Por Miranda Sá

“Há almas cuja treva é maior que a noite, consciências cuja lama é maior que a de todos os pântanos da terra” (Albino Forjaz Sampaio)

O Cinismo, como corrente filosófica foi criado por um dos discípulos de Sócrates, Antístenes, que dedicou a vida pregando que o valor da pessoa humana não é medido pelos bens que possui, mas pelo seu altruísmo.

A palavra “Cinismo” no grego antigo, “kynismós” significa “como um cão” mostrando a maneira espontânea e natural dos adeptos desta filosofia, os Cínicos. Dicionarizado, o verbete Cínico é substantivo e adjetivo; aquele que despreza as tradições, afronta as convenções e desacata as regras sociais correntes.

Através dos tempos, a linguagem é domesticada pela ordem constituída passando por transformações em favor da mentalidade dominante; e assim ocorreu com a inversão do sentido das palavras “Cinismo” e de “Cínico”, depreciadas no seu significado original; “Cínico” passou a ser tratado como desavergonhado, descarado, devasso, indecente, libertino e até sem-vergonha!

Como o poder político não passa de segurança do shopping da Economia, não permite uma oposição ao seu sistema. Reprime quem lhe despreza, lhe afronta e desacata. Os seus agentes, entretanto, são de um cinismo ímpar – o da linguagem corrente, do “sem-vergonha” -, pela falta de caráter e a sofreguidão pelo acúmulo de riquezas, seja qual for o modo de adquiri-las.

No Brasil, os políticos em geral revoltam a opinião geral pela maneira inconveniente de usar a coisa pública, e nisto é excessivo o cinismo de alguns deles. Agora mesmo, ocupando o poder, um grupo de sem-caracteres é comandado por um patife, capaz de gastar R$ 1.790.003,92 – em plena pandemia, por quatro dias de “descanso”, de 8 a 17 de fevereiro.

Este velhaco, o presidente Bolsonaro, se exibiu outro dia nas redes sociais mostrando uma picanha de boi da raça wagyu, de origem japonesa, vendida a R$ 1.799,99 o quilo, no churrasco que ofereceu à sua patota.

Isto revolta os brasileiros desejosos de um País sem privilégios, justo, pacífico e progressista, mas satisfaz a ignorância gulosa pelo néctar de mitos camaleônicos. O excesso de cinismo é pandêmico.

Como um vírus, a sem-vergonhice se espalhou pelo Brasil, por todas as classes sociais: adotaram-no líderes comunitários, cooptou padres e pastores politiqueiros, entrou nas atas dos clubes de militares de pijama, encantou os carreiristas políticos e até assumiu uma forma “garantista” nos tribunais superiores….

Neste cenário de luzidia insensatez que vivemos, se sobressai Jair Bolsonaro, que de deputado medíocre admirador do golpista e ditador venezuelano Hugo Chávez, enveredou pelo sindicalismo fardado, tornou-se “comissário” do revanchismo militar, e, com um discurso contra a corrupção, se elegeu presidente da República.

Após as descobertas do filho mordedor de “rachadinhas” e dos cheques inexplicáveis passados para a mulher, casou a mentira com o cinismo e passou a blasfemar contra a Lava Jato, rompendo com o caçador de corruptos, Sérgio Moro, para intervir no Coaf e na PF, e blindar seus bandidos de estimação.

Então, a nova versão do cinismo tornou-se rotina entre os que proclamam a honestidade do Presidente, até mesmo quando ele apoia as ações suspeitas do ministro boiadeiro Ricardo Salles, advogado de madeireiros contrabandistas.

O otimismo cínico dos cultuadores da personalidade de Bolsonaro aplaude a traição das promessas eleitorais dele, que quer se reeleger com as mesmas promessas. Pior ainda, cega para a sua loucura em criar um “gabinete paralelo” para executar uma política necrófila.

Este cinismo deplorável se expõe comparando-se as ações do governo federal diante da pandemia letal:  isto se vê claramente com Bolsonaro, que levou três meses para responder a oferta das vacinas da Pfizer, e apenas três minutos para sediar a Copa América no Brasil, uma ameaça de risco de transmissões da covid-19.

Se o cinismo da politicalha servisse à Nação como atende ao negacionismo, a política necrófila não seria exaltada, e as famílias de meio milhão de brasileiros mortos não derramariam lágrimas.

Uma coisa é certa: as viúvas, viúvos, pais, irmãos e órfãos dos caídos pelo genocídio promovido por Bolsonaro jamais se tornarão cínicos como os seguidores dele….


MIRANDA SÁ – Jornalista profissional, blogueiro, colunista e membro do Conselho Editorial do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Trabalhou em alguns dos principais veículos de comunicação do país como a Editora Abril, as Organizações Globo e o Jornal Correio da Manhã; Recebeu dezenas de prêmios em função da sua atividade na imprensa, como o Esso e o Profissionais do Ano, da Rede Globo.