Por José Macedo –
“A violência, sob qualquer forma que se manifeste é um fracasso” (Jean Paul Sartre)
Artigo 5o, I, da CF/1988: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Artigo 226, par. 5o: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.
Para ilustrar o texto, narro o seguinte episódio:
Eram 3 horas da madrugada, em determinada cidade da Região dos Lagos, o advogado é chamado à delegacia, a pedido da família de um detido. Esse fato ocorreu, no mês de maio e nessa madrugada fria de inverno caia uma garoa fina e intermitente. Ao chegar à delegacia, o advogado informa-se do motivo da prisão. Seu cliente quis matar a mulher em local público, precisamente, em um restaurante, disse o policial. O resultado crime não aconteceu, em virtude da interferência de uma testemunha, que acionou a polícia. A arma foi apreendida e o fato criminoso, imputado como tentativa de homicídio (Att. 121, C/C o 14, II, ambos do CP), não foi consumado, em função da interferência externa e por circunstâncias alheias à vontade da vítima. A testemunha foi diligente e evitou a consumação do crime, agindo no cumprimento previsto na lei, agindo como devia fazer.
A inteligência do artigo 5o. da Lei 11.340/2006 (L. Maria da Penha) prevê a conduta daquele que se omite, não fazendo o que deveria fazer, no caso concreto, seria crime por omissão. Este preâmbulo objetiva mostrar as consequências de quem poderia e deveria evitar o cometimento de um crime. O dever no sentido de impedir o crime funda-se no princípio da convivência e da solidariedade.
A questão da violência contra a mulher é milenar, não privilégio ou desprivilégio da sociedade brasileira. O Brasil, neste momento, de crise e de obscuridade, os números de violência, espancamento, lesão corporal e assassinato contra a mulher crescem exponencialmente. As motivações são diversas, desde a desigualdade social e econômica, a educação e até, a postura misógina do atual presidente da República. Sem dúvida, são causas anteriores e próximas, que dão causa e incentivam a violência contra a mulher. As estatísticas, nesse tempo de crise sanitária e do governo Bolsonaro, somam explicações específicas. Porém, o fato das famílias ficarem, por mais tempo, em casa, não explica o aumento dos crimes de feminicídio, em razão da condição de gênero ou da vitima ser mulher. O certo ê que, os crimes, com esse atual governo e a crise sanitária e vêm crescendo, lembrando que o Brasil retornou ao Mapa da Fome.
Essas variáveis não são coincidências, elas interferem nos números. É assustador que, em cada 09 horas, é assassinada uma mulher, no Brasil. Em São Paulo, as mortes, em razão de gênero, nos últimos meses, cresceram 49,9%. Pelo que se vê à luz da lei, há uma igualdade jurídica de gênero, mas a mulher continua sendo a vítima de ódio e de vingança, pelo marido, companheiro ou namorado. Ela é ainda olhada como inferior e objeto. No dia 25 de novembro, é lembrado pela ONU, como “dia Internacional da não violência contra mulher e pela defesa dos direitos humanos”. Na história do Brasil, ao analisar a relação entre homem e mulher, a desigualdade econômica, de direitos e a violência retroalimentam-se, saltando a nossos olhos, em um desenho de horror e de trevas. As estatísticas diárias assustam a todos nós. Na qualidade de filho, pai, cidadão e de advogado não desejaria ver meu país no ranking dos mais violento do mundo contra a mulher. Lamentavelmente, nossa realidade pode ser caracterizada como primitiva e cruel, considerando os delitos praticados, pela condição de gênero. Assim é que, esses atos de violência estão enraizados na memória e integram-se em nossa história cultural.
No período colonial, era assegurado ao homem matar a mulher, em caso de adultério e às vezes até, por mera suspeita. O direito do homem matar a mulher estava previsto nas Ordenações Filipinas, Código que vigeu em Portugal e em suas Colônias. Ao homem era dado esse direito, obviamente, por ser o dono da terra, dos escravos e da mulher. Porém, o fenômeno da desigualdade e da violência contra mulher é mundial, acentuando-se nos países de menor desenvolvimento, onde seu sofrimento é mais acentuado, vergonhoso e desumano, beirando à barbárie. Com certeza, esses momentos lembrados pela ONU deveriam ser transformados em protestos e discussões.
