Por Lincoln Penna –
Todos nós nascemos loucos. Alguns permanecem
(Samuel Beckett)
Logo após o término da Segunda Guerra Mundial, o irlandês Samuel Becker (foto abaixo) escreveu a peça que foi lançada em 1953 e que dá título a este artigo. Um dos mais expressivos criadores do Teatro do Absurdo, denominação que passou a ser utilizada para caracterizar os temas fora da realidade assim tratados em suas obras, tem uma atualidade que não pode ser ignorada nos dias que vivemos.
Ao combinarmos a insensatez, o delírio extremo e a intolerância externada através da veiculação de falsas notícias e mensagens, a realidade torna-se uma coisa. E esta resultante nos leva ao convívio com situações criadas e provocadas de modo a nos afastar dos problemas que realmente nos afligem. O absurdo é o personagem cafona do que se passa na vida das pessoas alimentadas pela expectativa da esperança.
Se todos nós temos de fato uma loucura a nos embalar certos de que somos mortais embora tudo que construímos se torna efêmero, pois dura pouco tempo, como a ingenuidade de criança que um dia todos nós fomos. Ela nem sempre se finda com a maturidade. Essa ingênua percepção das coisas em muitos casos se eterniza em indivíduos a ponto de não distinguirem a realidade com as falsas construções narrativas do que se passa em suas vidas.
Como estamos a viver uma nova situação de conflito mundial, uma guerra híbrida evidenciada pela utilização massiva e extensiva de armas potencialmente utilizáveis e de cunho persuasivo, porém com as mesmas capacidades de cutucar seus inimigos de outros tempos, que nos tem nos mantido na loucura do extermínio geral, tal como Beckett nos faz sugerir, cabe, sem dúvida, situar o mundo nesse momento no plano de um teatro do absurdo de implicações imprevisíveis para a realidade.
Nesse mundo que penetrou célere no universo tumultuado e anárquico a nos conduzir para situações jamais concebidas quando da passagem do século faz pouco mais de duas décadas, a capacidade de diagnóstico é um exercício dos mais difíceis. Inclusive porque qualquer argumento focado racionalmente é, por mais lucidez que contenha algo que só ajuda a confundir mais ainda a realidade tomada de assalto.
No Brasil as coisas não são nem poderiam ser diferentes.
Vive-se neste final de ano a expectativa de uma transição de governo com características até então inexistente. Trata-se da sucessão de um governo de extrema direita rigorosamente assumida, oponente sem tréguas justamente das forças que o derrotaram. Neste cenário as provocações e ameaças alardeadas para se criar um clima de tensão não só não foi abandonado depois dos resultados da eleição como o ainda presidente o acentuou nos últimos dias.
Bolsonaro em seu último gemido dirigindo-se aos que o procuraram nas imediações do Planalto reiterou o incentivo aos atos de desrespeito às regras do jogo democrático, porquanto não deixou de associar essas manifestações à falsa liberdade de expressão, como tem insistentemente dito na certeza de sua impunidade. Com isso, mesmo que nada ocorra de mais grave durante a posse no próximo dia primeiro de janeiro é no mínimo mais um episódio desses novos tempos.
Não fossem os rumos do quadro internacional a caminhar para uma recessão junto ao agravamento das relações entre o Ocidente monitorado ainda pelos EUA e a Eurásia, sob a batuta da China e da Rússia, acresce a essa situação a espantosa legião de famintos, recentemente registrada em toda a América com mais de 50 milhões dos quais o Brasil sozinho representa a maior parte.
Assim, o momento que atravessamos é de grande expectativa. Acumularam-se demandas represadas e que se tornaram inadiáveis, doravante acrescidas de outras decorrentes das conseqüências imediatas e mediatas da Covid-19 ignorada inicialmente pelos que agora saem do Planalto. Tudo isso, para não precisar pintar de cores sombrias um panorama de forte presença do absurdo, que se tornou mais denso a partir do momento em que foi absorvido pela ingenuidade, pela ignorância e pela má-fé de muita gente.
Pode-se troçar do ambiente desestimulante em que vivemos. É possível mesmo rir de uma situação de desgraça que parece não se limitar apenas ao povo destroçado. Afinal, quando a crise se espalha muito embora os mais vulneráveis sejam os primeiros a serem atingidos, fagulhas sobram também para os bem-nascidos e estes costumam lançar mão de expedientes violentos para restaurarem seus privilégios.
Assim costumam surgir os regimes totalitários. Eis o fascismo para comprovar.
Em um país que reúne todas as condições para prover o seu destino e não o faz em razão do egoísmo de suas elites dominantes, como acontece com o Brasil, a explicação não está, portanto, nas carências de recursos. Ela se prende a um projeto destinado a nos manter atrelados aos grandes donos do capital, que têm expandido os seus interesses sempre sujeitando os povos que habitam territórios valiosos como o nosso permanentemente objeto da cobiça de exploradores.
A instauração do reino do absurdo faz sentido quando recorremos ao nosso passado. Faz mais sentido ainda quando falsos mitos agridem as tradições de cordialidade e solidariedade do nosso povo mesmo sob condições adversas em mutirões que revelam o caráter genuinamente receptivo e aberto ao abraço, à confraternização com o outro. Não importa que seja o seu vizinho próximo a passar necessidades ou aquele que veio de longe para se refugiar entre nós e receber a acolhida devida.
Assim, mais do que reconstruir a economia voltada para projetos que não são prioridade do povo, como aconteceu com o governo que não logrou reeleger-se, é preciso reconstituir a harmonia entre nós, o que não significa abrir mão de concepções que alimentam o exercício da boa e construtiva política do contraditório inerente numa sociedade de classes, naturalmente. Ao contrário, estaremos fazendo o jogo de quem na verdade só deseja destruir uma comunidade de destino, como é e deve ser a característica das nações.
O Godot imaginário que esperamos não é uma fantasia rebuscada de situações absurdas, mas o do reencontro com as nossas raízes. Elas contêm vários elementos terríveis, perversos até, e ao mesmo tempo estimulantes. Saber coexistir e identificar o que deve ser descartado e o que merece ter o direito de estar presente em nosso futuro a ser desde já construído, eis a loucura mais benéfica a ser manifestada como prova de que a despeito de termos sido paridos na loucura da espoliação podemos transformar essa loucura em libertação sã.
Que venha Godot. Nós fazemos a espera de seu porvir.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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