Por José Carlos de Assis

Projeto Carol (A)

A ESCRAVIZAÇÃO DO BRASIL NO ALTAR DA GEOPOLÍTICA

  1. Carlos de Assis*

A elite política e militar brasileira nos está condenando à escravização pelos Estados Unidos. É que estamos no centro de um conflito geopolítico entre norte-americanos e russos. Devido a uma visão entreguista dos golpistas e pós-golpistas de 2015, essas elites se revelaram como vassalos dos interesses norte-americanos e incapazes de ver estrategicamente as vantagens de uma neutralidade entre as duas superpotências militares. Vendem-nos como os chefes negros vendiam seus próprios irmãos ao branco escravagista, no tempo da escravatura. Com isso nos estão consolidando na posição de subordinados políticos e econômicos de um dos lados em detrimento do desenvolvimento nacional e da consolidação de um Estado de bem-estar social.

Essa espécie de leilão dos valores brasileiros remete à recuperação russa da desagregação da União Soviética e da consolidação econômica da China como a maior força econômica do mundo em termos dinâmicos. O império norte-americano, que se imaginava em situação absolutamente hegemônica no mundo,  perdeu a possibilidade prática e ideológica de apresentar-se como dono da terra. A aliança estratégica entre a Rússia, em paridade nuclear com os Estados Unidos, e a China, em virtual paridade econômica, contrariou a expectativa de prolongamento do conflito sino-soviético para além do fim da Guerra Fria. De fato, esses países acabaram por articular o núcleo de um poder econômico-militar que não pode ser vencido pela guerra frontal, ou mesmo pela força econômica norte-americana, sem retaliações inaceitáveis.

A saída dos Estados Unidos diante desse impasse, a partir da  ideologia dominante ocidental, ocorreu progressivamente mediante ações “pacíficas”. Para isso reivindicaram uma superioridade política e moral na construção de um círculo de aliados em torno dos próprios interesses a fim de, no mesmo movimento, de conter a Rússia, acusada de expansionista. Politicamente o argumento tem sido promover a democracia; moralmente, a defesa dos Direitos Humanos e o combate à corrupção. Na era nuclear, como observado, não se pode conquistar a hegemonia absoluta pela guerra. A alternativa foi dominar países periféricos por mobilizações controladas  de dentro, convertendo ao regime ocidental sobretudo os potenciais parceiros da Rússia, mediante expedientes de desestabilização de governos locais. 

Inicialmente, já nos primeiros anos pós-soviéticos e aproveitando-se da fraqueza militar, moral e política da Rússia, o Império ocidental, no momento incontestado, avançou “pacificamente”, pelo braço da OTAN, sobre o Leste europeu, contrariando compromissos verbais com os russos de não posicionar mísseis nos países anteriormente  aliados de Moscou. Em pouco tempo dez países que de alguma forma eram ressentidos com a antiga dominação soviética foram engolidos pacificamente pelos Estados Unidos/OTAN: primeiro, República Checa, Hungria e Polônia foram incorporados; em seguida, em 2004, Bulgária, Estônia, Latvia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia. Os russos protestaram acremente, mas em vão.

 De acordo com a insuspeita revista norte-americana “Foreign Affairs”, durante a campanha da OTAN contra os sérvios-bósnios o presidente russo, Boris Yeltsin, declarou peremptoriamente: “Este é  o primeiro sinal do que poderia acontecer caso a OTAN avançasse sobre as bordas da Federação Russa… A chama da guerra poderia explodir através de toda a Europa”. Entretanto, na ocasião, os russos eram muito fracos para se contrapor a esse avanço para o Leste. Este, de qualquer modo, não parecia aos russos significativamente ameaçador, desde que nenhum desses países médios tinha fronteiras com a Rússia, exceto os pequenos países bálticos.

