Por Carlos Mariano

O CD de sambas-enredo da Série Ouro (segunda divisão dos grupos das escolas de samba do Rio de Janeiro) já está disponível para o público nas plataformas digitais, segue abaixo. A safra é muito boa, com excelentes sambas. Vou destacar as obras que têm grandes qualidades musicais, poéticas e enredistas.

A Unidos do Porto da Pedra, grande força do grupo, vem com um dos melhores sambas do carnaval. Porém, na gravação, ficou abaixo das minhas expectativas. O Tigre de São Gonçalo levará para a Marquês de Sapucaí o enredo “A Invenção da Amazônia: Um Delírio do Imaginário de Júlio Verne”, desenvolvido pelo consagrado carnavalesco Mauro Quintaes. O samba tem a assinatura de Ademilson Xavier e parceria. Durante a disputa interna na escola, a obra foi brilhantemente defendida pelo interprete Carlos Júnior. Além de uma poesia e letra bastante emocionante, principalmente na passagem que faz menção à memória dos ativista e ambientalistas Bruno Pereira e Dom Phillips, assassinados covardemente por defender a preservação da floresta e dos povos que lá habitam. O samba, desde a disputa, mostrava-se valente e estrondoso no canto, sempre em tom maior. Na gravação do CD, o interprete oficial é o conhecidíssimo Nego, que, acredito, junto com os compositores, fizeram algumas mudanças no tom e levada do samba. Essas mudanças tornaram o andamento mais comedido. A nova roupagem tirou sua robustez, arrojo e valentia – características caras também ao enredo, cujo o tema fala de luta pela sobrevivência da Amazônia.

Em várias passagens, na voz de Carlos Júnior, as nuances de tom e melodia do samba se mostraram valente e agudo em harmonia com a proposta do enredo. Já na gravação de Nego, no CD, essas mesmas passagens se tornaram bonançosas, deixando o samba arrastado e tímido, sem explosão no seu andamento. Talvez Nego tenha cantado dessa forma, por ser mais confortável ao seu estilo. Mas, apesar dessa transformação, o samba da Vermelho e Branco continua como um dos mais bonitos da safra.

Warrãna-rarae, Warrãna-rare
Mari-nawa-Kenadêe
Ecoam tambores da floresta
Porto da Pedra, é nossa hora de vencer

A Azul e Branco da Baixada, a nossa Unidos da Ponte, tem uma pérola de enredo para o próximo carnaval: “Liberte Nosso Sagrado: O Legado de Mãe Meninazinha de Oxum”, dos talentosos carnavalescos Rodrigo Marques e Guilherme Diniz. O tema do enredo fala de uma personagem do tempo presente, mas que tem uma ligação de luta e de acerto de contas com o passado. Trata-se de Maria do Nascimento – a Mãe Meninazinha de Oxum, herdeira do assentamento de Omolú de Salvador à São João de Meriti, cidade da Baixada Fluminense onde também está situada a Unidos da Ponte. A ponte que une a Unidos à Mãe Meninazinha é o pertencimento de sentimentos pelo chão de São João de Meriti. A partir desses sentimentos, a escola irá contar na Marquês de Sapucaí a luta de três décadas de Mãe Meninazinha para reaver a coleção de objetos sagrados que estava em poder do Museu da Polícia Civil e que depois de muito combate do povo preto do candomblé, foi transferida para o Museu da República. Os objetos sagrados da casa de santo foram confiscados pela polícia no final do século XIX.

Esta história de racismo e intolerância religiosa esquecida nos arquivos vai ser rememorada pela Unidos da Ponte e será cantada no sambaço escolhido pela escola. De autoria de Bruno Souza e parceria, o samba se destaca pela sua sonoridade calcada nos elementos rítmicos da tradição do candomblé herdado dos ancestrais escravizados. O samba tem também uma pegada retrô que lembra os sambas-enredo de macumba dos anos de 1970 e 1980.

Kleber Simpatia (anota esse nome aí!) literalmente puxa o samba da escola com muita raça e valentia contribuindo ainda mais para uma magia carregada de axé.

