Por Carlos Mariano

No finzinho de setembro e início de outubro, as escolas do grupo especial do Rio de Janeiro escolheram os seus hinos para o esperado Carnaval de 2022.

Trata-se de uma ótima safra e vale a pena comentar cada um dos sambas escolhidos para levar a comunidade para a avenida. E vou começar pela ordem do desfile.

Seguindo a ordem dos desfiles das escolas para 2022, que será aberto no domingo 27 de fevereiro, a primeira é a nossa querida Imperatriz Leopoldinense que, depois de amargar uma queda para o grupo de acesso A no Carnaval de 2019, volta ao seu lugar entre as grandes escolas do carnaval carioca. A consagrada artista Rosa Magalhães também volta para escola de Ramos, assinando o enredo “Meninos eu vi… onde canta o sabiá”. Trata-se de uma homenagem ao virtuoso e saudoso carnavalesco Arlindo Rodrigues. O samba escolhido na disputa da Imperatriz foi o de Gabriel Melo. Compositor solitário desse bom samba, Melo quebra a hegemonia das famosas parcerias de condomínio, aquelas que cansam a gente até na hora de falar os nomes dos compositores criadores do samba. A canção de Melo surpreendeu na disputa pela pureza e requinte dos versos que homenageiam Arlindo e, principalmente, quando tratam da passagem e ligação do homenageado com a Imperatriz. O compositor retrata fielmente, com sutileza e sofisticação, como foram os carnavais de Arlindo na Rainha de Ramos.

“Seu samba nascendo no morro
Ecoa do povo e ressoa no céu
Desperto em seus braços de novo
No mais belo traço da flor no papel
Se a saudade é certeza
Um dia a tristeza será cicatriz
Eterna seja! Amada Imperatriz!”

A Estação Primeira de Mangueira será a segunda escola a desfilar no domingo de carnaval e trará como seu enredo uma bela homenagem a três grandes baluartes da sua singular e espetacular história: Cartola, Jamelão e Delegado. A parceria que ganhou a disputa na Verde Rosa é liderada pelo consagrado compositor brasileiro Moacyr Luz e mais Pedro Terra, Bruno Souza e Leandro Almeida. O lindíssimo samba que a Manga trará para a avenida tem sua força nos singelos e poéticos versos que, de maneira suave e ao mesmo tempo lírica, traduzem, com beleza e encantamento, a importância para a história do samba dos três iluminados reis do carnaval.

“Quem traz a cor dessa nação
Sabe que o morro é um país
A voz do meu terreiro”

Esses versos sintetizam bem a origem da história dos homenageados, da própria Mangueira e a marca afrodescendente na cultura popular criada por eles.

O tema da negritude e seu lugar de fala na história do Brasil será um assunto muito recorrente no Carnaval de 2022. A Academia do Samba, o Salgueiro, falara a respeito no seu arrojado enredo: “Resistência”, de autoria do artista Alex de Souza. O samba escolhido pela turma do Sabiá tem as assinaturas de Demá Chagas, Pedrinho da Flor, Leonardo Gallo, Zeca do Cavaco, Joana Rocha, Renato Galante e Gladiador.

“Hoje cativeiro é favela
De herdeiros sentinelas
Da bala que marca, feito chibata
Vermelho na pele dos meus heróis
Lutaram por nós, contra a mordaça”

Os comoventes e realistas versos do samba salgueirense retratam de forma arrebatadora toda a força e protesto do enredo. A melodia sinuosa combinada com um ritmo valente faz desse samba da Academia um dos mais bonitos da boa safra.

A São Clemente será a quarta a desfilar no primeiro dia dos desfiles. Escolheu fazer uma bonita homenagem ao recém-falecido ator, Paulo Gustavo – vítima da Covid-19 neste ano.

“Dona Hermínia mandou avisar que pode
Sambar na avenida e dizer no pé
Mulher com mulher tudo bem
Homem com homem também
O negócio é amar alguém”

Os versos jocosos e inteligentes dos compositores Cláudio Filé e parceria materializam bem o espírito do homenageado e do próprio carnaval, como uma festa livre do preconceito e da cafonice. Viva Paulo Gustavo e a irreverência tradicional da escola de Botafogo!

