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DE BOND – Uma andança pelo Rio de Janeiro no início da República – por Lincoln Penna
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DE BOND – Uma andança pelo Rio de Janeiro no início da República – por Lincoln Penna

Por Lincoln Penna –

Ano que vem teremos eleições municipais e é bom que nos debrucemos sobre o quanto temos de problemas a serem enfrentados por quem deve nos representar, seja no executivo ou no legislativo. Há os velhos entraves e os novos desafios que os eleitos devem se ocupar. Por essa razão lembrei de um pequeno artigo escrito com base no livro de João Chagas, português refugiado no Brasil. O texto articulado com o relato do autor de De Bond, título de seu livro, já faz tempo. Ele foi concebido quando pesquisava no vasto acervo do Real Gabinete Português de Leitura. Achei oportuno divulgá-lo para mostrar que muitas das nossas mazelas são antigas.

João Chagas era um republicano, que juntamente com um seleto grupo de ideólogos do republicanismo em Portugal buscou antecipar a instauração da República, que só viria acontecer em 1910. Este movimento que resultou provisoriamente fracassado ocorreu em 1891, talvez inflado pela proclamação do regime republicano no Brasil, esses abnegados republicanos foram à luta. Derrotados muitos deles se exilaram. Foi o caso do autor deste depoimento publicado no final do século XIX. Diz ele logo de início com a finalidade de descrever suas impressões sobre a terra que o hospedou.

LIVRO: De Bond, de João Chagas, brochura, 201 p., Livra

“Primeiros aspectos.

O estabelecimento da República, trazendo consigo a fórmula triunfante da igualdade, não contribuiu pouco para alimentar estes preconceitos, originalmente gerados numa grande indisciplina de classes, e ultimamente o espírito público achava-se tão eivado de anacronismos revolucionários, que se tratavam os criados dos cafés por cidadãos, como se não soubéssemos todos que eles o eram tão bem como nós.

Mas os povos novos são sempre assim: exageram-na, logo. (pp. 84-85, Lisboa, Editora Moderna, 1897).

No Rio de Janeiro vive-se na dependência do bond, porque as distâncias são enormes e o bond é o único meio aceitável de transporte. Perder o bond é muitas vezes um desastre.

Quando cheguei à estação correndo açodado, já o bond lá estava, completamente cheio. Mas no Rio de Janeiro nunca um bond está cheio. Quando não há lugares dentro, vai-se para as plataformas, e quando as plataformas estão ocupadas, pendura-se a gente nos estribos. Não há lotação. Cada qual aloja-se como pode. (pp. 85-86).

…no Brasil havia duas coisas que sempre se pagava aos outros e eram o bond e o café. (pp. 88-89).

Junto da estação da Muda, enorme hangar abrigando centenas de mulas, o bond foi subitamente assaltado por uma nuvem de pequenos mulatos, que pendurados no estribo, ofereciam jornais da manhã, bilhetes de loteria e rebuçados em bandejas, que eles erguiam alto nas pontas dos dedos de uma das mãos, enquanto com a outra se seguravam ao carro. Estes pequenos vendedores de doce, manobrando tão habilmente com a sua bandeja, e aguardando naquele ponto a passagem dos bonds, não deixaram, é claro, de me surpreender. Aqui, o argentino, que se havia apaziguado, novamente se sublevou, increpando desta vez a exagerada gulodice dos brasileiros.

Os brasileiros – referiu com exaltação – comem doce em toda parte.

– o senhor já reparou como os brasileiros têm os dentes estragados?

Respondi que não, que não havia ainda reparado.

– Pois repare. Olhe – tornou: uma das melhores profissões a exercer no Brasil é a de dentista. Percorra essas ruas, e não haverá uma única onde não encontre um dentista, e sempre com a casa cheia a transbordar. O dentista, no Brasil, faz fortuna. (pp. 90-91).”

Até aí o observador atento aos pequenos gestos do povo nos obriga a fazer uma analogia com os transportes públicos das grandes cidades brasileiras e, particularmente, no Rio de Janeiro, cujos ônibus desde há muito passaram a ser o meio de massa dos trabalhadores da cidade e não um meio suplementar. O amontoado desordenado de pessoas aflitas em busca de um espaço, seja ele qualquer, se assemelha em muito ao que observara o nosso interlocutor em seu relato. Mas outras passagens merecem ser reproduzidas neste livro que precisava ser reeditado. Logo adiante, nos diz Chagas.

