Por Jorge Folena

Quando um Tribunal necessita afirmar o que as forças militares de um país podem ou não fazer, é porque elas estão perdendo o seu sentido institucional e se impõe apontar-lhes o correto rumo constitucional, que se esvaiu pelo caminho.

Na verdade, era totalmente desnecessário o indevido e desgastante debate apresentado pelo ocupante da Presidência da República que, sob a retórica agressiva expressada na reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, no Palácio do Planalto, afirmou ser ele o chefe supremo das Forças Armadas, e que, assim, poderia avocar o artigo 142 da Constituição para impor uma intervenção militar no país.

Esse tipo de assertiva, que foi apoiada por seus ministros militares do Exército, lançou as Forças Armadas (instituições de estado, e não do seu governo!) numa aventura institucional contra a Constituição.

Apesar de não termos ouvido nem lido nenhuma manifestação formal dos comandantes das três forças militares, os oficiais generais do Exército, da reserva e da ativa, que ocupam cargos no governo, sistematicamente se expõem como porta-vozes do ocupante da Presidência da República, numa atitude reiterada de intimidações às instituições democráticas nacionais, sem respeitar a regra básica do equilíbrio das forças políticas e sociais. O exemplo mais recente disso foi quando disseram, em nota pública, que não são obrigados a aceitar “decisões judiciais absurdas”.

Mas o que seria, exatamente, uma decisão judicial absurda, na visão desses militares? Aquela que contraria seus interesses, como a que impossibilitou a indicação de um amigo dos filhos do presidente para a chefia da Polícia Federal, sob o fundamento do desvio de finalidade e da violação da impessoalidade administrativa?

Imaginem se o ex-presidente Lula, seu partido e seus militantes se opusessem, pela força ou mediante ameaça, contra as ilegais decisões judiciais proferidas pelo ex-juiz chefe da Lava jato e ex-ministro da Justiça, cujo apoio foi fundamental para questionável a eleição do atual presidente, que está sob judice no Tribunal Superior Eleitoral.

Poder-se-ia dizer o mesmo em relação a Michel Temer, quando foi preso sem ter sofrido nenhuma condenação, simplesmente para lhe impor uma humilhação que alimentou as hordas fascistas da Lava jato.

A ordem jurídica fundada em 1988, apesar de não ter criado uma força de segurança interna de terceiro tipo (como uma guarda nacional) para assegurar a ordem federativa e os poderes da República, jamais deu poderes às Forças Armadas para atuarem acima de qualquer instituição política.

Pois levou em conta todos os malefícios perpetrados contra a democracia na ordem política anterior, implantada a partir do Ato Institucional nº 01, de 09/04/1964, que se foi agravando através dos Atos Institucionais 02, de 15/05/1967, 05, de 13/12/1968 e pelo “Pacote” de 13 abril de 1977, promovido por agentes militares com o apoio de civis e patrocinado por interesses imperialistas internacionais, cujos efeitos formais somente se encerraram em 15 de março de 1985, decorrentes das grandes manifestações populares pelas “Diretas já”, que se fizeram por todo o país.

A Constituição cidadã (nas palavras do Dr. Ulisses Guimarães) resgatou a ordem democrática e colocou as Forças Militares no seu papel de instituição de estado (e não mais de governo, como tinham sido no regime ditatorial), ficando submetidas ao povo brasileiro e às instituições políticas a serviço deste, não havendo deixando a mínima possibilidade de existência, no país, de um “poder moderador”, que, na verdade, foi abolido em 1889, com o fim do Segundo Império, e materializado formalmente pela constituição republicana de 1891.

