Por Lincoln Penna –
“(o) ´novo príncipe´ só será possível mercê o constante domínio da ciência ancorada pela disposição da paixão do querer.”
Com o trecho acima conclui o meu livro intitulado Qual República Queremos? A alusão ao conceito de novo príncipe do filósofo italiano marxista Antonio Gramsci eu me apoiei para encerrar o apêndice do referido livro que trata da revolução brasileira: uma discussão. E assim dou início a esta reflexão para propor a imperiosa necessidade de se conjugar a razão e a emoção, sob a forma de paixão em torno de um objetivo.
Como não pretendo discorrer sobre questões existenciais, muito embora elas perpassem a esfera das práticas políticas é destas que me ocupo aqui. E essa questão tem a ver com as mais recentes manifestações do presidente Lula em suas andanças pelo exterior. Avaliando suas falas entendo que ele conjuga a racionalidade com a paixão do querer fazer. É uma característica comum às lideranças políticas mais autênticas. O epíteto de estadista por mais controvertido que costuma ser ao se aplicar a determinados atores políticos, tem sua razão de ser dado exatamente à vontade política de transformar em realidade desejos construídos pelas suas consciências.
Esse comportamento sem as amarras dos tratos convencionais tem o condão de revelar o real desejo de quem assim procede. Em geral, são dizeres nos quais a honestidade das ideias e proposições prevalecem sobre os reparos cuidadosos dos assessores, sobretudo nos encontros com representantes de outros interlocutores internacionais. Não há razão para ficar refém de meras convenções protocolares. Lula tem expressado o que realmente pensa e isto é que o torna uma liderança respeitável, ainda que sujeita a críticas.
Até hoje a bandeira do combate à fome projetou de tal maneira a figura de Lula, que tem prevalecido o respeito dos mais variados representantes da comunidade mundial. Ele não descobriu a fome, mas escancarou a sua face cruel de modo a convocar a todos e todas para uma batalha pela dignidade do ser humano. Tudo o que faz de bom ou de errado não apaga a mensagem proativa do combate à fome. Afinal, são assim os grandes líderes, que independentemente da avaliação de suas atividades políticas deixaram seu nome na história em virtude de feitos ou acenos que ficaram marcados.
Não vou me deter em exemplos e muito menos em comparações, mas o que seria dos rumos da Segunda Guerra não fosse a atitude das três lideranças aliadas, Churchill, Roosevelt e Stálin. Cada qual a sua maneira impediu a ameaça nazista. E coube ao primeiro que diante do medo de muitos políticos ingleses das retaliações hitleristas bancou a resistência e o acordo com os soviéticos sendo ele uma figura conservadora e anticomunista. Da mesma forma, o que seria do fim do apartheid na África do Sul não fosse a determinação de Nelson Mandela a simbolizar a importância da paixão do querer sem hesitar depois de 27 anos de prisão.
Assim, em todos os exemplos mencionados essas lideranças agiram de acordo com a repulsa de uma humanidade violentada por práticas excludentes e profundamente antidemocráticas.
Essa conexão com os sentimentos do mundo mais fragilizado porque representado pelos povos de todos os continentes violados pela truculência é que fizeram e fazem os grandes líderes. Reduzi-los as amarras conceituais do campo ideológico é uma atitude além de sectária e mesquinha por recusar-se a reconhecer as atitudes dos que estiveram ao lado dos valores humanitários..
Os políticos de ocasião, os oportunistas e demagogos não conseguem mascarar seus verdadeiros intentos. Usam e abusam da boa fé dos que anseiam por soluções imediatas para livrarem-se de seus problemas mais agudos, e com essa prática esses falsos representantes do povo tripudiam do exercício da política. E ao assim incidirem maculam o exercício da política vista pelos mais afoitos e ingênuos como uma forma de benefício de quem exerce essa representação em nome do povo. Aliás, geralmente, esses políticos de araque apresentam-se como irados combatentes da corrupção, sempre a atribuírem esses desvios dos bens públicos aos seus desafetos.
Em oposição a esses, Lula pôs à nu as contradições de uma ordem mundial que necessita de uma ampla reestruturação. Foi ouvido onde esteve com aquele silêncio obsequioso dos que tiram proveito dessa situação na qual se encontra a estrutura organizativa da comunidade das nações. Em alguns momentos, o presidente brasileiro deixou de lado os papéis previamente preparados para suas falas e improvisou com força e determinação, pois tinha consciência de que era preciso dizer o que disse sabedor que sua fala tem respaldo por ser verdadeiro chamamento com vistas às soluções estruturais de um mundo saturado por injustiças derivadas das desigualdades que crescem tanto quanto as ferramentas tecnológicas a serviço das guerras.
Sem lançar mão do termo e talvez sem contar com total apoio de todos que o seguem, o que Lula tem dito em seu dizer oculto é que o mundo precisa na verdade de uma revolução social tanto quanto possível e nos marcos da única legalidade possível, a da defesa da civilização. O que isso significa senão o atendimento daquilo que garanta a dignidade das massas populares carentes das condições mínimas de existência. O que também fica implícito em suas falas é que numa ordem econômica excludente como a que vivemos sob o império do capital é impossível atender a essas demandas.
Logo, um outro mundo precisa ser construído.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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