Redação –
Primeira presa da Lava Jato, a doleira Nelma Kodama afirma que não vê conexão entre as transações que fez e a operação. Dois meses após ser beneficiada por indulto e retirar a tornozeleira eletrônica que usa desde que deixou a prisão, em 2016, ela lança um volume de suas memórias, em que relata o período no Paraná e questiona os termos da sua delação.
“Tive o pior acordo de colaboração”, diz ela em “A Imperatriz da Lava Jato” (Matrix), depoimento ao jornalista Bruno Chiarioni transformado em livro. Em entrevista à Folha, ela diz que teve “uma pena pior que um homicida” e compara sua dívida a uma pena perpétua.
“AMADA AMANTE” – Conhecida pelo episódio em que cantou a música “Amada Amante” na CPI da Petrobras ao se referir ao doleiro Alberto Youssef, com quem conviveu de 2000 a 2009, e pelos ensaios de fotos com tornozeleira, ela refuta o rótulo de “rainha do deboche”.
Apesar das dívidas e de, segundo ela, sobreviver “da caridade dos amigos”, comemora ter conseguido guardar as roupas que tanto gosta. “Continuo tendo meu sapato Chanel, minha bolsa Chanel, minhas coisas boas. Tentaram, mas não tiraram meu sapato Chanel”, afirmou.
Como foram os dias após a retirada da tornozeleira?
Eu queria dormir fora de casa, porque tinha um horário para chegar, às 22h, então quando dava 20h eu já começava a ter aflição de voltar para casa. Me incomodava muito dormir com aquilo (tornozeleira), tenho marcas no meu tornozelo até hoje e fico me perguntando se vão sair. Eu dormia literalmente plugada, porque tinha que carregar a bateria, então eu enrolava o fio na perna e dormia com aquilo.
Quando eu tirei a tornozeleira queria fazer coisas simples, como tomar banho sem a tornozeleira, lavar o meu tornozelo e tirar aquela coisa que estava me prendendo, aquelas amarras em meu pé que não permitiam que eu voasse, que eu pudesse ser livre.Quando falo dormir fora de casa é ver o sol nascer, ficar até tarde na rua. Fiz isso só no segundo dia [risos], no primeiro não fiz.
No livro, a senhora diz que assumiu muitas culpas na Lava Jato que não eram suas. Quais são?
Quando houve a busca e apreensão e foi deflagrada a operação [Lava Jato], no dia 17 de março de 2014, eu tinha sido presa três dias antes. O pessoal sempre era orientado que, se acontecesse alguma coisa comigo, era para eles não irem trabalhar, não estarem no escritório e tirar a documentação. Ninguém pegou nenhuma prova e eu não tinha nenhuma ligação com a Lava Jato. Eu não sou Petrobras, eu não sou Lava Jato. O que é a Lava Jato?
Começou com a Petrobras, mas se expandiu para a Odebrecht.
Eu nunca fiz negócio com empreiteira, eu não conhecia o Marcelo (Odebrecht)…
Mas e as transações com Alberto Youssef?
Era o Youssef que fazia, não era eu. Quem que fazia negócio com [os ex-deputados] André Vargas, Luiz Argôlo, Pedro Corrêa?
Existe uma acusação por evasão de divisas…
O que eles me incriminaram? Por 91 contratos de câmbio celebrados com a corretora TOV, que eu, Nelma Kodama, nunca fechei. Nunca liguei na TOV para fechar um contrato. Os 91 contratos tinham assinaturas que não foram minhas. Eu assumi os contratos como se fossem meus, que somados foram US$ 5,3 milhões, nos quais eu respondo a um processo da Receita Federal que dá um total de multa de R$ 78 milhões. Na época foram R$ 12 milhões e hoje eu tenho uma multa de R$ 78? Gostaria muito de pagar essa multa, mas quem paga uma multa dessas? É impagável. Eu tenho uma pena perpétua.
Eu tirei a tornozeleira, tenho meu indulto, mas eu não tenho conta em banco, porque eu não posso ter. Eu vou numa agência para abrir uma conta e meu nome não passa no compliance do banco, porque eu sou pessoa de risco e não posso ter uma conta. Como é que você recebe seu salário? Eu preciso receber. Como você vai me contratar assim?