As injustiças continuam e demandarão tempo e esforço para reverter o relacionamento a um modo civilizado entre eles, preservando seu papel social e a dignidade de ambos. A situação, ora descrita, fundada no fato de que o homem e a mulher têm origem comum, mas através do tempo, foi sendo pervertida. Para os estudiosos, ficamos entre os filósofos, Hobbes e Rousseau, somos violentos por natureza ou a sociedade nos corrompe? Imagino: enquanto existir uma mulher vítima da desigualdade, da violência e do desrespeito aos direitos, haverá dificuldade para essa superação, requerendo então mutirão de conscientização, para que o homem e a mulher assumam seu papel de pessoas, possuidores dos mesmos direitos e obrigações. Querendo, podemos ir lá no início da República e após, às questões, ora suscitadas, observamos que, houve melhoras no discurso e na técnica de elaboração das leis à espécie, Lei Maria da Penha e do Feminicídio, não esquecendo da Constituição cidadã e do CP.. Com Getúlio Vargas, a mulher obteve o direito de votar, em 1932. Porém, antes, o Código Civil de 1916 não avançara, deixando a mulher ainda sob a tutela do marido e na prática, continuava sendo incapaz para o exercício dos direitos civis e de suas atividades profissionais, como exemplifico.
Eu faço essa análise crítica, sendo as desigualdades em todos os segmentos, a econômica, política, social e educacional, as referências. É perda de tempo e assistir mais mortes, imaginar que leis especiais servem de profilaxia. Tenho fundadas convicções de que, as coisas permanecendo como estão, não eliminando as causas, os efeitos continuarão. Assim, os mesmos males persistirão, a submissão da mulher, a dominação, mortes e sofrimento humano, enfim a mulher olhada como inferior. Enfim. São 520 anos, mas o Brasil continua carregando o estigma de um país desigual, desfazendo o falso mito de povo pacífico. Vê-se que, não somos pacíficos, tantas mortes e os presídios, depósitos de párias, as masmorras do século XXI, abarrotados de criminosos, com uma população de mais de 800.000 presos, a quarta do mundo. A mulher padece, por sua condição e vulnerabilidade, vítimas, cujos crimes são praticados dentro de casa, pelo marido, companheiro ou namorado. Apesar da Constituição, do Código Penal, da Lei Maria da Penha e a do Feminicídio, essa positivada igualdade jurídica tem sido mera formalidade, é hipócrita, porque de pouca efetividade, como mostram os números. Nessas lamentáveis circunstâncias, a cada ano, os números de assassinatos aumentam, vis-à-vis, os estarrecedores ocorridos, neste ano, basta ligar qualquer canal de TV.
Hoje (19), em Salvador, um idoso de 86 anos esfaqueou e matou a companheira de 74. Até, em casos mais escabrosos, a imprensa os trata como assunto banal e corriqueiro, sempre uma abordagem superficial, notícias que não produzem impacto, sensibilidade e não comove. “É a banalidade do mal” (Hannah Arendt). O perfil dos comentários é do tipo: bater em mulher é algo corriqueiro e banal e que, “em briga de mulher, ninguém mete a colher”. Deve mete-se sim e, ocorrendo a omissão, certamente, a consequência é o evento crime. A omissão está prevista em lei, sendo um crime omissivo. Entre lares ricos, de pessoas instruídas e branca têm ocorrido os mesmos fatos, porém em número inferior, cujas causas são distintas das que enchem as delegacias e penitenciárias. Nos lares, cuja população é rica, os espancamentos e agressões ocorrem mas permanecem ocultos, por vergonha, certamente. A estatística mostra que esses delitos, espancamentos, maus tratos e assassinatos ocorrem, entre as idades dos 20-39 anos, na proporção de 54%, sendo que, na população negra o índice é de 61%. Esses números confirmam o nexo causal, entre a relação econômica, a desigualdade e a violência.
Tenho inteira convicção de que esse fenômeno, a lei em si, mesmo a mais severa, não é capaz de mudar a conduta dos homens, diante das mulheres e demais semelhantes. A questão não é, meramente, policial, mas, sobretudo, de educação e de igualdade econômica, social e politica, repito, o que demandará tempo para o alcance dessas necessárias mudanças. Enfatizo a questão da educação e do debate, inserindo homens e mulheres no processo de afirmação de valores e de que todos somos iguais, detentores de direitos inalienáveis e, somente assim, homens e mulheres poderão conviver, efetiva e respeitosamente. Quando observo o momento político, a atual conjuntura, vislumbro, que teremos mais dificuldades, em função das comentadas condições sociais, econômicas, de educação e politica, ora em comento. Mesmo com meu esforço para ser otimista, os indicadores apavoram-me, por suas abissals desigualdades e atrasos generalizados. Não é possível e fácil ser otimista com esse macabro quadro, ora desenhado, apesar de minha teimosia em acreditar na humanidade, em seu desenvolvimento e aprimoramento. No entanto, continua minha pergunta e não obtenho resposta: qual é nosso destino?
JOSÉ MACEDO – Advogado, economista, jornalista e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
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