Redação –
Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) durante o histórico julgamento do Mensalão, Cezar Peluso acredita que parte da sociedade busca um punitivismo contra os acusados de corrupção.
“Ao juiz não cabe a missão messiânica de mudar a cultura da sociedade mediante condenações para não permitir uma suposta impunidade. Ao juiz cabe julgar”, afirma. Segundo ele, o uso judicial dos diálogos obtidos ilegalmente das conversas entre os procuradores da Lava-Jato será decido no STF.
Por que hoje em dia é mais fácil para um brasileiro médio saber os nomes dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal do que dos titulares da seleção brasileira?
Começou com a transmissão das sessões de julgamentos do STF pela TV Justiça. Embora se trate de um fato irreversível — ninguém conseguiria evitar que a TV transmita as sessões, pois haveria acusações de falta de transparência —, é da natureza humana ter comportamento diferente perante as câmaras. Onde a televisão foca os juízes decidindo, os juízes deixam, de certo modo, de ser juízes, e passam a agir como atores. Duvido que discussão sobre qualquer dos assuntos objeto das decisões do Supremo provocaria os mesmos excessos verbais se fosse travada em ambiente reservado.
Na sua experiência, algum ministro teve o seu voto influenciado por estar exposto às câmaras?
Não sou capaz de fazer avaliação de caráter subjetivo a respeito, mas há o risco, e isso já basta. E não se restringe aos ministros do Supremo, mas alcança os juízes em geral, porque está dentro do quadro de intimidação que os juízes vêm sofrendo. É subproduto desse ambiente de ódio, em que as pessoas já não suportam a diversidade de pontos de vista. Os juízes estão sendo objeto dessa pressão.
O senhor enxerga uma intimidação ao Judiciário?
Sem dúvida. O Judiciário se defronta com intimidação exercida, dentre outros meios, pelos canais da internet, que expressam aspirações imediatistas das multidões. Por exemplo, é fato conhecido que certo juiz, ao conceder habeas corpus de procedência claríssima, que não podia ser negado, relativo à Lava-Jato, concedeu o habeas, mas fez uma advertência: “olha, estou concedendo o habeas corpus, mas não sou contra a Lava-Jato”. Ou seja, há preocupação de salvaguardar a imagem própria diante dessa pressão.
Mas a sociedade não tem direito de fiscalizar o Judiciário?
Sim, lógico, mas o problema é a cultura de punitivismo, inspirada no caldo dessa revolta justa contra a corrupção, mas também incentivado por setores da imprensa. É uma fase de ódio absurdo na sociedade brasileira, sobretudo dirigida contra o STF, mas também contra todo o Judiciário. Alguns ministros do STF, em certas circunstancias, não podem sair à rua.
A origem dessa atenção toda ao STF está no julgamento do Mensalão, em 2012. Qual o saldo do julgamento?
O processo e o julgamento da Ação Penal 470 (Mensalão) foram admiráveis. Tínhamos no relator, ministro Joaquim Barbosa, um juiz muito rigoroso, mas em nenhum passo do processo o STF foi leniente com a legalidade. Teoricamente admitimos que algumas teses que o Supremo adotou podem ser discutíveis, como a questão da ‘teoria do domínio do fato’, mas nada sobre a irrepreensibilidade do processo e do julgamento dos réus. Aí nasceu essa expectativa distorcida de que o Judiciário tem que ser sempre punitivo. Se é divulgado que certas pessoas são culpadas, independentemente do que se apure no processo segundo as regras legais e garantias constitucionais, setores da sociedade, inclusive da imprensa, pretendem que esses réus sejam punidos de qualquer maneira.
Qual efeito da pressão do punitivismo?
As pessoas não percebem que juízes não estão aqui para condenar ninguém. Essa não é a função do Judiciário. A função do Judiciário é julgar, condenando quando as provas produzidas segundo as regras legais e constitucionais assim determinem, ou absolvendo, em caso contrário.