Então não devia ter assumido nenhuma culpa na Lava Jato?
Eu não sou Lava Jato. Eu devia ter sido por um crime: por ser doleira. O que eu fazia? Comprava e vendia dólares para os clientes que iam viajar e queriam comprar dólares acima dos valores que eles queriam declarar, para o cara que tinha caixa dois e queria sonegar ou para o cara que queria comprar mercadoria fora do país. Fazia evasão de divisas e sonegação fiscal.
Não devia ter sido condenada por ter uma mente criminosa, como dizia o doutor Moro [Na verdade, Moro aumentou a pena “a título da personalidade” de Nelma]. Pela minha personalidade? Ele é psiquiatra? Na época engoli, estava presa, ele me julgou. Fui condenada por ter uma “mente criminosa”. Poxa, será que a dele não é? E o [ex-procurador-geral Rodrigo] Janot?
Eu sou condenada a 18 anos e minha pena caiu para 15, eu cumpro dois anos e três meses e faço um acordo que eu não tive benefício nenhum, pelo contrário. Eu não tive redução de pena, o pouco de patrimônio que eu ia conseguir com meu acordo com a Polícia Federal eles tomaram e eu tenho prazo para sair da minha casa. Estou começando minha vida, aos 53 anos, sem nada e sem ter direito a ter conta no banco.
Mas de quem foi a responsabilidade pelo acordo nesses moldes?
Foi minha, porque eu estava presa, eu estava pressionada, desesperada. Fica preso dois dias, você entrega até tua mãe, e eu não entreguei.
No livro a senhora ainda diz que viu muitos documentos dos quais não tinha conhecimento. Pode exemplificar?
Por exemplo, esses 91 contratos. Tem contrato lá que eu disse: “Tá bom, manda, é meu”.
Também diz que deu informações informalmente para a PF por 16 meses antes de fechar a delação com o Ministério Público. Se sentiu lesada?
Claro que sim, porque isso deveria pesar no meu acordo. Um acordo tem duas vias: tem que ser bom para mim e para você. Eu fui presa em março. Em nove meses ninguém quis saber de mim. Por que que eles quiseram saber de mim [depois]? Porque eles precisavam de alguma coisa. Houve uma conta que eu movimentei muito pouco em 2014. Quando eu fui presa, essa conta continuou sendo movimentada por alguém. E quando eu estava dando meus depoimentos para o [delegado da PF] dr. Marcio Anselmo descobriu-se que essa conta continuava sendo movimentada.
Comecei a olhar com os olhos de quem conhece a movimentação e dei os caminhos das pedras para ele. Ele passou essa informação para Brasília e aí foi deflagrada a Operação Hashtag, contra terrorismo na Olimpíada. Eu colaborei e muito, mas não está em meu acordo. Você acha que uma pessoa fica 16 meses sem ninguém dar atenção? É porque eu estava sendo bem usada lá.
E qual seria o seu acordo ideal?
Me julgar pelo que eu fiz.
Mas aí não seria um acordo. Seria um julgamento. E eu paguei pelos meus crimes. Porque de fato eu fui doleira, eu fiz as transações. Fui condenada a 15 anos. Tive uma pena mais pesada que um homicida, que um traficante. Dois anos e meio presa, fechada. Sabe quantas vezes eu vi a Lua? Nenhuma, em dois anos e meio.
Não tinha uma janela, saída de ar?
Tinha uma janelinha pequenininha. É bom, porque hoje está tudo bom. Me falaram que o ar-condicionado aqui estava quebrado, e eu falei: está tudo certo [risos]. Para quem já passou o que eu passei…
A senhora disse que se sentiu usada pela Polícia Federal.
Usada é um termo chulo e eu sou uma mulher elegante. Desculpa, eu estava no calor da… Fui conduzida gentilmente? Coagida? Tem uma parte do livro que fala do Nestor [Cerveró] [pede licença e abre o livro em uma passagem que mostra uma mensagem do ex-diretor da Petrobras a ela]. “Apesar de toda a dificuldade e tensão emocional a que fomos submetidos.” Não fui eu que escrevi isso aqui. Foi ele.
