Por Lincoln Penna –
“Lutei contra a dominação branca e contra a dominação negra. Defendi o ideal de uma sociedade democrática e livre, na qual todas as pessoas vivem juntas em harmonia e oportunidades iguais. É um ideal para o qual espero viver e conseguir realizar. Mas, se for preciso, é um ideal para o qual estou disposto a morrer”. (Depoimento Nelson Mandela no Julgamento de Rivonia, 20 de abril de 1964)
Mandela é um símbolo da luta pela liberdade de um povo submetido a mais longa segregação dos tempos contemporâneos. Seu combate permaneceu intacto nos vinte e sete anos de prisão, sem jamais dobrar-se diante de seus julgadores brancos e fanatizados pelo apartheid racial e social. Mas, nós tivemos no século XVII em Zumbi o nosso símbolo de resistência e luta que deve orgulhar nosso povo.
O dia em que a data da consciência negra representar de fato a consciência da nação brasileira em sua diversidade, nós estaremos festejando verdadeiramente a nossa identidade. Mas para que esse dia venha a acontecer é preciso não apenas alimentar esse desejo. Mais do que isso, é preciso desmontar a engrenagem movida pela ideologia racista e turbinada pela usura febril da gana pela acumulação de riqueza dos donos do poder. E isso implica em luta permanente por essa conquista.
A lembrança de Zumbi dos Palmares, que não se curvou à escravidão imposta pelos senhores de então, nasceu nas Alagoas no ano de 1655. Foi um dos principais representantes da resistência negra e atraiu um grande número que se libertou do regime escravocrata dos colonizadores. Eram tempos do Brasil Colônia. Zumbi fundou uma comunidade livre formada por escravos egressos das fazendas dos escravocratas. Essa comunidade liberta localizada na região da Serra da Barriga, atualmente faz parte do município de União dos Palmares no estado de Alagoas.
Dos muitos quilombos, áreas de liberdade conquistada pelos escravos negros vindos da África ou nascidos no Brasil, Palmares se notabilizou pelo tempo em que se manteve livre dos açoites da escravidão. Alguns prosperaram como Palmares que se manteve durante cerca de um século, outros sucumbiram pela força da repressão, mas seus habitantes quilombolas jamais se renderam.
Em 11 de novembro de 2011 foi instituído o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, que tem sido celebrado em 20 de novembro, dia em que Zumbi morreu. Portanto, só há dez anos os legisladores passaram a incluir no calendário das festividades nacionais a homenagem ao líder da vasta comunidade negra brasileira, muito embora sua lembrança por parte dessa comunidade e de todos os brasileiros que comungam com essa homenagem venha de longe, e motivos não têm faltado.
Afinal, somos como nação ainda uma sociedade dividida não apenas pelo preconceito arraigado e por isso mesmo recorrente, mas em razão de outro não menos grave que nos impõe a divisão, que é a desigualdade social. Assim, racial e socialmente separados de tudo que nos impede de construir uma nação de verdade, a combinação desses fatores acaba por produzir um fenômeno a ser considerado. Refiro-me ao fato de um enorme contingente de nosso povo ainda se encontrar excluído dos bens fundamentais e do acesso a mais elementar condição de vida digna, uma vez que negros e pobres constituem a grande maioria de nosso povo.
Aos poucos e ao longo de minha formação cidadã fui me dando conta de que esse enorme distanciamento que presenciei várias vezes por parte da gente branca e de gordas posses me levava cada vez mais a me identificar com os humildes, desprezados e reprimidos integrantes do povo negro e das populações pobres.
Muitos representantes de nossa identidade nacional oriunda da comunidade negra me ajudaram a entender melhor a distância mascarada pela ideologia da branquitude, aquela que produziu a ideia da inexistência do preconceito entre nós. A mesma que atribuía aos negros submetidos ao trabalho servil o epíteto de “negros de alma branca”, na mais odiosa forma do preconceito de se ter preconceito, segundo disse certa ocasião o sociólogo Florestan Fernandes.
Dentre os muitos negros dos quais guardo carinhosa lembrança registro alguns. Começo por Odete. Seu largo sorriso a exprimir alegria sem ter muitos motivos para tal salvou minha tenra vida ao me amamentar lado a lado à minha irmã de leite Maria Helena. Além de minha mãe de leite, tive em Geraldina outra referência. Cozinheira da casa de meu avô materno ela relatava a vida de sua comunidade no interior das Minas Gerais. Assim, tomava conhecimento da labuta de seu povo. Com seu cachimbo preso à boca, as baforadas pareciam desenhar os cenários de sua dura existência.
O meu afeto por essas duas mulheres eu guardo até hoje a cada momento. A bondade e generosidade de ambas me fizeram crescer compartilhando como posso esse legado de carinho. Com Geraldina, pude dividir a cada narrativa a memória sofrida. Com Odete, me fascinava a cada larga e contagiante gargalhada em face de situações a despertar o seu humor, mesmo a viver constantemente em adversidades. Ao escrever essas linhas me assalta o afeto e a eterna saudade por elas.
Já adulto convivi com inúmeros representantes dessa vasta comunidade. Lélia de Almeida Gonzalez foi uma dessas pessoas. Fomos colegas de profissão no magistério, professora de história e filosofia, Lélia se destacava pela relação amistosa e fraterna. Apreciei sua trajetória de profissional dedicada aos estudos, assim como pude acompanhar o seu desabrochar intelectual e político, tornando-se em pouco tempo uma referência para cultura e o movimento negro. Hoje esse reconhecimento é unânime.
Não poderia deixar de mencionar Geraldo Rodrigues dos Santos, o Geraldão, dirigente do PCB, cuja figura despertava simpatia pela maneira hábil e ao mesmo tempo simpática com que se dirigia a quem quisesse ouvi-lo sobre o que se passava na conjuntura política do país. Pude ajudá-lo a escrever suas memórias intitulada A trajetória de um comunista, ocasião em que contei com os depoimentos de seus filhos e companheiros. Todos os relatos candentes sobre sua personalidade afável e solidária.
Outros tantos povoaram a minha relação com aqueles que têm sido discriminados e objeto do escárnio de gente que se julga a eles superior. Dessa maneira, mais do que um registro na passagem de mais um ano de justa comemoração pela luta dos que são colocados à margem da sociedade brasileira, trata-se de um desabafo de quem considera que a emancipação do povo negro se encontra inconclusa. E essa luta se confunde com a de todos contra a opressão venha ela de onde vier.
Por fim, não basta estar livre dos açoites de ontem e de hoje, se não somos livres para construir a nossa felicidade irmanada com outros povos. Dia chegará e estaremos unidos pelo bem da humanidade, e a luta não será mais entre irmãos, mas voltadas para novas e intermináveis conquistas para o bem comum. Contudo, esse momento radioso depende da construção de uma sociedade de iguais. E sua essência se encontra na conquista da justiça social.
Dessa forma, estaremos libertos das amarras que impedem a única democracia real, cujo nome é o socialismo.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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