E aí entra outro aspecto: alguns juízes, com mais vocação política do que de magistrado, assumem papel messiânico de responder aos apelos da sociedade e, nisso, podem transformar o Judiciário em órgão de persecução penal, de condenação. Nesse caso, corremos riscos de arbitrariedades a título de dar satisfação à pressão de setores da opinião pública.
O senhor está se referindo à Lava Jato?
Em relação à Lava Jato, reservo-me a não dizer o que penso a respeito das revelações do site The Intercept (sobre os vazamentos de diálogos dos promotores obtidos ilegalmente por um hacker). Mas, se, por hipótese, as revelações forem verdadeiras, a ilicitude na sua aquisição vai provocar uma discussão que terminará no Supremo Tribunal Federal: embora como prova ilícita não possam condenar ninguém, podem ser usadas para absolver alguém? Ou para anular processo? O Supremo tem encontro marcado com essa questão.
Qual a sua posição?
Diálogos obtidos ilegalmente não podem ser usados para condenar ninguém, mas seria iniquidade dizer que não se pode usar prova ilícita para absolver um réu que ostensivamente, segundo esses dados, não cometeu o crime. O Direito não foi feito para isso.
Qual sua avaliação sobre os juízes que entram na política, como o ministro Sergio Moro, o governador Wilson Witzel, a senadora Selma Arruda?
Alguns juízes têm mais vocação de políticos do que de magistrados, o que acaba sendo confirmado pelo fato histórico de deixarem a função jurisdicional para, legitimamente, assumir nova carreira.
Mas isso pode de algum modo suscitar a suspeita de que alguns juízes estariam mais propensos a tomar atitudes ditadas menos pela interpretação da lei do que pelo impulso de exercer, ainda que inconscientemente, a missão política de fazer revolução cultural ou social. Ao Judiciário não cabe função primordial de combater a corrupção; isso é do objetivo e da competência da polícia e do Ministério Público.
Ao juiz, não cabe a tarefa messiânica de mudar a cultura da sociedade mediante condenações para não permitir uma suposta impunidade. E acho que nem toda a sociedade quer juízes-celebridade.
Como assim?
Há setores que querem juízes justiceiros, mas noto uma saudável nostalgia dos velhos juízes, recatados, circunspectos, dotados de gravidade, com uma vida pública e privada irrepreensíveis, discretíssimos.
Qual a sua opinião sobre o novo julgamento do STF sobre condenação em segunda instância?
Fui um dos ministros que levaram à revisão da jurisprudência do Supremo (em julgamento em 2009). Muitas pessoas, inclusive alguns juízes, dizem que a norma constitucional estabelece a presunção de inocência. Não é isso. Que é que essa regra diz? Diz apenas que, enquanto não haja, por parte do Judiciário, seja no processo, seja antes do processo, uma sentença transitada em julgada, isto é, contra a qual não caiba recurso e que reconheça a culpa do réu, os juízes não podem aplicar a esse réu, nem a investigado, nenhuma medida restritiva a seu patrimônio jurídico considerado no sentido amplo, isto é, não apenas à liberdade física, mas também a seu patrimônio material. Ponto.
Em 2016, o STF mudou essa jurisprudência sem justificativa, salvo a pressão da sociedade contra suposta impunidade de suspeitos de corrupção. Aí que houve a revisão. O que aconteceu agora (com o julgamento de novembro) foi restabelecer o julgamento de 2009.
O que o senhor acha da iniciativa de parte do Congresso que discute hoje mudar a Constituição para permitir a prisão em segunda instância?
A meu juízo, a norma constitucional, de garantia individual, não pode ser modificada de jeito nenhum.
Mas o senhor fez uma PEC sobre o tema.
Sim, mas eu não estava preocupado em prender ninguém, mas em acabar com a crise sistêmica do Judiciário, da indústria dos recursos, em que manobras protelatórias retardam o fim dos processos e adiam a execução das sentenças.