A OTAN, contudo, não se contentou. Na sua cúpula de 2008, a aliança discutiu pela primeira vez a admissão de Geórgia e Ucrânia, ambas na fronteira com a Rússia. A administração Bush deu suporte a isso, mas França e Alemanha se opuseram com receio de que esse movimento antagonizasse os russos. Os membros da aliança chegaram então a uma solução de compromisso: não seria iniciado um processo formal de filiação, mas foi feita uma declaração endossando as aspirações de Georgia e Ucrânia, anunciada solenemente: “Estes países se tornarão membros da OTAN”.

A pressão norte-americana sobre o Leste se intensificou. Passou à forma de estímulos a rebeliões internas a pretexto de promover a democracia. A primeira investida foi na própria Geórgia. Entretanto, nessa altura, o poder na Rússia mudara de mãos em favor de Vladmir Putin, e a força militar fora gradualmente restaurada. Quando a OTAN instigou uma  guerra no país, que levaria à anexação de duas províncias russófilas pela Geórgia, Putin reagiu militarmente e liquidou as pretensões do presidente do país, francamente pró-incorporação na OTAN. Oportunamente, seria destituído, o que assinalou a primeira derrota da aliança em seu avanço sobre as fronteiras da Rússia.

A invasão militar deixou clara a posição de Putin em oposição à entrada na OTAN da própria Geórgia e da Ucrânia. Não obstante,  o que realmente despertava o apetite norte-americano era justamente a Ucrânia, por seu tamanho, nível de desenvolvimento e por sua posição estratégica “sobre as costas da Rússia”. Começou então a operação de conquista da sociedade civil do país. O governo norte-americano bancou mais de 60 projetos da fundação privada “Compromisso Nacional pela Democracia”, NED em inglês, cujo presidente, Carl Gershmann, classificaria o país como “o prêmio maior” por seus serviços.

Mas não pararia ali. Os russos viram os movimentos de engenharia social e soft power como uma ameaça direta, e na verdade tinham razão. Segundo o presidente da NED, “a escolha ucraniana de aderir à Europa iria acelerar o desapontamento da ideologia do imperialismo russo que Putin representa”. E acrescentou, numa entrevista ao Washington Post: “Os russos, também, se defrontam com uma escolha, e Putin deve se confrontar com uma  perda final não apenas na fronteira, mas dentro da própria Rússia”. Era uma ameaça direta e frontal de um potentado norte-americano à integridade nacional da Rússia.

Os russos mantiveram suas advertências. Um jornal russo reportou que Putin, num telefonema a Bush, disse de forma “muito transparente que se a Ucrânia fosse aceita na OTAN ela cessaria de existir”. Contudo, manobrando com forças internas sociais e militarizadas, inclusive neofascistas, mediante ajuda de ONGs ativistas como a NED e a Open Society do bilionário George Soros, tentaram dar um golpe completo no governo democraticamente eleito da Ucrânia. Putin reagiu, reduzindo o golpe à metade. Apoiou militarmente os russófilos do leste, dividiu virtualmente o país e incorporou a Criméia, acendendo as chamas de uma guerra que dura cinco anos. Foi uma derrota para os norte-americanos. Reagiram furiosamente com embargos comerciais e insultos, antecipando o momento em que o governo norte-americano apontou a Rússia e a China, recentemente, como inimigos.

Onde os russos não quiseram ou não tiveram condições de reagir, a força destrutiva norte-americana implantou sua guerra assimétrica, usando quintas-colunas do sistema político e judiciário  em nome da democracia ou da luta contra a corrupção, sempre visando a derrubar governos tradicionais com algum nível de proximidade com a Rússia. Assim aconteceu com a Líbia, virtualmente destruída no curso da chamada Primavera Árabe, e do próprio Egito, nesse caso manobrando interesses radicais próprios da Irmandade Muçulmana, embora o país tenha sobrevivido e enfim salvo por militares nacionalistas – o que infelizmente falta no Brasil.