Não há dúvidas de que os militares tentam exercer um “patriotismo castrense”, como define o historiador Manuel Domingues Neto, em que o “nacionalismo corporativo” é imposto como forma de “estabilidade social,” visando a “manutenção da ordem existente, a obediência estrita de seus integrantes”, mas “não a mudança promissora da maioria. (…) não a quebra de padrões de dominação.”1

Ou seja, os militares procuram preservar seu mundo próprio e corporativo, cheio de vantagens apartadas dos demais civis, com uma estrutura própria de proteção social, assistencial e salarial; e, se possível, exercendo alguma influência política de poder, mas, contudo, sem quebrar os “padrões de dominação” de uma classe dominante exploratória, gananciosa e perversa, como se observa ao longo do desenvolvimento da crise sanitária da COVID-19, e mais recentemente, com a abertura precipitada e criminosa das atividades comerciais, num país que já tem mais de oitocentos mil infectados e quarenta e dois mil mortos, sem perspectiva alguma de alcançar o efetivo controle da pandemia.

Porém, apesar de tirarem vantagens pessoais pelo exercício da força que exercem, isto não significa que os militares estejam acima da ordem civil ou que controlem as demais instituições de estado.

Sua chegada ao poder, por meio da articulação que elegeu, de forma duvidosa, o atual ocupante da Presidência da República, está ocasionando um desgaste exacerbado da imagem dos militares, pois está muito clara a existência de uma mixórdia de interesses no governo, que faz prevalecer as vantagens obtidas pelo mercado financeiro, que se apropria do orçamento público, produto do esforço da classe trabalhadora, e apoia os atos permanentes de tirania do presidente e seus filhos ligados às milícias armadas, que usam a imagem das Forças Armadas para impor à população o descaso, o medo e o terror permanente, resgatando assim as piores lembranças dos anos de chumbo da última ditadura.

Sem dúvida, por mais que os militares tenham sempre procurado exercer, indevidamente, alguma forma de tutela sobre o poder civil, com o fito de alcançar seus interesses patrimoniais e de status social descompromissado com o país (o “patriotismo castrense”), o atual governo está impondo um desgaste tamanho que, ao final desta aventura, levará ao total desmonte da atual estrutura das forças militares, diante da reação do poder civil, que, numa ordem democrática, se mantém por meio do equilíbrio das forças políticas e sociais, reforçado na Constituição pela cláusula pétrea da separação dos poderes.

E pode ser que assim o faça o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.457 (proposta pelo PDT, que um dia foi liderado pelo inesquecível Leonel Brizola), em que o ministro Luiz Fux concedeu uma medida liminar para “aclarar” que, a partir da leitura do artigo 142 da Constituição, não existe na ordem jurídica brasileira um “poder moderador” dos militares sobre os demais poderes, esclarecimento que apenas afirmou o “óbvio ululante”, conforme Nelson Rodrigues.

A empreitada bolsonarista poderá sair muito cara para os militares, que se lançaram na aventura de apoiar um homem desrespeitoso com as instituições democráticas e com as pessoas, como revelado ao longo da grave crise sanitária da COVID-19, na qual os militares (no comando do Ministério do Saúde) estão envolvidos até o último fio de cabelo na morte de cada brasileiro.

As forças militares estão se submetendo a um tal nível de constrangimento e desgaste, em decorrência das ações e omissões abusivas e criminosas do ocupante da Presidência da República e dos generais apoiadores do governo, que levaram o Tribunal Maior do país a ter que esclarecer qual é o papel de estado das FFAA (o qual elas sabem muito bem qual é, na ordem constitucional).

E, diante do quadro político atual, esta parece ser o único caminho de a sociedade, representada pelas forças populares e progressistas, impor um freio aos que querem se aventurar pela tirania e eliminar o pouco que ainda nos resta de democracia, após a destruição iniciada com o indevido impedimento da Presidenta Dilma Rousseff em 2016.

1 NETO. Manuel Domingues. Sobre o patriotismo castrense. Dossiê os militares, Fundação Perseu Abramo: São Paulo, 2019, p. 29.


JORGE FOLENA – Advogado, cientista político e escritor. Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro e mestre em Direito pela UFRJ. Ocupou no Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) os cargos de presidente das Comissões Permanentes de Direito Constitucional e Direitos Sociais.  Na Sociedade Brasileira Geografia (SBG) ocupou os cargos de diretor-secretário e presidente da comissões de publicações. Atuou na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Rio de Janeiro, como membro da Comissão de Constituição, Justiça e Legislação. Atualmente é colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre e dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.