionado ao combate à corrupção. Estávamos tranquilos em relação ao Ministério da Justiça, porque sabíamos que de lá não tomaríamos um tiro pelas costas.
Fonte: O Globo, por Thiago Herdy
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