Por Roberto Amaral –
Espera-se que as forças do campo progressista não se deixem engodar pelo chamamento à antecipação do pleito de 2022. Isso não nos interessa, porque não responde às necessidades da hora presente. Taticismo matreiro, que engana os incautos, visa a nos afastar das demandas imediatas da crise, e ainda concorre para alimentar cisões, pôr mais lenha na fogueira das vaidades pessoais, quando a esquerda, unificada (a condição necessária para sua revisão programática e avanço nas ações), deve lutar para a construção de uma grande frente democrática e popular, como instrumento de resistência ao governo protofascista. Mas, note-se: resistir para avançar. Nada de “recuos táticos”.
Sustar o genocídio é a tarefa imediata, e ela clama pelo afastamento do neandertal e sua claque de fardados incompetentes, sobre os quais desponta, representativa, a figura deplorável do general (da ativa) Eduardo Pazuello, recentemente defenestrado. E até para que realmente tenhamos eleições limpas, livres das agressões que o pleito de 2018 sofreu para possibilitar a eleição do delfim do general Villas Bôas, é preciso que a mobilização popular impeça as maquinações golpistas tocadas pelo entorno do capitão. Este, aliás, ante o silêncio sepulcral das instituições, acaba de declarar que está em suas mãos instaurar uma ditadura: “O presidente Jair Bolsonaro disse ontem em sua live que é o “garantidor da democracia” (…) “Se eu levantar a minha caneta Bic e disser ‘Shazam!’, eu viro ditador”. (O Estado de S.Paulo,12/3/2021). O que nos faz lembrar decisão recente do ministro Alexandre Moraes, quando mandou prender o meliante Daniel Silveira, ainda acoitado por um mandato de deputado federal. No seu despacho o ministro elenca, como conduta criminalmente punível, a defesa do “arbítrio e da ditadura, como ocorreu com a edição do AI-5”, crime que, vimos acima, acaba de ser cometido (e não pela primeira vez) pelo capitão, expulso do exército como “mau militar”, conceito que deve ao general Ernesto Geisel. É sempre oportuno lembrar.
Há, pois, muito o que fazer antes de nos dispersarmos. Deixemos a discussão eleitoral com o chamado “centro” (perdido na cena política como cego em tiroteio) e a direita, e seus respectivos penduricalhos. Cuidemos de nossa organização e dos desafios que nos cabe enfrentar.
É evidente que todos os democratas do mundo estão justamente a bater palmas para o despacho do vagaroso ministro Edson Fachin e seu aberratio ictus, quando, jogando para salvar Sergio Moro, livrou Lula das penas impostas pela judicatura abusiva do juiz que desmoralizou a magistratura brasileira. Moro, em sua atuação geral, mas particularmente em face dos processos aos quais Lula respondia, mandou às favas a precedência do juiz natural, a isenção do julgador e o devido processo legal. Valeu-se de todas as arbitrariedades que um beleguim pode cultivar, como condução coercitiva de acusados, uso abusivo de prisões provisórias, manipulação de provas, testemunhos e delações, relações promíscuas com procuradores. Mas é preciso ter sempre presente: há os abusos e os crimes da república de Curitiba e de seu sátrapa, mas há, em igual porte, a coautoria do ministério público em todas suas instâncias, e a leniência do poder judiciário, da qual o principal agente é o próprio STF, a cujas portas voltam a bater os que clamam pela regência do Estado de direito democrático, constitucional e legal.
As irregularidades que hoje assustam o ministro Fachin, as arbitrariedades que hoje causam espanto aos ministros Gilmar Mendes e Carmem Lúcia (constitucionalista na linha de Paulo Bonavides), eram fatos conhecidos, sabidos e consabidos até pelos contínuos que servem água e cafezinho às nossas e nossos capas pretas.
Como confiar na independência e coragem do STF sabendo que a Corte exerceu papel decisivo no impeachment de Dilma Rousseff, na salvação do mandato de Michel Temer (ao rejeitar a impugnação eleitoral da chapa de 2014), e no afastamento de Lula da disputa das eleições de 2018?