O samba escolhido pela atual campeão do carnaval carioca, a Unidos Viradouro é do professor Filipe Filósofo, Fabio Borges, Ademir Ribeiro, Deivid Gonçalves, Lucas Marques e Porkinho. Por ser uma bela canção, já foi tema dessa coluna. Eu destaquei a inovação e a importância para a história do samba-enredo que a Viradouro escolhesse esse maravilhoso samba da parceria de Filósofo. E quis o destino que no dia 1º de outubro, a escola de Niterói optasse por essa obra na sua competição final de samba-enredo.

O samba de Filósofo e parceria não tem só na inovação em forma de carta seu grande trunfo pela busca do bicampeonato da escola, mas também por ter sido de todos os sambas concorrentes na disputa aquele que conseguiu melhor retratar a boa, porém difícil sinopse do enredo: “Não há tristeza que possa suportar tanta alegria”, dos carnavalescos Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon. Embaixo a estrofe mais emblemática desse samba que já nasceu clássico e que na minha opinião é o mais bonito e emocionante da safra do grupo Especial para o Carnaval de 2022.

“Assinado: um Pierrot apaixonado
Que além do infinito o amor se renove
Rio de Janeiro, 5 de marco de 1919”

A primeira noite dos desfiles no domingo de carnaval termina com Beija Flor, de Nilópolis, que trará como seu enredo “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija Flor”, de autoria do carnavalesco Alexandre Louzada. O samba vencedor no concurso da Deusa da Passarela foi o da parceria liderada pelo saudoso e grande compositor J. Veloso e mais Léo do Piso, Beto Nega, Júlio Assis, Manolo e Diego Rosa. Ele foi o que, sem dúvida, melhor retratou a narrativa da sinopse, colocando a Beija Flor como lugar de fala e resistência da negritude nilopolitana afrodescendente. A letra é forte e faz da poética uma espécie de navalha que rasga o véu da hipocrisia do racismo brasileiro. Destaco embaixo uma das passagens que ilustra tal afirmação.

“Meu Pai Ogum do lado de Xangô
A espada e a lei, por onde a fé luziu
Sob a tradição Nagô
O Grêmio do gueto resistiu
Nada menos que respeito, não me venha sufocar
Quantas dores, quantas vidas nós teremos que pagar?
Cada corpo um orixá! Cada pele um atabaque
Arte negra em contra-ataque”

Na segunda-feira, dia 28 de fevereiro, o desfile será aberto pela tradicionalíssima Paraíso do Tuiuti, que terá como tema para seu enredo: “Ka riba ti yê – que nossos caminhos se abram”, de autoria do carnavalesco Paulo Barros. O samba vencedor foi da parceria de Cláudio Russo e o enredo segue a linha da narrativa da resistência negra. O samba eleito pela comunidade de Tuiuti tem como característica mais latente a força da letra, que é cercado por um ritmo arrojado, bem a afeição da sinopse do enredo. Confesso que estou curioso para ver como Paulo Barros vai desenvolver o tema negro, já que não é uma especialidade dele.

“Ogunhiê! Okê arô!
Laroyê! Meu Pai Kaô
Tem sangue nobre de Mandela e de Zumbi
Nas veias do povo preto do meu Tuiuti”

A Portela trará para a Marquês de Sapucaí o enredo da dupla Renato Lage e Marcia Lavia: “Igi Osè Baobá”. O samba da azul e branco de Oswaldo Cruz leva a assinatura de Wanderley Monteiro e parceria. O tema do enredo é a cultura negra e a Portela levará para a avenida um samba bom contudo, abaixo das expectativas dos sambas escolhidos pela escola ao longo da sua história.

“Portela é Baobá
No gongá do meu amor”

A Mocidade Independente de Padre Miguel levará para avenida um sambaço de autoria da parceria de Carlinhos Brow, Diego Nicolau, Richard Valença, Orlando Ambrósio, Gigi da Estiva, Nathan Lopes, Santos e Cabeça do Ajax. “Batuque caçador”, do carnavalesco Fabio Ricardo, homenageia o orixá Oxóssi – santo protetor da escola.

O samba vencedor na disputa da galera da Vila Vintém resgata na sua letra a relação histórica entre o samba e religiosidade negra, muitas vezes negada por parte da pesquisa de carnaval, com o intuito de tirar o peso da cultura afro-brasileira na formação social do nosso país.