No começo desse processo, o maior nível de audácia dessa política norte-americana, um pouco anterior ao fim da União Soviética, foi a tentativa de desestabilizar a China, também em nome da democracia. Estudantes instigados pelo Departamento de Estado ocuparam a Praça da Paz Celestial reivindicando liberdade, no mesmo tom que seria usado nas demais intervenções posteriores. Os Estados Unidos perderam, mas a atual insurgência em Hong Kong indica que não desistiram. E, como sempre, no Ocidente, ganham a batalha da publicidade: sem qualquer evidência, a mídia ocidental controlada por Washington sustentou que houve a morte de centenas de manifestantes  no que chamaram de “massacre da Praça da Paz Celestial”. Na verdade, não morreu ali um único manifestante. Morreram cerca de 30 nas cercanias em confronto com o Exército – novamente segundo “Foreign Affairs” numa edição datada de dez anos depois.

O modelo ucraniano de guerra assimétrica aplicado em Kiev pelos Estados Unidos se estendeu a outras partes do mundo, inclusive na chamada Primavera Árabe na África, instigada pelos Clinton e sancionada por Obama. Levou, como mencionado,  à destruição da Líbia como Estado nacional integrado e à maior torrente emigratória para a Europa em tempos contemporâneos. A Síria enfrentaria mobilizações “democráticas” similares que também resultaram em guerra civil, só não sucumbindo, como a Líbia, pelo aberto apoio russo ao governo de Assad. Na Turquia, uma tentativa de golpe “democrático” pró-americano comandado por um clérigo milionário que vive nos Estados Unidos foi fulminada por um contra-golpe do governo Erdogan, neste caso já com claro apoio da inteligência russa devido a interesses estratégicos, como aconteceu com Síria. 

Esses casos ilustram a disposição russa de enfrentar em terceiro país o poderio norte-americano em favor de seus  aliados reais ou potenciais. E exibiu outra face da guerra assimétrica de interesse direto para o Brasil: a mobilização interna da grande mídia e da guerra legal, a lawfare, revelada na reação turca que determinou a prisão de milhares de juízes, promotores e advogados envolvidos com a tentativa de golpe mascarada pela defesa da “democracia”. Em outro plano, seguindo  passos anteriores dos democratas, Donald Trump intenta enfraquecer a aliança Rússia-China através de guerra comercial contra os chineses, só limitada devido a interesses materiais norte-americanos presentes fisicamente na China.

O processo chegou à América Latina através da Venezuela bolivariana. A presença física russa suscitada pelo nacionalismo interno contra os Estados Unidos, inclusive dos militares, veio para o primeiro plano da cena, obviamente interessados em preservar interesses econômicos significativo em torno do petróleo. De qualquer modo a aliança com Moscou viria a ser decisiva no contra-ataque à tentativa de golpe norte-americano comandada no plano doméstico pelo títere Guaidó – no qual o governo estreante de Bolsonaro tentou irresponsavelmente se envolver, sendo contido por militares realistas de seu círculo.

A Bolívia não teve a mesma sorte. Detentor da maior reserva de lítio do mundo, um material raro e estratégico da era eletrônica, o país tentou ingenuamente obter uma parceria com os russos na sua exploração, desconhecendo os condicionantes geopolíticos. Mobilizando, mais uma vez, forças internas entreguistas e literalmente comprando militares, os Estados Unidos derrubaram um governo legítimo, com forte representação da maioria índia, desencadeando verdadeiros massacres de populares inconformados com o golpe. O braço legitimador da intervenção foi a Organização dos Estados Americanos, OEA, a serviço dos Estados Unidos, que questionou os resultados eleitorais pelos quais o presidente Evo Morales estaria eleito. Nesse caso, não tinha havido tempo para os russos consolidarem uma aliança mais decisiva com La Paz, pelo que o conjunto da América do Sul, com exceção da Venezuela, se tornou um quintal livre para o desenvolvimento de suas políticas neoliberais e de financeirização da economia.

