Por Felipe Coutinho e Pedro Augusto Pinho

O caso do Atlântico Norte.

 “Em 1987, no jantar de comemoração dos quarenta anos de fundação do Institute of Economic Affairs (IEA), Margaret Thatcher reconhecia que seu governo não teria sido possível sem a base ideológica do IEA, cujo presidente, Ralph Harris, foi até 1984 presidente da Sociedade Mont Pèlerin” (Donald Stewart Jr., O que é o liberalismo, Instituto Liberal, RJ, 1990, 4ª edição).

Margaret Thatcher e Ronald Reagan foram os dirigentes do Reino Unido e dos Estados Unidos da América que, na década de 1980, retiraram os controles dos seus Estados Nacionais sobre as operações financeiras (desregulações). A partir de então, engrossadas com os capitais ilícitos (tráfico de drogas, contrabando de armas, corrupções de toda sorte, prostituição etc.), as finanças, escondidas no anonimato dos paraísos fiscais, puderam se constituir em um novo poder mundial, destruindo conquistas civilizatórias que descortinavam um mundo mais justo, solidário e humano.

Tinha início o poder do rentismo, do neoliberalismo e da destruição do estado de bem estar social e do valor do trabalho. E, cobertas pela propaganda incessante das privatizações e do estado mínimo, as instituições até então garantidoras da vida passaram a ser garantidoras, acima de tudo, dos lucros.

Quem eram os participantes desta Sociedade que expandia o egoísmo, a renda sem produção, o lucro sem trabalho, e a inevitável corrupção a garantir um novo estado de direito? Entre outros o italiano Luigi Einaudi (1874-1961), o francês Jacques Rueff (1896-1978), o alemão Ludwig Erhard (1897-1977), o barão inglês Lionel Charles Robbins (1898-1984), o estadunidense Milton Friedman (1912-2006), o argentino Alvaro Alsogaray (1913-2005) e os austríacos Ludwig von Mises (1881-1973), Friedrich Hayek (1899-1992) e Karl Raimund Popper (1902-1994).

Importante teórico deste grupo, von Mises, no livro que transcreve as conferências realizadas na Argentina, no fim de 1958, na versão brasileira “As seis lições” (Instituto Liberal, RJ, 1993), mostra a enorme confusão, talvez proposital, que embaralha comportamentos morais, atitudes éticas, interesses financeiros, teorias econômicas e filosofias e regimes políticos, para concluir que o neoliberalismo, ao contrário do que a prática demonstra, conduz o homem para plena independência e liberdade.

A fragilidade teórica do neoliberalismo fica bastante evidente com a leitura de Friedrich Hayek, recebedor em 1974, com o sueco Gunnar Myrdal (1898-1987), do Prêmio do Banco da Suécia (Sveriges Riksbank) para as Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel (denominado incorretamente Prêmio Nobel de Economia). Vejamos seu livro de 1944, na tradução do Instituto Liberal, “O Caminho da Servidão” (IL, RJ, 1984).

Este trabalho procura antagonizar planejamento à liberdade. Poderia ser uma introdução à anarquia, se não fizesse um confuso pedido de socorro ao estado de direito. Transcrevemos: “a gestão das atividades econômicas por uma autoridade central caracteriza-se assim como um caso particular da distinção mais geral entre o Estado de Direito e o governo arbitrário. Sob o primeiro, o governo limita-se a fixar normas determinando as condições em que podem ser usados os recursos disponíveis, deixando aos indivíduos a decisão relativa aos fins para os quais eles serão aplicados. Sob o segundo, o governo dirige o emprego dos meios de produção para finalidades específicas”.