Como confiar em nossa Corte suprema quando seu então presidente, Dias Toffoli, antes mesmo de tomar posse no cargo, vai ao gabinete do comandante do exército oferecer a cabeça de Lula, como preito de sua lealdade aos desígnios dos fardados?
Insisto neste ponto: não devemos esgotar nossas energias nas comemorações da liberdade do ex-presidente, porque ainda temos, até 2022, uma longa estrada por percorrer, e o ponto de partida é a pressão popular (que depende de nossa capacidade de mobilização nas adversas condições de hoje) sobre o STF. É preciso levar a segunda turma do STF a julgar o habeas corpus que pede a declaração da flagrante suspeição do ex-juiz e ex-ministro e atual sócio de um escritório internacional de advocacia que presta consultoria à Odebrecht. Não pode o Brasil aguardar mais dois anos, o tempo que o país e a liberdade de Lula esperaram para que o ministro Gilmar Mendes trouxesse à colação o seu voto. E, se Fachin submeter ao plenário sua decisão, que – passados três anos! – reconheceu a incompetência da 13ª Vara para julgar Lula, será preciso que redobremos nossa vigilância e o trabalho de opinião pública sobre o colegiado do STF, visando à sua confirmação, contra a qual a direita, dentro e fora do STF, mobilizando fardas e pijamas, já se articula.
Não se sabe se o general Villas Bôas, ou o atual titular do comando do exército, expedirá novo tuíte para dizer aos ministros como devem votar.
Antes de pensar em disputa eleitoral (a imprensa brinca com sondagens de opinião: já criou mais de 12 candidatos, e há especialistas anunciando como será o segundo turno, quem vai disputar e quem vai ganhar!), é preciso alterar a atual correlação de forças, adversa, de sorte mesmo a assegurar o processo democrático e a legitimidade das eleições. Ninguém se engane: assim que a esquerda pisar nesse tapete das discussões eleitorais fora de hora, ele será puxado, como foi em 2018. Ademais, discutindo o pleito, como querem, jogamos fora as energias que devem ser canalizadas ao combate à direita e seu governo, da direita civil e da direita militar.
Tudo isso por uma razão óbvia: o sistema está sob o controle da casa-grande, que conserva seu poder de a qualquer momento intervir no jogo, alterando as regras. Como resistir e avançar, senão mediante a mobilização popular, que requer a reorganização de nossas forças políticas e dos movimentos sindical e social de um modo mais amplo?
O ponto nodal é este: a reorganização das esquerdas, tanto do ponto e vista programático quanto operacional, de sorte a readquirir condições de intervir no processo social, sem travar internamente a luta pela hegemonia, nem pretender a hegemonia da frente popular democrática, ampla, que deverá unificar as grandes massas na luta contra o bolsonarismo, em todas as frentes em que o combate se oferecer. A hegemonia não é um dictak do aparentemente mais forte, mas o produto do consenso que emerge da luta comum. A via eleitoral será uma contingência e nela, na oportunidade devida, saberemos nos definir, se tivermos conquistado a clareza do processo histórico que vivemos.
Não há força política sem força social. Não nos esqueçamos das lições de 2016, quando, ao perder o respaldo das massas, perdemos o poder político que havíamos conquistado de forma legítima. Passamos a temer as ruas, o que dá a medida do nosso recuo. Cuidemos, pois de reconquistar nosso espaço no espectro político. É evidente que, principalmente a partir de 2013/2014, as forças de direita, o imperialismo, a casa-grande e seus aparelhos (as forças armadas, o congresso, o judiciário, os meios de comunicação de massa etc.) se reuniram numa grande frente antidemocrática, antinacional e antipovo, abertamente com o objetivo de liquidar com a esquerda brasileira, a começar pela destruição do PT e de Lula, sua principal liderança. Tudo isso é verdade, mas não é a verdade toda, pois, para o desastre que hoje nos enreda, muito contribuíram os erros de nossos governos e nossos próprios erros de condução política e partidária. O rol é grande, mas é possível destacar a unilateral tentativa de conciliação com a direita e o sistema financeiro, além da renúncia à batalha ideológica de que resultaram, dentre outras fraturas, a lassidão organizativa, a anomia e a renúncia à luta.