ATAQUE AO BRASIL

No Brasil o sistema jurídico montado através da Lava Jato, com total apoio da TV Globo e da grande imprensa, serviu como braço direto do lawfare norte-americano para liquidar com a política externa independente de Lula. O país cometeu o atrevimento de integrar os BRICS, tornando-se associado indireto de Rússia e China; organizou a Unasul, à margem do controle dos Estados Unidos; reforçou o Mercosul e rejeitou a ALCA, em direto desafio a Washington. Era demais. Promoveu-se então uma espécie de pseudo-insurgência  em 2013, com objetivos pouco entendidos até hoje, mas enfim desvendados como expressões da influência dos Estados Unidos através da mídia cooptada. 

Na realidade, como não se podia, no caso brasileiro, usar  o pretexto da luta pela democracia para a mudança de regime internacional e local, usaram-se, com outros pretextos, os instrumentos da democracia em pleno funcionamento para desmontar a política externa vista como favorável a Moscou e Pequim. Em conseqüência, diante de uma presidente fraca, começou a ser liquidado o legado de independência externa do governo Lula através da Lava Jato, cujos magistrados e promotores se haviam tornado freqüentadores assíduos do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. A única ponta que sobrou dos fios da autonomia externa brasileira foram os interesses materiais ligados à China e Rússia, através do agronegócio, pragmaticamente mantidos por Xi Jinpin e Putin a despeito das bravatas ideológicas de Jair Bolsonaro.

Esse breve relato, em sua maior parte baseado numa revista norte-americana de credibilidade mundial, visa a três objetivos: primeiro, evidenciar o caráter intervencionista agressivo dos Estados Unidos mediante esse cerco à Rússia e à China, como  aliada estratégica, as quais se tem movido sobretudo defensivamente; segundo, a subserviência total da mídia e dos militares brasileiros instruídos por ela às histórias produzidas pelo Departamento de Estado e Departamento de Justiça dos Estados Unidos, com parcialidade absoluta a favor dos interesses norte-americanos; terceiro, a identificação nesse emaranhado geopolítico de qual é o espaço reservado ao Brasil no futuro, se é que temos um fora da órbita hegemônica norte-americana.

Note-se que a continuidade da Guerra Fria sob a forma de Guerra Geopolítica está sob o mesmo protocolo de dissuasão nuclear que prevalecia antes. Entretanto, há um segundo nível de dissuasão   representado por recursos militares de destruição em massa que podem ser usados em conflitos internos, estimulados de fora. Na Líbia, próxima da Rússia, houve, como dito acima, a virtual destruição do país por forças internas sublevadas pelos Estados Unidos, e a Síria só não teve o mesmo destino devido à intervenção russa que defende seu território. Aliás, isso parece estar acontecendo também na Venezuela, a despeito das mobilizações internas contra Maduro e seus aliados cubanos e russos. 

De qualquer modo, a guerra civil já não é, em geral,  instrumento de ação política eficaz por forças opositoras aos regimes anti-nacionais, alienantes da soberania, sem risco da desintegração do país. A oposição será esmagada sem piedade, como acontece na Bolívia e no Peru, com franco apoio norte-americano, ação policial interna e cobertura jurídica, lançando inclusive as Forças Armadas contra o povo e o aparato legal contra inimigos seletivos como Lula – o que, no Peru, levou ao suicídio do ex-presidente Alan García acusado de corrupção por uma farsa. É que o governo Bolsonaro já se prepara para enfrentar rebeliões populares, inclusive com o aparato legal do princípio “excludente de ilicitude”, em discussão no Congresso, que é uma espécie de “licença para matar” manifestantes contrários ao regime politicamente contestado.

Em outro tempo, no caso brasileiro, era de se esperar uma ação nacionalista por parte dos militares que poderiam pesar a favor de interesses nacionais, como aconteceu na ditadura com Geisel. Já não existe essa possibilidade. Os altos oficiais brasileiros são formados em escolas norte-americanas e doutrinados no pensamento neoliberal, apresentando uma visão tosca da história e da realidade do país, como tem demonstrado os discursos de generais como Vilas Boas, patrocinador no Exército da eleição de Jair Bolsonaro, e Hamilton  Mourão, vice-presidente da República. Ao contrário de uma ação positiva em favor do povo, eles se acomodam na posição de guardiães da lei e da ordem ditada do exterior enquanto ameaçam os cidadãos internos. 