“De resto, a própria disposição da cidade não se presta a uma vida de flanêrie. Em todo o seu vasto recinto há duas zonas: uma, que é aquela em que se trabalha; outra, que é aquela em que se repousa; uma que é a loja, o armazém, o escritório; outra que é a casa, a habitação, o lar. Esta divisão de zonas limita a vida, que assim se reparte em dois estados: o negócio e a família. (p.109).

O chamado homem que trabalha, que no Brasil constitui multidão, raro vai ao teatro. Quando não tem que fazer, o homem que trabalha fica em casa, e nisto consiste a sua diversão. (p.110).”

Aqui o autor faz menção à situação das condições de vida do trabalhador, cuja ausência de lazer é completa, salvo o descanso tido e naturalizado por quem trabalha como uma representação do lazer. Do falso lazer a ele sonegado e que se assemelha mais uma vez ao que é vivenciado pelo trabalhador nesse primeiro quarto do século XXI. Não bastasse a precariedade do transporte acresce a rotina casa – trabalho – casa. E casa quando se desfruta de uma dignamente. E continua o nosso visitante curioso.

“Há duas categorias de bond: o bond urbano, a que também ouvi chamar bondinho, por ser pequeno, e o bond propriamente dito, o bond grande.

O bond urbano percorre unicamente a cidade velha e é pequeno para melhor caber nos seus meandros. O bond grande leva-nos aos confins da cidade, atravessando os arrabaldes e parando aí onde a natureza não o deixa prosseguir. (p.110-111).

Semelhante serviço de transporte é explorado por três companhias – a do Jardim Botânico, a de Vila Isabel e a de São Cristóvão, que em três pontos diferentes da cidade tem as suas respectivas estações (p.111).

O bond é um detalhe característico da vida brasileira. Constitui um laço permanente a existência do cidadão e a rua; é um constante traço de união entre a coletividade e a família. Tem proporções de instituição, e se a iniciativa particular não o criasse, o Estado teria forçosamente de promulgar (p.114).

Tendo curiosidade de ver, tomei o bond, e foi de bond que pude, num curto espaço de tempo, senão compreender, vislumbrar alguns aspectos da civilização brasileira (p.115).

Novos aspectos.

Os estrangeiros, e particularmente os portugueses, tão numerosos no Brasil, afirmam frequentemente que ele é por excelência o país do trabalho, como se os outros países não fossem igualmente de trabalho. Esta fórmula resulta de que no Brasil se dá a palavra trabalho a significação de negócio, porque ele é na realidade o país do negócio, e tudo quanto não seja negócio não tem ali foros de trabalho.

Trabalhar quer dizer negociar, comprar, vender, abrir a loja, fechar a loja, dar balanço, debitar, creditar, liquidar. Trabalhar é estar ao balcão; ir à alfândega, aos bancos, à Bolsa, à praça encher faturas, ler câmbios, dar encomendas, despachar fazendas, encaixotar, desencaixotar. Os que não seja isto não é trabalho.

Num país em que o negócio assim absorve tudo, a vida intelectual é necessariamente penosa (pp.119-120).

Contudo, dentro desse Brasil povoado de colonos, há um outro Brasil de brasileiros ricos, que, vivendo dos proventos prodigiosos da agricultura, não fazem negócio. São os brasileiros do Café de la Paix…. O brasileiro rico conhece duas únicas terras: o Brasil e Paris (pp. 124).

Assim, a vida íntima da gente está toda eivada de estrangeirismo (p.125).

Da França levam tudo o que é preciso para viver bem, os móveis de luxo, os tapetes, as criadas, os trens; do Brasil guardam a terra de que não prescinde, o cafezal, de onde jorra o ouro, o teatro lírico e o hábito das coisas açucaradas.

Esta população aristocratizada pela fortuna vive à parte, nos lindos subúrbios do Rio. Vai a cidade algumas vezes, mas não passa da rua do Ouvidor….Esse Brasil não trabalha – frui (p.126).