Onde dançam orixás, o preceito é ancestral
Cada um com sua crença nesse meu Brasil plural!
Que Oxóssi atire a flecha e atinja os corações
Pra que haja mais respeito entre as religiões

O Arranco do Engenho de Dentro e a União de Jacarepaguá, depois de uma longa ausência, voltam ao sambódromo com dois sambaços. O Arranco vem com um enredo original: “Zé Espinguela – Chão do Meu Terreiro”, de autoria do carnavalesco Antonio Gonzaga. José Gomes da Costa, o Zé Espinguela, é um desses personagens singulares da história das escolas de samba. Foi no quintal de sua casa no Engenho de Dentro, em 1928 e 1929, que o alufá realizou em caráter não oficial os dois primeiros concursos de samba que se tem notícia na história.

Espinguela também tem o feito de, junto com Mestre Cartola e Saturnino Gonçalves, fundarem, nada mais nada menos, que uma das maiores escolas de samba do planeta: a Estação Primeira de Mangueira. A participação de Espinguela na fundação da Mangueira é uma das passagens poéticas mais significativas do belo samba composto por Diego Nicolau e parceria.

Mãe baiana ê mãe de semba
Pemba e samborê
Canto de arengueiro
Pulsa a marcação, nasce uma bandeira
Pai na certidão de Mangueira

A União de Jacarepaguá vem trazendo num belo samba de lamento, o enredo: “Manuel Congo, Mariana Crioula, os Heróis da liberdade no Vale do Café”, que conta a saga pela liberdade desses dois personagens escravizados. Os versos de um dos refrões do samba de Claudio Matos e parceria, sintetiza bem essa história de luta contra o racismo e tirania.

É mucama de iaiá, é escravo do feitor
Valentia da senzala não sucumbe ao capitão
Lá nos Cafezais, a revolta se faz
Pra findar o açoite que fere o irmão

A Lins Imperial traz o enredo “Madame Satã: Resistir Para Existir”, dos carnavalescos Edu Gonçalves e Ray Menezes. João Francisco dos Santos já foi enredo em 1990 da própria Lins. Hoje, Madame Satã volta a ser história numa nova e atual roupagem de narrativa. O belíssimo samba, assinado por Claudio Russo e parceria, é um contundente manifesto contra a homofobia. Os versos abaixo exemplificam bem a questão.

É a Lins Imperial, é um samba manifesto!
Muito mais que carnaval, arte em forma de protesto!
Meu malandro bambambã, preconceito aqui não rola!
Não se brinca com Satã!
Mojubá a minha escola!

O Império da Tijuca, uma das escolas mais tradicionais do grupo de acesso, vem com “Cores do Axé” dos carnavalescos Junior Pernambuco e Ricardo Hesser. O sambaço, de autoria de Samir Trindade e parceria, conta a história da vigorosa presença do axé na nossa cultura. Para a tradição nagô-iorubá, o axé é a energia vital que está presente no universo desde sua criação.

Sobe o Morro da Formiga filho de Odé
Faz do pincel o meu ofá
Nas cores do Axé
O Império da Tijuca vem sonhar

Ainda dentro desse contexto de enredos que abordam a ligação do samba com o sagrado, a Unidos de Bangu também irá trilhar o caminho da fé para mostrar o seu carnaval: “Aganjú: A Visão do Fogo, A Voz do Trovão No Reino de Oyó”, do carnavalesco Robson Goulart. Esse místico enredo produziu um sambaço de Junior Fionda e parceria. O refrão principal do samba é constituído de uma pulsação rítmica fantástica para mostrar a força de Xangô, o rei dos trovões.

Ê, Kabecilê Kaô
A maldade vira cinzas
Na fogueira de Xangô

A primeira escola de samba do Brasil, o nosso velho Estácio de Sá, trará um tema que já foi desenvolvido várias vezes em desfiles anteriores. Mas, Mauro Leite, carnavalesco da Vermelho e Branco, dará uma nova interpretação para o seu enredo: “São João, São Luis Maranhão! Acende A Fogueira do Meu Coração”.
Mauro vai contar o encontro entre São João e São Luis, que se encontram no céu e decidem vir à terra com a tarefa de abençoar a festa junina do Maranhão. O enredo, apesar de ser patrocinado e com personagens meio manjados, produziu um belíssimo samba de autoria do craque Samir Trindade e parceria.