Tudo o que está a explicar a crise dos partidos.
A reflexão sobre o quadro de hoje, iluminada pela revisão do passado recente, mostra ao analista mais atento a necessidade de construção, pelo nosso campo, de uma proposta alternativa ao statu quo, capaz de canalizar a luta dos diversos atores na direção de um objetivo comum. Este jamais poderá ser ditado de cima para baixo. Precisa corresponder ao nível de consciência das massas e da qualidade de sua organização. O que fazer será enunciado, a cada momento, pelas condições reais da luta. A hegemonia não se estabelece por decisão política, mas na ação. A luta é pedagógica; passo a passo ensina ao militante e ao líder consequente, aquele que soube construir a teoria revolucionária a partir da prática revolucionária. Assim são os partidos; se não sabem interpretar a realidade, logo são derrotados; mas, se renunciam à ação, de nada lhes terá servido a formulação teórica adequada.
***
O STF amesquinhado – Em abril de 2008, como é sabido, o general Vilas Boas, então comandante do exército, despachou contra o STF um tuíte que, bem compreendido pela Casa, levou à rejeição (6×5) do habeas corpus que livraria Lula da prisão, pelos motivos agora reconhecidos (quase tardiamente) pelo ministro Fachin. No final de agosto, antes de sua posse na presidência do STF, o ministro Dias Toffoli visita o general tuiteiro em seu gabinete no Forte Apache. Do que foi conversado o comandante dá um pequeno testemunho, suficiente, porém, para prantearmos o triste destino do judiciário brasileiro. Fala o general: “Ele [Toffoli] nos procurou e aí nos afirmou, nos garantiu: ‘Vocês fiquem tranquilos. Enquanto eu estiver na presidência [do STF] não haverá alteração da lei de anistia e tampouco outras coisas de caráter ideológico.” Segundo o general – continua a revista — Toffoli também prometeu que Lula – a essa altura, já preso em Curitiba – não ganharia nenhum benefício jurídico até a eleição presidencial, que ocorreria dentro de algumas semanas. “Nos afirmou que até a eleição ele não ia pautar nada que alterasse a situação do presidente Lula, tanto do ponto de vista de punição de segunda instância, quanto da questão da lei da ficha limpa eleitoral.”(Cf. Piauí.12/3/2021. “O general, o tuíte e a promessa”. Matéria assinada por Mônica Gugliano e Tânia Monteiro). Não é verdade que cada povo tem a justiça que merece. Nós não merecemos isso.
O autoritarismo tupiniquim – O ora Ministro da Justiça e da Segurança Pública (quem é ele mesmo?), de olho numa vaga no STF, transforma a pasta sob seu comando, e a PF em particular, numa polícia política do bolsonarismo mais canhestro. Desobrigado do combate ao crime, agora está investigando/perseguindo, a mando do capo, a vice-presidente da Associação dos Docentes da Universidade Federal Rural de Pernambuco (Aduferpe), a professora Erika Suruagy. O motivo seriam outdoors patrocinados pela associação, com os dizeres: “O senhor da morte chefiando o país. No Brasil, mais de 120 mil mortes por COVID-19’. #ForaBolsonaro” , dizeres que assino prazerosamente. Por motivo semelhante, o novo Filinto Müller tenta intimidar dois cidadãos de Palmas-TO que financiaram outdoors em que se lê que o capitão “não vale um pequi roído”.
E não vale mesmo.
ROBERTO AMARAL – Escritor, jornalista, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em 2015, foi nomeado conselheiro da Itaipu Binacional, foi presidente do Partido Socialista Brasileiro.
MAZOLA
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