Os portugueses disputam ainda aos brasileiros o domínio do Brasil, o que tem um remédio simples e é os brasileiros substituírem-se aos portugueses de que depende o seu progresso e a sua prosperidade. Quando houverem feito isto, desaparecerão os ódios porque o ódio não é o sentimento de quem triunfa (p.153).

Refleti que o Brasil não era, por certo, um país de pretendentes. De outra forma, a entrada de um gabinete de ministro não seria franqueada com tanta facilidade (p.174).

No próprio palácio da presidência da República penetra-se sem grande embaraço e ouvi que era mais fácil abordar o chefe do Estado no Brasil do que chegar à presença de um simples chefe de repartição em Portugal.

Convém, contudo, acrescentar que isto provém em parte da bonomia natural do caráter brasileiro. O brasileiro é, por excelência, o homem sem cerimônia, e esta expressão – não faça cerimônia, é a que mais frequentemente se ouve no Brasil.

O mesmo aparente tumulto que se nota nas coisas do Estado, nota-se nas coisas do lar. (p.175).”

A diferenciação das classes sociais fica bem patente como não poderia deixar de ser em se tratando de uma sociedade de passado colonial e escravocrata, e Chagas descreve com nitidez e certa ironia, sobretudo quando se refere aos gostos das classes dominantes, patronais e ainda certas de que mandam no país à revelia de um regime que seria de todos igualmente, como se dizia à época. Traço marcante que ainda hoje prevalece na hipocrisia dos “bem-nascidos”.

No que se refere as relações entre brasileiros e portugueses na cidade mais imponente do Brasil naqueles tempos não é de se estranhar. Fora o combustível, como se sabe, de um fenômeno a extravasar esse sentimento de segregação dos lusitanos, haja vista a onda lusofóbica que ganhou grande manifestação desde o governo do marechal Floriano Peixoto. Os lusos dominavam o pequeno comércio numa época de guerra civil, como fora a Revolta da Armada (1893-1894) de modo a disparar a carestia na cidade devido ao fechamento do Porto do Rio. Os embates entre jacobinos cariocas e a malta portuguesa se espalhara pela cidade. E continua Chagas o seu rico relato a lamentar a falta de posturas, termo que se aplica nao apenas às relações sociais, mas também à coisa pública.

“Pelo que pude ver em tão curto espaço de tempo, pareceu-me que o mal fundamental da sociedade brasileira é uma profunda indisciplina de classes.

A desordem, a rixa, o motim são freqüentes acidentes de rua na capital do Rio de Janeiro. À noite, nos teatros, não são raros os pugilatos, por questões de mulheres. (p.179).

O Império é bastante culpado desta indisciplina, que ele, para se servir, favoreceu notavelmente; mas o que sem dúvida a veio agravar foram as lutas que acidentaram os primeiros anos da República. (p.181).

Proclamação da República”, 1893, óleo sobre tela de Benedito Calixto (1853-1927). Acervo da Pinacoteca Municipal de São Paulo-SP

No Rio de Janeiro todo o comércio fecha precipitadamente quando há notícia de alguma desordem grave nos arredores. (p.182).

Não sei, nem está no plano modesto deste livro, averiguar como o Brasil conseguirá impor-se uma severa norma de conduta civil, tão necessária à afirmação do seu progresso moral, mas afigura-se-me que com simples leis o poderá fazer sem dificuldades, se encontrar quem disponha de energia bastante para fazê-las executar.

O Império corrompeu-o; é mister que a República o moralize, tendo em vista que os defeitos do Império foram precisamente as suas qualidades. O Império foi dissolvente, porque não teve caráter. A República tem de ser intransigente se quer salvar o Brasil. A obra do sectarismo está finda, o que urge é começar a obra da Reforma, esquecendo por um momento que existem partidos, para se recordar que existe a sociedade, definindo as constituições, mas não cessando de promulgar posturas, porque acima de tudo é de posturas que o Brasil precisa. Posturas para as suas ruas, posturas para os seus cidadãos, posturas para os seus soldados. Posturas – quer dizer: ordem.

 Com um bom código de posturas e uma polícia em termos, o Brasil fica novo (pp.185-186).”

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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