Redação –
O ministro Nefi Cordeiro, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), disse ao ‘Estado’ que houve uma banalização do uso das colaborações premiadas no Brasil e defende um maior controle sobre a utilização desse instrumento, tanto por parte dos juízes – que homologam os acordos – quanto do Ministério Público e de delegados de polícia – que acertam a negociação com os delatores.
“Como seres humanos, todos precisamos de limites e controles”, afirmou. Presidente da Sexta Turma do STJ, que cuida de matérias criminais, o ministro acaba de lançar o livro “Colaboração premiada – Caracteres, limites e controles”.
“ABERRAÇÃO” – – “Temos situações de benefícios exagerados, e outras em que foi negociada pena mais alta do que aquela pessoa teria se fosse condenada sem qualquer benefício. Isso é uma aberração”, criticou Cordeiro. Para o ministro, é preciso coragem não só para perseguir poderosos, mas também para soltá-los quando não há fundamento legal que justifique mantê-los atrás das grades.
Nesta terça-feira, dia 5, as colaborações premiadas voltam à pauta da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, que discutirá casos de delatores que ocultaram fatos, tiveram o acordo rescindido, mas depois apresentaram termos aditivos que acabaram homologados pela Justiça.
Seis anos depois da sanção da lei que trata sobre colaborações premiadas, qual a avaliação do senhor sobre esse instrumento?
É um meio de obtenção de prova eficiente, que dá ao Estado condições de obter provas que dificilmente teria acesso com a sua investigação, mas isso faz com que também tenhamos preocupação de que essa forma de investigação, tão poderosa, seja realizada dentro dos limites da lei e das garantias constitucionais. É uma arma eficiente, mas que precisa ter seus limites mais claros.
Quando o senhor fala em limites mais claros, diz respeito à atuação do Ministério Público e de delegados de Polícia?
Não se sabe exatamente o que pode ser negociado. Não se tem as regras claras do que pode ser ajustado nesse contrato. A minha preocupação é que possamos ter uma ideia ao menos do que pode ser negociado. O ideal é uma lei regulando o que se pode negociar, dizendo quais os critérios que os juízes, os promotores, os delegados devem usar para a negociação.
Nesse momento de análise dos acordos, o juiz não deve ser um mero carimbador dos acordos?
É preciso um exame mais aprofundado na homologação judicial do acordo. Temos situações de benefícios exagerados, e outras em que foi negociada pena mais alta do que aquela pessoa teria se fosse condenada sem qualquer benefício. Isso é uma aberração. Temos cláusulas que violam princípios constitucionais e princípios legais, como ficar com parte do produto do crime. Temos cláusulas que permitem a pessoa não ser mais investigada, e isso é um absurdo, porque estou impedindo o Estado de saber crimes que podem ser até mais graves do que aqueles que ela está confessando.
Na delação da Odebrecht, o Ministério Público Federal fechou acordo com 77 colaboradores. Foi um exagero?
Isso não é colaboração premiada, é negociação de culpa. Quando se faz com 77, eu estou querendo é combinar confissões para redução de pena. Se eu tenho 77 pessoas, pagas inclusive pela mesma empresa, com advogados comuns, é natural que exista convergência de interesses. E colaboração premiada é o oposto disso: é baseada no dilema do prisioneiro. Nesse dilema, existe o medo de que outro preso seja o primeiro a delatar. Se outro delatar primeiro, é ele quem vai ter o benefício e não eu. Dessa forma que estão fazendo, eu não preciso ser o primeiro, posso ser o centésimo. E isso quebra toda a lógica da colaboração premiada brasileira.
Houve uma banalização da delação premiada?
Sim. Parece que substituímos algo que era para ser excepcional, beneficiando alguns em prol de uma investigação de crimes graves, por uma colaboração de todos que quiserem, até para crimes não tão graves à sociedade. Por exemplo, quadrilha de fraudes de golpes em aposentados. Banalizou-se e se perdeu o sentido da lei. Estamos com uma prática que não é o que temos na lei – e talvez até a principal mostra disso seja a fixação de penas pelo Ministério Público. Os acordos estão saindo com pena exata, o que facilita, sim, a atividade dos negociadores, mas não é o que a nossa lei prevê. E tira do juiz a função de dosar a pena.