A ampla operação de manipulação de massas contra as forças progressistas na eleição de 2018 articulou uma maioria inédita do governo no Congresso, e as campanhas eleitorais da Lava Jato favoreceram esse resultado, assim como intimidaram o próprio Judiciário que se tornou uma âncora do Executivo francamente autoritário. Assim, num mesmo movimento, Executivo, Judiciário, Congresso, Procuradoria Geral da República, Polícia Federal se alinham todos contra o resto desbaratado das forças nacionalistas do país. Sem guerra civil, sem maiores conflitos, quase sem resistência, o Brasil se subjugou aos interesses norte-americanos conduzido por suas elites financeiras e políticas – os novos mercadores de escravos.

 ALTERNATIVAS

Entretanto, seria tão ruim assim ser um aliado explícito dos Estados Unidos, como quer o sistema Bolsonaro, tendo em vista experiências como Japão e Alemanha do pós-guerra? A resposta exige uma consideração sobre os movimentos estratégicos norte-americanos no pós-guerra. Eles estavam voltados para conter a aspiração ideológica do socialismo no mundo, em contraposição às relações entre Geopolítica e Neoliberalismo atuais. Essas duas instâncias andam juntas. O neoliberalismo pregado em Davos responde a uma estratégia do capital mundial sob liderança norte-americana que procura se contrapor aos “exageros” do Estado de bem-estar social, que teriam levado a redução da eficiência e da produtividade das economias nacionais européias. Na prática, isso se traduziu numa revanche contra a ordem social progressista, que levou à quase completa financeirização da economia mundial sob o rótulo de globalização, e que pretende ter um mundo sem fronteiras para o capital financeiro.

O mecanismo de transferência de renda do setor produtivo para o setor financeiro se faz via taxas de juros que, mesmo em níveis baixos por causa da concorrência, se expandem horizontalmente através da bancarização dos pobres. Em países emergentes como o Brasil, as taxas de juros absurdamente elevadas representam uma oportunidade de aprofundamento ainda maior da extração da mais valia em favor do setor financeiro, em escala sem precedentes. Pressionados pela base social, de um lado, e pelo apetite financeiro, de outro, mesmo os Estados mais avançados da Europa são condenados pelas agências internacionais comandadas pelo governo norte-americano, como Banco Mundial e FMI, e, na Europa, pelo BCE e Comissão Européia, a recorreram a crescentes ajustes fiscais internos que sancionem a sangria da renda produtiva  e degradam a vida social. Curiosamente, o único país da Europa Ocidental que tem escapado do cerco neoliberal é o pequenino Portugal, mediante uma política expansiva que deu certo. No plano mundial, a mais categorizada voz que se levantou contra os excessos da financeirização foi a do Papa Francisco, num documento demolidor.

O governo Lula avançou numa política social e econômica nacionalista sem maior consciência dos condicionamentos geopolíticos, mas teve resultados espetaculares nas duas esferas. Às voltas com a crise mundial, o governo Obama estimulou no seu próprio interesse políticas keynesianas de retomada da demanda no mundo, o que incluiu o Brasil. O governo Lula injetou 200 bilhões de reais na economia em 2009 e 2010, mediante financiamento do Tesouro ao BNDES, manteve a política social de valorização do salário mínimo e o combate à fome, eventualmente na  contramão das políticas neoliberais convencionais de ajuste fiscal e contração da demanda.

Em resposta, a economia que havia sofrido uma contração em 2009 de quase 2% apresentou um surpreendente crescimento de 7,5% em 2010. Parecia uma vitória contra o neoliberalismo, mas foi quimérica. O fato é que a equipe neoliberal do governo acabou voltando ao leito tradicional da política econômica restritiva. Talvez assustado com o próprio sucesso, o governo deu uma travada na economia em 2010, derrubando a taxa de crescimento nos anos seguintes para os níveis medíocres devidos aos ajustes fiscais permanentes, via superávits primários.