Na letra do samba-enredo da Mocidade fica claro que o samba das nossas escolas é, historicamente, um fenômeno que só tem explicação na energia que vem dos batuques das casas de macumba, na tradição religiosa de base africana.

Os versos deixam claro a simbiose que há entre o toque do batuque de terreiro com originário samba de sambar das escolas, nascido na malandragem da linhagem do Estácio e filho das tias mães de santo. Além disso, o refrão invoca o orixá Oxóssi, quando louva o toque da batida em seu chamamento, o agueré.

“Inverteu meu tambor, foi o toque de Coé
Som do couro, pele preta, de Jorjão, o agueré
Fez do Aguidavi, baqueta da nossa gente
Pra evocar nesse terreiro toda alma independente”

A Unidos da Tijuca terá como enredo “Waranã – a resistência vermelha”, do talentoso carnavalesco Jack Vasconcelos. Única escola do grupo especial a tratar do tema indígena, o samba da parceria Anderson Benson, Eduardo Medrado e Kleber Rodrigues, embora não seja uma obra prima do gênero, como a escola já fez no passado, “O Dono da Terra” é uma canção que mantém o bom nível da safra.

“Deixa a força Mawé ressurgir
E sorrir quando o sol reluzir
Nesse dia eles vão temer
E o amor vai vencer”

O enredo da turma do morro do Borel é muito pertinente, quando infelizmente, sabemos que os nossos irmãos indígenas vem sofrendo com a atual política insana de demarcação de terras, favorável ao grande capital, promovida pelo atual mandatário do governo federal.

A Grande Rio será a segunda escola a invocar um orixá na pista. O enredo “Fala, Majeté! Sete chaves de Exu”, dos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora, vai contar a história do Seu Tranca Rua, Exu. É a primeira vez que uma escola de samba vai falar especificamente desse orixá tão popular.

Exu é uma das principais divindades do iorubá e do jejê. Ele é o orixá da comunicação, que faz a ligação entre o sagrado e o humano. O grande samba que a escola de Duque de Caxias trará e fatalmente sacudirá a rua como o homenageado. A autoria é da parceria de Gustavo Clarão, Arlindinho Cruz, Jr Fragga, Claudio Mattos, Thiago Meiners e Igor Leal.

“ Ô luar, ô luar… Catiço reinando na segunda-feira
Ô luar… Dobra o surdo de terceira
Pra saudar os guardiães da favela”

Os versos do samba de Gustavo Clarão e parceria, a exemplo como os da Mocidade Independente, mostram mais uma vez a relação intrínseca entre as escolas de samba e as divindades religiosas. A escola de samba é negra e macumbeira na sua essência, sim senhor!

Encerrando os enredos das escolas de samba para o Carnaval 2022, a minha amada Unidos de Vila Isabel, vem finalmente homenageando o maior compositor do samba-enredo moderno: o nosso querido Martinho da Vila.

Coube à parceria de André Diniz, Evandro Bocão, Dudu Nobre, Professor Wladimir, Marcelo Valença, Leno Dias e Mauro Speranza a responsabilidade de fazer um samba-enredo homenageando o velho Zé Ferreira. Embora o samba da parceria liderada por André Diniz seja bom, está longe de ser comparado à qualquer samba ganho por Martinho da Vila na Azul e Branco. Mas, com certeza, os bambas do morro dos macacos vão sacudir com esse samba a avenida, encerrando o carnaval de 2022 com chave de ouro.

“Profeta, poeta, mestre dos mestres
África em prece, o griô, a referencia
O senhor da sapiência, escritor da consciência
E a cadência de andar, de viver e sambar!”

Esses sábios versos traduzem bem o peso e a importância de Martinho da Vila, não só é claro para a história da Unidos de Vila Isabel e do samba, mas muito mais do que isso, para o próprio movimento negro mundial. Zé Ferreira é um dos maiores artistas e intelectuais brasileiro, pois com sua música e literatura, combateu o racismo em nosso país e no mundo, mostrando que nós somos todos frutos da mãe África.

Martinho José Ferreira, mais conhecido por Martinho da Vila, é um cantor, compositor e escritor brasileiro. (Wikipédia)

Não teria, portanto, tema melhor para encerrar os desfiles do Carnaval de 2022 e esse artigo do que falar da vida e obra do mestre dos mestres.

CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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