Por Roberto Amaral –
O general vice-presidente da república acaba de romper o “silencio respeitoso” imposto pelos amuos do capitão seu chefe e deita falação política, naquele tom imperativo com que os sargentos se dirigem nos quartéis aos recrutas de primeiro dia. Pois apenas isso somos nós, os civis, que eles julgam incompetentes para cuidarmos de nós mesmos. Daí a curatela a que nos submetem. Todo cadete sonha em ser um Floriano Peixoto; quando chegam ao generalato e tomam comando de tropas, os oficiais tornam-se perigosos. É quando resolvem fazer política, abolindo-a. Tratam de interditá-la e delas afastar os políticos, isto é, os civis, por definição (segundo eles) corruptos e incompetentes, responsáveis por todas as desgraças que se abatem sobre o país. Pensam assim desde os tempos remotos do “tenentismo” que instaurou as insurreições de 1922 e 1924.
Impedidos por desvio ideológico de enxergar a realidade econômico-social do país e as causas estruturais da pobreza, filha da concentração de renda, participaram da revolução de 1930 e, como dissidentes, dos levantes de 1932 e 1935; deram o golpe de 1937 e instauraram o “Estado Novo” que derrogou a constituição liberal de 1934, e ficaram no poder absoluto até 1945, quando apeiam do poder o ditador ao qual haviam servido por 15 anos. No regime democrático, após a segunda deposição de Getúlio Vargas, tentaram o golpe seguidamente em 1955 (impedimento da posse de Juscelino Kubitscheck) e 1961 (veto à posse de João Goulart), para afinal assumir as rédeas plenas do poder sem limites, a partir de 1964.
Apesar de fazerem política o tempo todo, a vida toda, não se consideram políticos. Apesar de rasgarem seguidamente a Constituição e matarem a democracia, falam em ordem constitucional e em defesa da democracia! O general Góes Monteiro, um dos mais poderosos e longevos chefes políticos brasileiros (girou os bilros da política de 1930 até pelo menos 1946), fazia política de manhã, de tarde e de noite e nos dias feriados e santificados; fazia política nos quartéis e a partir deles, no entanto não se considerava um politico, dizia mesmo que a política não podia entrar nos quartéis.
Os generais, depois de um recesso iniciado com a redemocratização de 1988, levam a política de volta para a caserna. Irresponsavelmente.
Em 2018, com o capitão, foi a vez de um projeto militar, concebido em níveis de “de estado maior” chegar ao poder mediante o processo eleitoral. Mas este dependeu do golpe de 2016 (deposição de Dilma Rousseff) e do golpe que, acionado pelo comandante do exército através de um tweet (que diz haver discutido com os generais de quatro estrelas), impediu que concorresse o candidato que então liderava as intenções de voto apuradas pelas pesquisas de opinião.
Se os políticos, com todas as deformações de nosso sistema, são eleitos pelo sufrágio popular, os militares se sentem ungidos diretamente pela “Pátria”, um ser supremo que não sabem definir, mas que invocam sempre que pretendem mudar o curso da história, de que se sentem senhores, como quem conduz os passos de marionetas, decidindo enredo e escolhendo personagens. A “defesa da Pátria” é o talismã que tudo justifica. Estão sempre a defendê-la, sem participar de batalhas contra exércitos invasores.
Por tudo o que é óbvio, o artigo assinado pelo general vice-presidente nas páginas do Estadão do último dia 6/04 deve ser considerado com atenção. Trata-se de obra de muitas mãos militares; ademais, não deve ser recebida como algo gratuito, devaneio literário de um grupo de generais ocupando o ócio da semana santa.
O artigo responde à necessidade de dar um recado.
Aparentemente, o general fala para seu público interno, candidatando-se ao posto de porta-voz político dos quartéis junto à sociedade (e igualmente junto ao capitão), quando os fardados empreendem a talvez mais difícil de quantas jogadas têm levado a cabo desde o fim da ditadura, a de se desvincularem do desastre do governo Bolsonaro, sem abandonar, por enquanto, o mando e os cargos.
O general afirma estar a postos para qualquer eventualidade, e de logo se anuncia acorde com os projetos mais autoritários de seus camaradas, o que inclui as reservas de ódio a Lula e ao que ele e seus governos representam.
No geral, porém, trata-se de texto insolente que agride a Constituição, a ordem democrática, a história e a verdade. Quando os militares e seus intérpretes se convencerão de que nenhuma vontade, animada que seja pelo melhor marketing (e não é o caso), subordinará a realidade a projetos ideológicos?
O vice-presidente acusa os dirigentes de governos anteriores (não nomina, mas, por óbvio, refere-se aos governos petistas) de “aparelhamento ideológico”! Mais do que desdém pela inteligência coletiva, é cinismo. O que é o discurso do capitão e seus asseclas e o que são suas ações e sua política?