Esse breve momento na política brasileira provou ser possível uma política econômica e social bem sucedida desde que sob uma liderança competente e informada. A distribuição de renda melhorou e, pela primeira vez em décadas, a concentração de renda diminuiu. O país estava pacificado, os trabalhadores e as próprias elites financeiras aparentemente satisfeitos. Contudo, isso contrariava diretamente os interesses do capital. Novos ajustes fiscais – notadamente, a política de geração de superávits primários – continuaram a alimentar o processo de transferência de renda para o setor financeiro pelo mecanismo do serviço da dívida pública. Posteriormente, isso foi reforçado pela reforma trabalhista de Temer e a reforma previdenciária de Bolsonaro, voltadas para extrair mais valia diretamente dos trabalhadores do setor produtivo em favor dos bancos.

Poucos compreendem como se manifesta na prática esse processo de transferência de renda. No mundo desenvolvido, a resistência social é relativamente forte e o Estado de bem estar social consome parte significativa da renda nacional. Isso limita a fatia dos bancos, embora esta não se reduz de forma absoluta, sobretudo no caso dos bancos internacionais e de seus correspondentes que exploram a mais valia em escala global. No mundo em desenvolvimento, a resistência social é fraca, os assalariados são mais vulneráveis politicamente e o Estado de bem estar social é limitado. Em contrapartida de sua virtual escravização, sobra uma fatia crescente de mais valia específica e social em favor dos bancos e do conjunto do setor financeiro.

Nos países emergentes da órbita ocidental, a cavalaria avançada do sistema é a bancarização. Uma vez alistados em seus cadastros os correntistas pobres, os bancos passam a pressionar imediatamente a que tomem empréstimos baseados, por exemplo, em crédito consignado, paguem tarifas altíssimas, façam aplicações financeiras em sistemas previdenciários privados, comprem seguros, usem cartões de crédito e empréstimos especiais com juros altíssimos de emergência, e se sujeitem (no caso brasileiro) à invasão de sua privacidade através dos cadastros positivos para assegurar maior segurança e redução de custos na captação de clientela. Para se ter uma idéia do que isso significa, nos maiores bancos brasileiros a receita de tarifas é igual ou maior que o custo total do pessoal. Essa renda financeira vem de algum lugar. E o lugar é a mais valia produzida pelos trabalhadores num sistema que a elite dominante brasileira está forçando rumo ao Estado mínimo.

É justamente no contexto da busca do Estado mínimo que deve ser entendido o programa de privatização das estatais, inclusive as estratégicas Petrobrás e Eletrobrás. Não estão em jogo preços mínimos ou reservas políticas como a golden share; o objetivo é despir completamente o Estado de seus componentes produtivos. Numa escala ainda mais entreguista, o governo pôs à venda partes substanciais do pré-sal, o que não se cumpriu, por enquanto, apenas pelo desinteresse das petrolíferas internacionais no modelo de produção que já está sendo adaptado ao gosto delas. São entidades estratégicas, sem qualquer dúvida. Sua privatização deveria incomodar os militares. Eles, contudo, os  defensores da Pátria, estão numa posição de vergonhoso silêncio e aceitação da destruição do patrimônio físico nacional. 

LIMITES DE ALTERNATIVAAS

Está dada a resposta, portanto, à pergunta acima: por causa da financeirização, não há a mais remota possibilidade para o Brasil de ter nos Estados Unidos um aliado benigno. É contra a natureza deles. E são estreitas, no atual registro de política econômica, nossas possibilidades de desenvolvimento autônomo. Tradicionalmente, a política externa norte-americana visava à penetração de suas empresas industriais no mercado mundial, ou pelo menos na metade não socialista. Isso era uma forma de exploração, porém com efeitos positivos na industrialização da periferia, inclusive no Brasil. 