A Lava Jato é um caso de sucesso ou fracasso?
Sucesso. Se não tivéssemos esse meio de obtenção de provas (a colaboração premiada), não teríamos atingidos essa quantidade de condenados. A limitação que eu faço não é para diminuir a eficiência. É simplesmente porque tudo que é poderoso tende ao abuso. A minha preocupação é que não tenhamos abusos.
Houve abusos na Lava Jato?
Não posso falar de processo em andamento. Posso falar em tese da minha preocupação de que, como seres humanos, todos precisam de limites e controles. Mas não posso especificar se já houve algum abuso ou não. Inclusive na minha turma (de julgamentos no STJ) tenho a Lava Jato do Rio.
O senhor apoia delimitar a delação premiada de réus presos?
Não acho que é proibida. O réu preso pode confessar, mas precisamos limitar – e se pudermos evitar, melhor ainda. É muito perigoso se admitir negociações de quem está numa cadeia, aceitar que essa pessoa não está pensando em interesses de ser beneficiada com liberdade.
Há excessos na prisão preventiva no Brasil?
Vemos o uso da prisão durante o processo como antecipação de pena, e isso não é correto. Não posso prender alguém porque eu acho que é culpado. Eu prendo alguém porque ele ameaça o processo. E constantemente vemos prisões sem fundamento, desproporcionais, que geram essa quantidade de mais de 40% de presos provisórios no Brasil.
O caso do ex-presidente Michel Temer, que foi solto pela Sexta Turma do STJ, inclusive com o voto do senhor, ilustra isso?
Me parece que sim. O que eu tenho salientado é que, embora tenha chamado a atenção o caso do ex-presidente, é algo rotineiro.
Existe uma cultura punitivista no País?
Uma cultura de resposta imediata. A sociedade pede respostas imediatas, e os juízes são pressionados a isso. Mas se formos usar essa regra de soluções imediatas, vamos ter de primeiro mudar a Constituição, mudarmos a lei e todos vão responder a processo presos – e não há reparação a um dia de prisão. Sou professor há muitos anos e sempre digo aos meus alunos no primeiro dia, “Vão visitar as cadeias”. Um contato com o cheiro da cadeia já muda muito do que pensamos.
O senhor é conhecido por ser garantista. Como é ser um ministro que manda soltar investigados?
É preciso ter coragem para perseguir poderosos, mas é preciso coragem para soltar esses poderosos se não existe hipótese legal de prisão. Já tive muitas críticas, mas tenho de agir pelo que acho que é correto. Na hora em que o juiz julga pelo que parece ser o senso majoritário, deixa de ser juiz. Passa a ser um justiceiro, um oráculo do pensamento midiatizado, que nem podemos ter certeza se é realmente a opinião da população.
O senhor já disse que não é papel do juiz combater a corrupção.
O juiz não pode querer ser alguém responsável por dar vazão a esses desejos imediatos de Justiça, senão ele passa a buscar o resultado como prioridade. E o juiz só pode decidir sobre culpa ou não ao final do processo.
Como avalia a lei de abuso de autoridade?
Talvez eu seja uma voz meio isolada. Há muita crítica à nova lei pelo medo de punir promotores, juízes e policiais pelo exercício da função, mas o que eu vi na nova lei foi apenas um detalhamento da lei antiga. Porque já no primeiro artigo, a lei exige que a conduta seja realizada para prejudicar alguém ou se beneficiar. Ou seja, não é porque o juiz prendeu alguém ou o promotor que fez ação penal contra alguém, que será responsabilizado. A lei, independentemente das razões de ter sido editada, não é ruim.
Fonte: Estadão, por Rafael Moraes Moura
MAZOLA
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