Por todo capítulo “A Planificação e o Estado de Direito” leem-se ataques ao socialismo, ao nazismo, ao planejamento e busca defender um direito abstrato, como se aplicado por um computador, que não deixasse “o caso concreto ao poder discricionário do juiz ou autoridade competente”. Mas, ao tratar da “socialização do direito”, acaba com criticar o ideal neoliberal do direito justo de Karl Larenz (1903-1993), que adota esta expressão e conceito do filósofo do direito Rodolf Stammler (1856-1938) que vê no direito não a causalidade do reino natural, mas o “reino do querer, da finalidade ou da teleologia”.

Um aspecto curioso, senão cínico, do neoliberalismo, é a tentativa de associar e confundir a ação econômica com a ética. Veja-se o exemplo do harvardiano “Nobel de Economia”, Amartya Kunar Sen, que escreve, em 1987, “On ethics & economics” (traduzido por Laura Teixeira Motta, “Sobre Ética e Economia”, para Editora Schwarcz/Companhia das Letras, SP, 2012).

Com fundamento nos pensadores dos séculos XVII e XVIII e nas críticas dos séculos XIX e XX, o Estado Democrático de Direito, onde se ergueram sociedades capitalistas e socialistas, foi solapado pela ideologia da competitividade, do empreendedorismo, como se a liberdade fosse uma garantia da natureza e não uma conquista social. Com base neste falso pressuposto, as ações passaram a ter a única avaliação do lucro.

Ora, os Estados Nacionais vinham sendo construídos a partir do término das Grandes Guerras, para atender seus habitantes, propiciar vidas mais tranquilas e confortáveis aos cidadãos. E, em grande parte da Europa, obtinham-se resultados animadores, maiores participações das pessoas na sociedade, a confiança que os filhos teriam sempre vida melhor do que os pais e que as inevitáveis surpresas, as desditas da vida, teriam um anteparo na ação estatal.

A partir dos anos 1980/1990 tudo rui. O Estado Nacional é satirizado como um elefante em loja de louças, a garantia proporcionada pela ação estatal passa a ser computada como um ônus generalizado, pouco a pouco passam à esfera privada os serviços públicos que se tornam muito mais caros, impedindo o atendimento dos menos aquinhoados, lançando às incertezas e mazelas a maioria da população. É nesta situação de progressiva penúria dos Estados e das populações que surge a pandemia do coronavírus.

Os EUA vivem uma fantasia, construída não só para enganar outros povos, mas para que a elite dirigente se perpetue, mesmo com a alternância no governo. A expressão mais feliz e também a mais tristemente irônica sobre quem manda nos EUA é antiga, de quando as grandes empresas eram produtoras e não meras especuladoras financeiras como hoje. “A grande alteração dos republicanos substituindo os democratas é que o governo sai da General Motors para a General Eletric”.

Vários e bons analistas escreveram sobre as contradições estadunidenses, em especial a dos discursos com as práticas. Mas citaremos um brasileiro, que pelo seu tempo e modo de vida não poderia ser chamado comunista. Tratamos de Eduardo Prado (1860-1901), fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL), e seu livro “A Ilusão Americana”. Com dados objetivos, alguns vividos como diplomata, outros colhidos em suas viagens, este membro de família tradicional paulista, concluiu “a fraternidade americana é uma mentira”.

Mas, para o próprio natural estadunidense, as épocas de recessão econômica, de desastres naturais, de insucessos na política externa que obrigam maiores dispêndios e menores receitas, se materializam em pauperização, nas enormes dificuldades de sobrevivência, pois o Estado está alheio à questão social, apenas se interessa pelos fluxos monetários e os lucros empresariais. E como todos minimamente informados sabem, os EUA carregam a maior dívida do planeta.

Deste modo os EUA apresentam uma situação ímpar, pois os investimentos públicos na saúde, na qualidade de vida, na proteção social são insignificantes ao longo de toda sua história. É o país que sempre premiou o vencedor, que sempre avaliou um bem pelo custo ou pelo ganho monetário, as ações pela competitividade, nunca pela contribuição à sociedade, à humanidade, à vida confortável e tranquila.

