Por Ana Maria Iencarelli –
Um vídeo pornográfico de estupro de bebê é vendido por 50, 70, 80 mil na deep web, sem maiores dificuldades, nem para o vendedor, nem para o consumidor.
Sabe-se da riqueza que envolve a comercialização e a judicialização do abuso sexual incestuoso. Um vídeo pornográfico de estupro de bebê é vendido por 50, 70, 80 mil na deep web, sem maiores dificuldades, nem para o vendedor, nem para o consumidor. Vale ressaltar que é uma nova forma de exploração do trabalho escravo infantil. E sexual.
Um laudo pericial também pode custar os mesmos valores, sem maiores problemas nem para o contratante, nem para a contratada, que não precisa gastar tempo com horário marcado porque grande parte desses laudos, afirmando que não houve abuso sexual, todos eram “atos de alienação parental” da mãe, não houve nenhum contato da profissional com a mãe e a criança. São os laudos a distância.
Por vezes escapa um erro grave, a descrição de uma prole de três filhos, com nomes e idades, quando na realidade a criança é filha única. Mas, claro, que isso é uma bobagem, compreendida, perfeitamente, pelo juízo, dito como um erro de digitação. Nomes e idades de irmãos inexistentes, foi apenas uma digitação ‘erradinha’. Se não precisa conhecer nem a criança vítima e sua mãe, que mal haveria em dar existência a inexistentes? Desde que diga que a mãe é alienadora, está tudo certo.
A confusão na nomenclatura do título do protocolo que surge, supercélere, não seria por ignorância da existência do Protocolo da Escuta Especial da Criança Vítima e Criança Testemunha de Abuso Sexual. É lei, desde 2017, e quem trabalha nessa área já “ouviu falar”, pelo menos. Atropela com um título de “protocolo de escuta especializada de alienação parental” a difícil, pela resistência e pelo negacionismo da existência de abuso sexual incestuoso.
Parece-me que da nomenclatura ao conteúdo que valida um termo sem comprovação científica, essa confusão de línguas, conceito psicanalítico nomeado e estudado por Ferenczi, é uma evidência de um desvio de propósito.
Pegando carona no que já é um entendimento cuidadoso da importância desse relato, o novo protocolo copia e distorce elementos psicológicos traumáticos para desviar o foco para a mãe, a culpada, a louca, a desequilibrada, a ressentida, a interesseira. A função materna é bombardeada para fragmentar a força dela ao defender sua cria. A desqualificação da palavra da criança é selada. “Não se deve levar a criança tão a sério” afirma a professora de alienação parental em vídeo publicado por ela mesma.
São evidências da depreciação severa de crianças e mulheres/mães. O ódio pela maternidade, e a violência para atacá-la, detonam a criança e sua mãe. As seis principais formas de violência oferecem um cardápio que enche os noticiários de feminicídios, o pico da escala. Mas não há muita organização nem escalonamento. O Feminicídio pode ser uma das primeiras manifestações da violência. E com a desvalorização da palavra da mulher, se ela pede proteção, isso pode, rapidamente, ser interpretado como exagero, se tiver filhos, é alienação parental. E ninguém tem notícias dessas crianças depois de assistirem à mãe ser assassinada a facadas, por exemplo, afinal o segredo de justiça é seguido à risca, e não há nenhum comprometimento do Estado em acompanhar, com qualidade, essas crianças tão cruelmente traumatizadas. Crianças importam?
Vivemos um tempo de palavras ao vento. Não é preciso que tenham fundamento. Ciência e seus Métodos? Caíram bastante. Então copiar/colar, como no caso acima, para promover a confusão, tornou-se corrente. Estudos apontam para a incidência de um abuso sexual contra a criança a cada oito minutos, e um estupro de mulher a cada seis horas. Esses resultados se referem ao que chega às delegacias especializadas, sabendo-se que a subnotificação é da ordem de um caso notificado e sete não notificados. O medo, a vergonha, a rejeição social, a vulnerabilidade criada pela denúncia, são algumas das razões que impedem as notificações.
Quando penso nas pessoas que se prestam a montar estratégias de milícias psicológicas, sem se importar com a regra teórica ou, até o bom senso, me pergunto se não se preocupam com o que estão praticando. Mas se considerarmos que inventamos uma “profissão” que dita regras, opiniões, que pode lacrar algo ou alguém, ou inflar de vento algo ou alguém, e as pessoas se orgulham em dizer que são “seguidoras”, o que há alguns anos era chamado de “maria vai com as outras”, temos a constatação do esvaziamento da verdade científica e da seriedade.
A expertise da manipulação da sociedade, por palavras faladas como verdades absolutas, faz com que as apostas dos cassinos eletrônicos, bet, bet, bet, por exemplo, assim como os abusos sexuais incestuosos, tenham explodido em números. Similar à subnotificação, um em cada seis reais do dinheiro assistencial é gasto em jogo eletrônico de apostas. Há um endividamento imenso de uma parte da população, o vício do jogo camuflado em brincadeirinha. Similar também na lei em vigor, os jogos de azar são proibidos no país. Assim como os abusos sexuais contra crianças, também proibidos.
Mas há uma espécie de legalização camuflada que acoberta essas duas misérias humanas.
ANA MARIA BRAYNER IENCARELLI é psicóloga, psicanalista de criança e adolescente, graduada pela Faculdade de Filosofia do Recife da Universidade Federal de Pernambuco, pós graduada pela Université René Descartes, Sorbonne, e Formada pela International Psychoanalytical Association, autora do livro “Abuso Sexual, uma tatuagem na alma de meninos e meninas”, Presidente da Ong Vozes de Anjos e colunista desta Tribuna da Imprensa Livre.
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