Quando você vai preso, vai preso. Fica lá na sua cela. Ninguém fica assim [cutuca o braço do repórter]. O que é que ele [Cerveró] foi aqui? Coagido? Tem que perguntar para ele. Enquanto aquele homem não fez delação, não teve sossego, ao ponto de o filho dele ter que ser submetido a gravar o [ex-senador] Delcídio [do Amaral] falando. Um filho fazer isso? A que ponto? Por que será que ele fez isso, só porque o papai está preso? Não. Imagina o desespero. Porque não queriam mais o acordo dele, ou queriam, mas queriam que ele falasse mais, porque nunca tudo é o bastante.
Esse foi seu caso?
Acredito que sim. É uma coisa insaciável. A custa da liberdade dos outros. Tudo não tem limite, ali não tinha limite.
Acha que alguns policiais desconfiavam da veracidade dos seus depoimentos?
Toda vez eu tinha que mostrar com sangue aquilo que eu falava e sempre eles falavam assim: ah, porque não tem muita consistência o que você fala. Não tem consistência aquilo que te interessa, aquilo que não te interessa você fala que não tem, porque você sempre tem que dar mais, nada é suficiente. Eu ouvia isso.
Nesse último processo, a senhora acabou virando ré por falso testemunho [acusada por um delegado e um escrivão da PF]. Queria saber a sua versão.
Eu não fui comunicada se a minha defesa já foi citada nesse processo. Logo que eu saí, fui a Curitiba responder sobre isso, ainda estava muito confusa e não me lembro muito bem o que foi dito. Foi numa época que eu estava com uma depressão muito forte e não me lembrava. Eu soube através dos jornais [da denúncia].
A senhora relata que construiu uma relação de amizade com várias pessoas que passaram na carceragem da PF. Alguma continuou após a prisão?
Nós éramos muito próximos, mas as amizades não continuam, porque as pessoas querem esquecer. Tudo aquilo que remete [à prisão] você prefere não lembrar. Ninguém quer se lembrar nada. Eu não tenho esse problema. A maioria das pessoas não dá entrevista, querem esquecer, mas cada um é cada um.
Eu tive momentos muito difíceis, ruins, com minha família. Amigos que eu pensei que tinha, eu não tinha. Pessoas da minha família, que é pior ainda, ficaram de mal e somos de mal até hoje. Tenho alguns [amigos] sim, mas eu tenho certeza que as pessoas que eu conheci lá, se eu precisar de alguma coisa, eu tenho certeza que têm memória. Pelo menos eu tenho.
A senhora reclama que a imprensa te trata como “a mulher do deboche”. Mudaria alguma atitude que fez publicamente nos últimos anos?
Não, nenhuma. Não deixaria de falar nada, cada momento tem um momento. A minha primeira entrevista [após a prisão] foi naquela revista [Veja] e custou meu apartamento, porque aquilo foi o pelo no ovo para falarem: “Você está debochando”. Qual o problema de eu ter um sapato Chanel? Eu já tinha. Eu continuo tendo.
Continuo tendo meu sapato Chanel, minha bolsa Chanel, minhas coisas boas. Tentaram, mas não tiraram meu sapato Chanel. Apesar de terem destruído parte do meu armário, da minha geladeira, de tudo, porque eles [PF] ficaram com raiva. E a imprensa deve ser livre. Você acha que é deboche? É deboche. Eu não considero que é um deboche. Passar o que eu passei e estar de pé e estar aqui hoje, isso não é ser uma rainha do deboche. Eu não me considero rainha do deboche.
Como está sua situação financeira hoje?
Como diz meu amigo Pedro Corrêa: hoje eu vivo da caridade dos amigos. Eu descobri que não precisa de tanto para viver. Graças a Deus guardei bastante sapato, roupa, bolsa.
Comer não pode comer muito que engorda. Passear a gente passeia, porque tem as casas dos amigos para ir. Shopping é de graça, você pode andar. Parque Ibirapuera também. Lógico, precisa de dinheiro para comer, pagar conta do condomínio e luz, mas a minha realidade é outra hoje.
Fonte: Folha, por José Marques
MAZOLA
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