A PANDEMIA DO COVID-19 E O NEOLIBERALISMO

Os vírus sempre estiveram conosco, há séculos conhecemos sua capacidade de contágio e letalidade, não é novidade que para a prevenção são adotadas estratégias de distanciamento social, são necessárias máscaras e luvas, além de equipes e materiais para realização massiva de testes. Uma vez havendo o contágio é preciso mitigar suas consequências e para isso são necessários equipamentos e leitos hospitalares para tratamento convencional e intensivo.

Em 1918 houve a gripe espanhola que matou dezenas de milhões, mais recentemente SARS e Ebola, mas por que tantos países não dispunham das condições há tanto tempo conhecidas para fazer frente ao COVID-19?

A pandemia atingiu de maneira desigual Nações da mesma região geográfica, que tiveram tempo similar para tomar conhecimento da pandemia e agir.

Há diversos fatores que podem resultar na melhor, ou pior, reação dos Estados Nacionais à crise sanitária: velocidade na realização dos testes, isolamento social e/ou regional, disponibilidade e disposição para uso de máscaras, capacidade hospitalar, de planejamento e execução das políticas públicas.

Todos estes fatores de sucesso, exceto os culturais que geralmente são similares geograficamente, dependem da capacidade da ação estatal. As empresas privadas (o mercado) não têm interesse em atuar na prevenção sanitária e em adquirir equipamentos e disponibilizar leitos que no futuro podem ficar ociosos, simplesmente porque a lucratividade não é atraente.

E empresas privadas buscam o lucro, não objetivam garantir a saúde pública aos menores custos sociais possíveis.

A pandemia foi o gatilho para a crise econômica que é sistêmica e cíclica no capitalismo global, o que torna o problema socioeconômico ainda mais grave.

Neste trabalho investigamos a relação entre a presença do Estado na economia – que é inversamente proporcional a adoção das políticas neoliberais – e a gravidade da pandemia sobre os países.

Seria muito difícil separar, em orçamentos e relatórios especificamente construídos para fraudes, as despesas com a cidadania. Preferimos então adotar um caráter mais geral que estará até inflando recursos que não se destinam ao bem estar de seus nacionais: os gastos per capita do governo. Para medir a presença do Estado na economia ou, em sentido inverso, a adoção das políticas neoliberais, inferimos a partir do Gasto Governamental per capita em dólares (paritários pelo poder de compra).

Para medir a gravidade da pandemia utilizamos o indicador do número de mortes atribuídas ao COVID-19 por milhão de habitantes, aos 80 dias após a ocorrência de 0,1 mortes por milhão de habitantes por país.

A análise se restringe aos países do Atlântico Norte, Europa Ocidental e Estados Unidos. Seria prematura avaliar o impacto da pandemia nos países da Europa Oriental e na América Latina.

Grafico
O Gráfico evidencia a tendência de que a gravidade da pandemia é maior para os países com menores Gastos Estatais per capita

Reconhecemos que existem outros fatores que podem resultar em melhor, ou pior, capacidade dos Estados Nacionais em lidar com a crise sanitária. Nossa intenção é investigar se a maior presença do Estado na economia permite que as Nações tenham melhores condições de se prevenir e de reagir à pandemia e à crise econômica. Os dados evidenciam que sim, esta tendência nos parece evidente.

CONCLUSÃO

Apesar de todas as evidências da catástrofe causada pelo neoliberalismo e da incapacidade (ou desinteresse) das empresas privadas em atuar preventivamente na saúde pública das Nações, os porta vozes do capital privado não aceitam que o Estado assuma sua responsabilidade na saúde e demais serviços públicos. Tentam impedir a presença do Estado porque seria a revelação de que o serviço público estatal é muito mais eficiente quando os objetivos vão além da intenção de acumulação privada e dos lucros de curto prazo.

*Felipe Coutinho, engenheiro químico, Presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (AEPET). Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado, Diretor da AEPET.


Fonte: AEPET