Por João Batista Damasceno –
Tendo saído do mundo da natureza vivemos no mundo da cultura.
Muito do que fazemos não é natural, mas cultural. Alimentar-se ou hidratar-se é um ato biológico e determinado pela natureza. Como ou com o que se alimentar ou se hidratar é determinado pela cultura. Enquanto nós, os brasileiros, não nos alimentamos com insetos ou morcegos outros povos não se alimentam com camarão ou carne de porco. Uma amiga sul-coreana me falou sobre carne de cachorro, hábito alimentar em seu país. Achei estranho. Mas um amigo comum, árabe, que nos ouvia, interveio e me perguntou sobre nosso hábito de comer carne de porco, para ele, hábito alimentar tão estranho quanto os insetos, morcegos ou cachorros.
Cultura é um conceito amplo que representa o conjunto de valores, tradições, crenças e costumes de determinado grupo social. A cultura embora dinâmica é recepcionada, vivida e transmitida por meio da comunicação ou imitação de uma geração para outra, sucessivamente. A cultura é um aprendizado social, vivenciado na família, na escola e nos demais grupos sociais nos quais o indivíduo se integre. Cultura é o patrimônio social de um grupo, traduzindo-se nos padrões dos comportamentos humanos e envolve conhecimentos, experiências, atitudes, valores, crenças, religião, língua, hierarquia, relações espaciais, noção de tempo, conceitos de universo e muitos outros que caracterizam e identificam um determinado grupamento.
A cultura na sociologia representa o conjunto de saberes e tradições de um povo. Estes são produzidos pela interação social entre os indivíduos de uma comunidade ou sociedade. Em sessenta momentos diferentes a Constituição da República se refere a cultura ou valores culturais. No artigo 5º dispõe sobre direitos e garantias fundamentais e expressa que qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ao patrimônio histórico e cultural.
A mesma Constituição dispõe que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios a proteção às obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, assim como impõe o dever de proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação. O poder de legislar sobre matéria cultural igualmente é definido concorrentemente a todos os entes federativos.
No título que trata da ordem social a Constituição reservou seção própria para tratar da cultura e dispõe que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, bem como impõe o apoio, incentivo, valorização e difusão das manifestações culturais. Dispõe ainda a Constituição que o estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
A cultura pressupõe a passagem do estado de natureza para um estado civilizatório. A negação do conhecimento acumulado ao longo da história é a negação da cultura. É uma incompreensão do progresso da humanidade e exaltação da primariedade da vida. Há os que se orgulham da estupidez e os que revestem a incultura com a verborragia empolada.
Viver em sociedade implica estar integrado aos seus valores. As instituições foram criadas e são mantidas para dar referência para os comportamentos presentes e reduzir as incertezas do futuro. Como seres sociais somos capazes de dar significado ao que originariamente não o tinha. Os sociólogos designam este processo de reisificação ou coisificação. ‘Res’ é coisa em latim e é de onde provém as palavras república, que significa coisa pública, e reivindicar, que significa requerer uma coisa. No livro O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, há um diálogo entre o Pequeno Príncipe e uma raposa. Quando o menino vai partir a raposa lhe diz que para ela, até então, o trigal era coisa indiferente, pois raposas não comem trigo. Mas que a partir daquela data quando visse o vento no trigal se lembraria dos cabelos dele e que imaginaria que estivesse por perto. O trigal que antes era indiferente para a raposa ganhou um significado. Os símbolos diversos com os quais convivemos cotidianamente, e que dão sentido aos nossos comportamentos, igualmente foram construídos socialmente, seja a indumentária, os artigos religiosos ou práticas sociais diversas.
Conhecimento é cultura. Mas a falta de conhecimento formal não é ausência de cultura. Ao contrário. O conhecimento é apenas um dos elementos culturais de um grupo social. Afinal, todos conhecemos pouco e ignoramos muito. O conhecimento é limitado a apenas ao que foi objeto de nossa compreensão. Mas vivemos um momento no qual, sobretudo em razão das redes sociais, as opiniões estão sendo sobrepostas ao conhecimento. Assim, difundem-se as fake news, publicizam-se as opiniões despidas de fundamento e enaltece-se a estultice. Mas a sociedade caminha para frente e ocasionalmente corrige seus erros e excessos.
A democracia é parte da cultura de um povo e nós a estamos construindo. Falta muito. Mas já demos significativos passos.
JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Colunista do Jornal O Dia; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Jornalista com registro profissional no MTPS n.º 0037453/RJ, Sócio honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros/IAB, Conselheiro efetivo da ABI.
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