Getúlio se aproveitou da situação para instalar a infraestrutura industrial brasileira, inclusive Petrobrás, Eletrobrás e Vale do Rio Doce, enquanto Geisel criou as empresas tripartites, colando o empresariado nacional a sócios estrangeiros. Ambos tiveram sucesso.  Agora, porém, quem está no comando é Wall Street. E Wall Street, através de alianças bancárias na periferia, é um extrator mais poderoso de mais valia do que o sistema industrial. Por isso não cederá na promoção da financeirização em nome da competitividade pela renda do oligopólio bancário mundial, incluindo o Brasil.

Para ilustrar o poderio do capital financeiro norte-americano, quando aplicado em favor de si mesmo, basta considerar os efeitos devastadores da débâcle de 2008 e a forma como acabou sendo contornada. O presidente Obama teve de enterrar recursos equivalentes a um déficit fiscal de 7,5 trilhões na economia, de 2009 a 2014, e o FED estendeu ao sistema bancário empréstimos a custo zero em montante de mais de o dobro disso para estabilizar o sistema. No entanto, não conseguiu fazer passar no Congresso um projeto para restaurar o princípio de separação entre banco comercial e banco de investimento de maneira a evitar outras crises futuras. Para Wall Street, isso reduziria a competitividade bancária norte-americana no mundo. A  vingança histórica eventualmente acabará acontecendo na forma de uma crise devastadora na medida em que a inadimplência generalizada, implícita nas contradições do sistema – redução da renda individual e familiar, e tendência à inadimplência dos pobres e das classes médias – desencadear um processo quebras em cadeia no âmbito das finanças.

O Brasil, portanto, tem uma perspectiva difícil nesse contexto mundial, sobretudo pelo caráter entreguista de suas elites políticas e militares. As possibilidades de retomada  do desenvolvimento são praticamente nulas. A política econômica radical imposta pela equipe econômica vai em sentido oposto a um programa desenvolvimentista de fundamento keynesiano, o único que possibilitaria crescimento significativo da economia e do emprego. Dos Estados Unidos nada se pode esperar, portanto, exceto “conselhos” neoliberais através do Banco Mundial e do FMI. Paralelo a isso, a investida do capital financeiro manterá a pressão por mais juros e menos salários – uma contradição que, como dito, poderá fazer abortar todo o processo pelo desequilíbrio global que isso tende a representar.

O pragmático Xi Jinping ofereceu crédito de 100 bilhões de dólares ao governo brasileiro, mas a efetividade disso é altamente duvidosa. Pode ser apenas uma inteligente jogada estratégica para manter Bolsonaro na rede de interesses chineses. Não se sabe como o Estado mínimo da equipe econômica poderá absorver esse financiamento, mesmo porque, por razões ideológicas, não absorveu os vultosos recursos do Fundo Amazonas financiado por Noruega e Alemanha . Os chineses quererão garantias do Estado, e não aceitarão que o dinheiro acabe no sistema bancário ocidental como capital financeiro especulativo. É preciso ter projetos e obras físicas com garantia soberana, sobretudo para projetos de infraestrutura. Mas o governo não parece interessado nisso pelo corte de sua política econômica, pois ele se empenha em cortar investimento público em lugar de expandi-lo. O mesmo acontece com as possibilidades de recursos do Novo Banco de Desenvolvimento, o banco do BRICS, não obstante o pragmatismo chinês-russo, o qual naturalmente tem limites.

Foi justamente a criação do Novo Banco de Desenvolvimento, um instrumento potencialmente poderoso de expansão das economias, que colocou o Brasil no meio do jogo geopolítico entre Estados Unidos e Rússia/China. A poderosa e lucrativa relação comercial com a China, no âmbito de commodities minerais e agrícolas, trouxe não só benesses particulares internas como a formação de reservas internacionais da ordem de 400 bilhões de dólares. Esses recursos teriam permitido uma arrancada continuada de desenvolvimento sem os riscos cambiais do passado. Entretanto, a equipe neoliberal de Lula não soube aproveitá-la, mas também não a desbaratou. Agora este parece ser o destino das reservas dada a vocação financeira da equipe econômica e a aversão ao desenvolvimento.