A PEC dos Recursos, que inspirei, alterava o termo do ‘trânsito em julgado’. Ao invés de ser a última decisão de todos os recursos previstos na Constituição, fixaria o trânsito em julgado das decisões, sejam civis, criminais, trabalhistas, em segundo grau.
Pela minha sugestão, os processos terminariam depois do julgamento do juiz de primeiro grau e do tribunal competente de segundo grau. Os recursos às cortes superiores não impediriam a execução imediata das decisões dos tribunais estaduais e regionais. Os recursos e outras vias continuariam existindo como hoje, em especial o habeas corpus, mas os recursos extraordinários já não poderiam ser usados para travar a execução das sentenças. Isso significa, por exemplo, que União, Estados e Municípios teriam de pagar os precatórios, ao invés de protelar seu pagamento. Acho que a sociedade não estava preparada para proposta tão ousada.
Nesses dez anos, o Supremo decidiu sobre aborto de fetos anencéfalos, criminalização da homofobia, cotas nas universidades. O STF está tomando o lugar do Congresso?
Essa acusação de ativismo do STF, no geral, é exagerada. Há uma dialética entre Parlamento e Judiciário, em todo lugar. Se decisões judiciais não são aceitas pela sociedade, toca ao Parlamento alterar a legislação em que o Judiciário se baseia. Se o Parlamento não muda essa legislação, se o Judiciário é chamado a se pronunciar em análise da Constituição, ele terá que tomar uma atitude, exercendo sua função de zelar pela integridade da Carta.
Como o senhor avalia as manifestações de rua pedindo o fechamento do Supremo?
Demonstram que o Supremo é visto como grande artífice da legalidade e que atrapalha os propósitos de sua quebra. São resultado do clima de intimidação a que me referi. Todo mundo é contra a corrupção, porque a corrupção é um mal, é crime, é danosa ao país. E como se combate a corrupção? Nos limites da lei. O fato de o crime ser de corrupção não justifica que a lei não seja observada. E é extremo exagero dizer que a corrupção é o grande mal do país. Somos a segunda ou terceira maior concentração de renda do mundo, e não raro a multidão sai às ruas para fazer campanha contra esse estado de coisa, mas alguma vez assistimos a manifestações públicas que clamem por um pouco mais de justiça social, de redistribuição de renda? Não. Mas, se é para combater a corrupção, muitos saem à rua. Por quê? Porque supõem que a corrupção seja a coisa mais importante. Não acho que seja. E, depois, porque corrupção no Brasil é endêmica e atávica, cuja cultura só pode ser erradicada pela educação. Ninguém faz campanha de rua contra sonegação de imposto, faz? Não faz. O sonegador de imposto não causa dano ao país? Causa e muito, mas isso não move as pessoas, porque quem sai as ruas às vezes sonega imposto, corrompe o guardinha da esquina, o policial rodoviário.
Fonte: O Globo, por Thomas Traumann
MAZOLA
Related posts
Editorias
- Cidades
- Colunistas
- Correspondentes
- Cultura
- Destaques
- DIREITOS HUMANOS
- Economia
- Editorial
- ESPECIAL
- Esportes
- Franquias
- Gastronomia
- Geral
- Internacional
- Justiça
- LGBTQIA+
- Memória
- Opinião
- Política
- Prêmio
- Regulamentação de Jogos
- Sindical
- Tribuna da Nutrição
- TRIBUNA DA REVOLUÇÃO AGRÁRIA
- TRIBUNA DA SAÚDE
- TRIBUNA DAS COMUNIDADES
- TRIBUNA DO MEIO AMBIENTE
- TRIBUNA DO POVO
- TRIBUNA DOS ANIMAIS
- TRIBUNA DOS ESPORTES
- TRIBUNA DOS JUÍZES DEMOCRATAS
- Tribuna na TV
- Turismo