Com uma melodia gostosa e envolvente, traz nuances bem criativas que misturam samba de roda e xote nordestino, com pegada de samba-enredo valente. Os dois refrões são fáceis de canto e provavelmente facilitará a evolução da escola na pista.

Berço do samba é batuque, é toada
Terra da palmeira onde canta o sabiá
Um fogo arde do meu coração
São Luis, São João, viva a Estácio de Sá

A Inocentes de Belford Roxo, quarta colocada no último carnaval, vem com enredo homenageando as mulheres paneleiras de barro da região de goiabeiras velha, região de Vitória no Espírito Santo. As mulheres de barro capixaba receberam a técnica das indígenas da tribo Tupi-Guarani. Esse saber foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial. O samba, de boa qualidade, tem no seu refrão de meio uma passagem poética muito interessante.

É no barreiro no vale do mulembá
Que a mão preta se encontra com o chão
Barro sagrado que veio de lá
Que ganha a forma de vida em transformação

Autora de “Os Sertões”, considerado por muitos o samba mais bonito da história, a tradicionalíssima Em cima da Hora de Cavalcanti, vem com o enredo “Esperança, Presente!”, dos carnavalescos Marco Antonio Falleiros e Carlos Eduardo. Esse enredaço da Em Cima da Hora tem tudo para ser antológico como “Os Sertões”, que foi consagrado pela escola em 1976. A escola conta agora a comovente história de Esperança Garcia – uma mulher negra, mãe e escravizada que redigiu uma carta em 6 de setembro de 1770, ao governador da capitania do Piauí. Ela denunciava as situações perversas que ela, as companheiras e filhos sofriam na fazenda Algodões. Esse documento histórico é uma das primeiras cartas de direitos no contexto do Brasil escravocrata no século XVIII. Esse grande enredo da Em Cima da Hora mostra como é significativo o trabalho de pesquisa feito pelas escolas de samba atualmente. A abordagem de pinçar uma personagem da micro-história invisibilizada na história oficial produziu também um belo samba-enredo. De autoria de Moisés Santiago e parceria, o samba tem uma melodia de lamento e sofrimento como pede a história. A dramaticidade da existência da personagem é retratada na letra e melodia, calcada num ritmo agudo, mas ao mesmo tempo, cadenciado e solene.

Aqui, a íntegra da letra desse belo samba e enredo original.

O meu canto é por justiça
Por dois lados na balança
Eu me chamo Esperança
Na premissa, Obakoso
Defesa de quem sente
Onde cada escravo vira réu
É trovão que rasga o céu
Seu Machado está presente
No suor da plantação, fio a fio a proteção
Dos sagrados andarilhos
O saber de grão em grão, pra enfrentar o capitão
Pra dar colo a cada filho
Separada pela dor, nas amarras do feitor
Aos olhos de Nazaré
Minha fé ninguém calou, sou filha de Xangô
A essência de mulher
Lere lere, Kabesilê, Ojuobá
Lere lere, Kabesilê
Ojuobá, me tornei
Onde verbo invade
Sou palavra que arde
Sei que ainda há a tortura
Mas escrevo pra vencer
(Nós vamos vencer!)
Esta sina que perdura
Oh, Deus! Dediquei a palavra
A cada alma preta que partiu
Na carta a liberdade é assinada
Por todas as Marias do Brasil

Ainda que seja o lugar do folião
Carnaval também é voz pra calar a escravidão
Tá Em Cima da hora mas é tempo de evocar
A Esperança onde o samba há de lutar.

Este novo ano que se inicia, 2023, representará o fim de quatro anos de pesadelo social vividos por nós, brasileiros, durante o desgoverno do inominável presidente que o Brasil teve nesse período. É muito salutar que as escolas de samba do grupo de acesso, agremiações de comunidade de maioria negra carente, produzam enredos que expressem os valores históricos, as angústias e luta dos excluídos (mulheres, negros e gays) que foram perseguidos covardemente durante essa era de trevas que, felizmente, acabará com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, eleito democrática e legitimamente pelo povo brasileiro.

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CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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