O general deixa no ar o recado de que os militares podem e devem fazer mais do que a Constituição os autoriza. O que é isso? O que a república quer, general, é exatamente o contrário, que os senhores façam menos: sigam seus deveres constitucionais, e deixem o povo cuidar de seu destino.
O Sr. Mourão sustenta que devemos aos militares a democracia que temos. E que são eles que a defendem. De quem? Não diz. Tudo isso para, uma vez mais, louvar o regime protofascista instaurado em 1964 e mantido até 1985 às custas de todas as ilegalidades e perversões possíveis: censura, exílios, confinamentos, cassação de mandatos eletivos, demissões de trabalhadores e funcionários públicos, prisões, tortura e assassinatos. Além de corrupção desabrida. Que os bons anjos salvem a democracia brasileira desses seus protetores.
O general acusa o “desvirtuamento da administração pública atingida em cheio pela corrupção e pelo clientelismo político”. Ocorre que essas mazelas chegaram ao paroxismo no governo do capitão. Não saberá o general que o governo a que serve entregou-se ao Centrão, aquele agrupamento, ou súcia, ou bando de parlamentares do “baixo clero” que têm como ideologia a apropriação da coisa pública? Não sabe o general que a maioria parlamentar de que dispõe o capitão no congresso é garantida por esse magote de negocistas e que as votações são traficadas, à vista de todos, nos corredores e gabinetes da câmara e do senado, e, segundo noticiário da imprensa, também no palácio do planalto, exatamente na casa civil, quando comandada pelo general Braga Netto? Não saberá o general vice que o Centrão já se instalou no palácio do planalto, sentando a deputada Flávia Arruda na cadeira antes esquentada pelo hoje ministro da defesa?
O general diz que “seu” governo assumiu o compromisso pela “retomada do desenvolvimento e pelo combate à violência”. General, o senhor foi avisado de que o ministro da economia é o ex-posto Ipiranga, que sua política é neoliberal, antidesenvolvimentista e recessivista? Que o PIB cai de ano para ano, que a indústria está em recessão, que a inflação ameaça, que os juros estão subindo, que nossa moeda permanece desvalorizada? O senhor acredita mesmo que seu governo combate a violência, se a violência vem sendo promovida pelo capitão desde a campanha eleitoral da qual o senhor participou? A propósito, qual sua opinião sobre a liberação de armas de fogo e munições, seguidas de medidas que dificultam a fiscalização pelo exército?
Mourão ainda nos fala na competência técnica de seus colegas de farda, da qual a sociedade brasileira acaba de colher o conclusivo exemplo deixado pela administração militar da saúde.
O governo do capitão é um governo militar, não porque o presidente e o vice-presidente da república são militares; nem só porque militares ocupam o palácio do planalto e adjacências, e que militares, fardados ou não, ocupam milhares de cargos públicos. O governo é militar pela sua ideologia e pela sua origem, como projeto chefiado pelo general Villas Bôas como comandante do exército.
É de pasmar o general afirmar que foram as forças armadas dos EUA que garantiram a transição democrática em janeiro último, para nos dizer que são a mesma coisa os papéis dos dois contingentes nos dois países, quando em um o assombroso poder militar está submetido ao poder civil, enquanto noutro o poder civil é sotoposto sempre que pretende algo que esteja em desacordo com a ideologia conservadora e reacionária da maioria de nossa oficialidade.
Por isso, foi deposto Getúlio Vargas. Em face de sua política nacionalista e popular. Foram as reformas, como as que o general diz defender, que levaram seus colegas a depor João Goulart. Foram o cheiro de povo, a defesa prioritária das grandes massas, a independência possível em face do imperialismo, que levaram generais como o próprio Mourão a desestabilizar o governo Dilma Rousseff e conspirar contra a candidatura do ex-presidente Lula. Essas razões persistem quando o artigo do general revela seus compromissos com supostas restrições militares ao possível pronunciamento da soberania popular que venha a consagrar um candidato de esquerda.
Por fim, o delírio, ou o desrespeito à história. Como ainda afirmar, como faz o general, que a ditadura que impôs a censura, cassou mandatos, fechou o congresso, acabou com as eleições diretas, inventou senadores biônicos e impôs uma legislação draconiana que impedia o avanço das forças democráticas “fortaleceu a representação política”?
É preciso declarar, porém, que terminei encontrando um ponto de concordância com o general, quando este nos previne: “É bom que os brasileiros se preocupem com o que fazem, ou podem fazer, as suas Forças Armadas”. Estamos, os brasileiros, muito preocupados, e essa preocupação cresce na medida em que mais revisamos a conflituosa convivência dos militares com a democracia.
ROBERTO AMARAL – Escritor, jornalista, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em 2015, foi nomeado conselheiro da Itaipu Binacional, foi presidente do Partido Socialista Brasileiro.
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