Por João Batista Damasceno –
Os que atentaram contra a democracia em 1964 invocam a lei da anistia quando lembrados das atrocidades cometidas durante o regime empresarial-militar. Mas persiste na sociedade brasileira a aspiração por memória, verdade e justiça.
Todas as instituições que colaboraram com o arbítrio naquele período devem prestar contas.
Quando da instituição da Comissão Nacional da Verdade, a Associação Juízes para a Democracia/AJD editou nota apoiando-a. A reação de alguns magistrados foi escandalosa. Claro! Tratava-se de descendentes daqueles que violentaram as instituições e que mudaram o rumo de nossa história até a beira do abismo no qual nos encontramos. Os ‘filhotes da ditadura’ estão em várias instituições jurídicas, mas não para realizar substancialmente a justiça.
A afronta ao judiciário e redução da força do Direito foi o caminho trilhado pela tigrada para estabelecimento do direito da força nos ‘Anos de Chumbo’. No judiciário tivemos magistrados do porte de Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, ministros do STF cassados pela ditadura. Na advocacia tivemos defensores dos direitos humanos como Modesto da Silve, Sobral Pinto e Heleno Cláudio Fragoso, todos presos ou sequestrados, unicamente por defenderem as liberdades. Mas nem todos tinham o mesmo porte.
De Modesto da Silveira ouvi relato de caso de interrupção de interrogatório na Justiça Militar para que agentes da repressão pudessem ‘conversar’ com o preso em sala separada contígua à sala de audiência. Aqueles juízes militares não botaram a mão na massa para torturar a pessoa que deveria ser julgada com imparcialidade. Mas, admitiram a interrupção do interrogatório para a ‘conversa reservada com o cão’ e, em seguida, prosseguirem com o ato judicial.
Não tenho preconceito contra as Forças Armadas. Afinal, foi a instituição que mais sofreu com o arbítrio.
O judiciário teve algumas centenas de membros afastados, incluindo cinco ministros do STF (três por explícito ato de força datado de 16/01/1969 e dois por solidariedade àqueles), mas as Forças Armadas tiveram mais de 20.000 desligamentos. Com a ascensão da ‘Linha Dura’, até os Tenentistas foram ‘cancelados’. Hoje, temos o predomínio dos descendentes da ‘Linha Dura’ ala militar que transformou quarteis em centros de tortura e laboratório do ‘Terrorismo de Estado’ como o praticado pelo sargento Rosário e pelo Capitão Machado no Caso Riocentro.
Basta falar em memória, justiça e verdade que os cúmplices da tirania se ouriçam e se apegam à lei da anistia. A anistia não recolocou a tigrada em seu lugar, pois não desmantou o aparato repressivo que durante a Constituinte ameaçava parlamentares e hoje volta a fazê-lo. Hitler, ao invadir a Tchecoslováquia em 1938 ironizou a força do Direito e, explicitamente, falou do direito da força, perguntando sobre quem se lembrava do massacre dos armênios, genocídio praticado pelo Império Turco-Otomano no início do século do século XX. Não tivessem os aliados dissolvido as Forças Armadas nazistas, instalado o Tribunal de Nuremberg e editado as leis humanitárias que se seguiram, hoje, talvez, não lembrássemos do holocausto nazista e o próprio genocídio dos armênios poderia ter sido relegado ao esquecimento.
A transição para a democracia no Brasil se completará quando extinguirmos a justiça militar, cujo funcionamento não se justifica em tempo de paz; colocarmos os militares e suas pensionistas no regime comum da previdência social, no qual já estão todos os demais agentes públicos; alocarmos os recursos do orçamento militar em área de ciência e tecnologia – nuclear e hidrográfica na Marinha – e engenharia no Exército; adotarmos predeterminação pela sociedade civil dos gastos militares; suprimirmos o papel repressivo ao povo pelas Forças Armadas; redefinirmos os currículos das escolas militares para possibilitar formação para a civilidade e afastamento da tacanha concepção ideológica da oficialidade; e promovermos revisão da lei da anistia.
Sem estes passos a parcela do estamento militar beneficiária das ‘boquinhas’ vai continuar acreditando que guerra contemporânea ainda se faz com invasão física de fronteira e se achando no direito de tutelar a sociedade e suas instituições com exigência de sinecuras, às vezes à mão armada.
JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro efetivo da ABI; Colunista do Jornal O Dia. (Fonte: O Dia)
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