Por Paul Krugman 

Os republicanos passaram a maior parte de 2020 rejeitando a ciência, diante de uma pandemia descontrolada, e agora estão rejeitando a democracia, diante de uma clara derrota eleitoral. O que essas rejeições têm em comum? Em cada um dos casos, um dos dois grandes partidos políticos americanos simplesmente se recusa a aceitar fatos de que não gosta.

Não estou certo que seja correto dizer que os republicanos “acreditam” que, por exemplo, usar máscaras seja inútil, ou que fraudes eleitorais em larga escala tenham acontecido. Enquadrar a questão como se envolvesse crença indica que alguma forma de prova seria capaz de levar os fiéis do partido a mudar de ideia.

ACREDITAR NO DESEJO – Na verdade, aquilo em que os republicanos dizem acreditar flui daquilo que eles desejam fazer, seja ignorar uma doença mortal, seja permanecer no poder a despeito do veredicto dos eleitores.

Em outras palavras, o ponto não é que o Partido Republicano acredite em coisas que não são verdade. É, em lugar disso, que o partido tenha se tornado hostil à ideia mesma de que existe uma realidade objetiva que possa conflitar com seus objetivos políticos.

Repare, aliás, que não estou qualificando minhas declarações e afirmando que “alguns” republicanos o fazem. Estamos falando da maior parte do partido, aqui. O processo do Texas que apelava que a Suprema Corte derrubasse o resultado da eleição foi tanto absurdo quando profundamente antipatriótico, mas mais de 60% dos republicanos da Câmara dos Deputados assinaram uma petição em seu favor, e apenas alguns poucos republicanos eleitos o denunciaram.

ODIAR OS FATOS – A esta altura, você só será considerado um republicano legítimo caso odeie os fatos. Mas quando e como o partido passou a ser assim? Se você acredita que tudo começou com Donald Trump, e que as coisas mudarão quando ele sair de cena (se é que o fará), você está sendo ingênuo.

Os republicanos vêm se encaminhando a isso há décadas. Não estou certo de que seja possível identificar o momento exato em que o partido começou a decair a uma insanidade maligna, mas a trajetória que conduziu a esse ponto provavelmente se tornou irreversível sob Ronald Reagan.

Os republicanos fizeram de Reagan um ícone, retratando-o como o salvador de uma nação desesperada e em declínio. Mas isso é principalmente propaganda. Se você se ativer à lenda, seria impossível saber que o crescimento econômico na era de Reagan foi apenas ligeiramente maior do que na era de Jimmy Carter, e inferior ao que seria no governo de Bill Clinton.

DESIGUALDADE SOCIAL – A desigualdade de renda em rápida ascensão significou que parcela desproporcional dos benefícios do crescimento econômico se destinasse a uma pequena elite, com apenas algumas migalhas destinadas à maioria da população. A pobreza, medida devidamente, era mais alta em 1989 do que uma década antes.

De qualquer forma, PIB (Produto Interno Bruto) não é sinônimo de bem-estar. Outros indicadores já apontavam que estávamos saindo do rumo.

Por exemplo, em 1980 a expectativa de vida nos Estados Unidos era semelhante à de outros países ricos. Mas os anos Reagan marcam o início da grande divergência entre os Estados Unidos e os demais países avançados em termos de tendências de expectativa de vida. Hoje os americanos vivem em média quase quatro anos a menos do que os cidadãos de países de riqueza comparável.

TEORIAS DE CONSPIRAÇÃO – O ponto principal é que, sob Reagan, irracionalidade e ódio aos fatos começaram a tomar o controle do Partido Republicano.

Sempre houve facções proponentes de teorias da conspiração, ódio à ciência e aversão à democracia, nos Estados Unidos. Mas antes de Reagan, os conservadores convencionais e a elite republicana se recusavam a fazer aliança com essas facções, mantendo-as à margem da política.

Reagan, em contraste, decidiu trazer os maluquinhos para dentro. Muita gente está ciente, creio, de que Reagan acreditava em uma doutrina econômica absurda –a crença no poder mágico dos cortes de impostos. Estou certo de que muita gente se lembra de que o governo Reagan também era notavelmente hostil à ciência.

HAVIA CONTRAPONTOS – A capacidade de Reagan para agir com base nessa hostilidade era limitada pelo controle democrata sobre a Câmara dos Deputados e pelo fato de que o Senado ainda continha alguns republicanos legitimamente moderados. Mas Reagan e seus assessores ainda assim passaram anos negando a ameaça da chuva ácida e insistindo em que a evolução era apenas uma teoria, e promovendo o ensino da teoria criacionista nas escolas.

A rejeição da ciência refletia em parte a deferência diante de interesses especiais que não desejavam regulamentação baseada em ciência.

Ainda mais importante, no entanto, era a influência da direita religiosa, que se começou a se tornar uma força política na era Reagan, vem ganhando posição cada vez mais central na coalizão republicana, e agora se transformou em um dos principais propulsores na rejeição do partido aos fatos –e à democracia.

EM NOME DE DEUS – Pois rejeitar fatos é algo que ocorre naturalmente a pessoas que insistem em que agem em nome de Deus. O mesmo vale para a recusa em aceitar resultados eleitorais que não as beneficiam. Afinal, se os progressistas são servos de Satanás que tentam destruir a alma dos Estados Unidos, eles não deveriam ser autorizados a exercer o poder mesmo que por acaso obtenham mais votos.

E alguns dias atrás o evangelista televisivo Pat Robertson – cuja influência política nasceu na era Reagan – não hesitou em anunciar que o processo judicial do Texas era um “milagre”, uma intervenção divina que manteria Trump no poder.

O ponto é que a rejeição dos fatos pelo Partido Republicano, um fator tão conspícuo durante todo este ano, não é uma aberração. O que estamos vendo é a culminação de uma degradação iniciada muito tempo atrás, e que é quase certamente irreversível.


Fonte: The New York Times (Tradução: Folha de SP)