BUSCANDO SAÍDAS

 As possibilidades de relaxamento das amarras políticas e econômicas do Brasil dependem de três fatores: da conjuntura internacional, da degradação continuada das relações sociais, e de algum nível de conscientização das massas em relação à situação brasileira objetiva. A conjuntura internacional é um fator aleatório: embora saibamos, por razões históricas e teóricas, que o sistema da liderança do capital financeiro tende a implodir, não sabemos quando. Na realidade, a situação está madura para a derrocada pois o nível de contradição entre a renda decrescente de pobres e classes médias, e os lucros pornográficos do sistema financeiro apontam contradições insanáveis no sistema.

A atual liderança brasileira não tem vocação para lidar com um problema dessa envergadura. Note-se que, em 2008 e 2009, o Grupo dos 20 atuou decididamente em favor de uma política de expansão da demanda de tipo keynesiano, da qual se aproveitou o Brasil com o beneplácito norte-americano. Foi a recaída neoliberal imposta posteriormente pela Alemanha à União Européia, assim como a recaída neoliberal do governo Lula, que resultaram, lá e cá, em retrocesso da economia e, finalmente, numa estagnação que ainda perdura. Enquanto estiver sob controle neoliberal, a política econômica brasileira, na hipótese de uma crise financeira mundial, não saberá por onde começar a reação.

A degradação social brasileira é um processo em andamento e também contém uma  bomba relógio a explodir num tempo aleatório. Por enquanto a sociedade está intimidada em face da sequência de iniciativas retrógradas e agressivas do governo. Em algum momento essa bomba pode explodir de forma similar ao que acontece no Chile, França e Peru. O governo neoliberal provavelmente reagirá com violência e, no limite, lançará as Forças Armadas contra o povo, igual ao que acontece na Bolívia. As consequências seriam devastadoras, em face do apetite por carne humana “esquerdista” de Bolsonaro e seus asseclas.  

Entretanto, isso ainda está no nível de conjecturas. Seria possível uma mudança de fundamentos na política atual numa direção progressista? São grandes as dúvidas. Voltemos ao início. Tornamo-nos peões num jogo geopolítico, o qual, interagindo com as forças financeiras, submeteu o mundo ocidental, desenvolvido e subdesenvolvido, aos mecanismos de financeirização sob o rótulo de globalização. Daí derivou o neoliberalismo.  Isso implica transferências crescentes de renda do setor produtivo para o setor financeiro. Bolsonaro está encharcado dessa doutrina, o que se exprime, por exemplo, na declaração recorrente de que os trabalhadores tem que escolher entre emprego e direitos. 

Em outros tempos, com outra liderança, teríamos ter podido fazer o jogo similar ao de Getúlio entre a Alemanha e os Estados Unidos, na Segunda Guerra, do qual resultou a construção de nossa primeira siderúrgica estatal com apoio norte-americano e do Exército. A situação hoje é outra. Nossos altos oficiais são cultores de Hayek, o profeta do Estado mínimo, não industrialistas, alinhados à financeirização, e se simpatizam com as posições econômicas de seu associado Milton Friedmann, segundo as quais o Estado deve restringir-se em tudo, menos no financiamento generoso das Forças Armadas. Além disso, despojam-se na posição confortável de fazer carreirismo militar sem guerra externa, sob a “amigável” proteção das Forças Armadas norte-americanas, das quais se tornaram forças auxiliares inexpressivas porque não tem atrás de si uma indústria nacional de defesa. Sobram para elas, portanto, a posição de guardiães da potencialmente explosiva ordem interna. Isso lhes permitiria, em situações de crise, matar nas ruas cidadãos de seu próprio país, sem incorrer em crime, em sentido oposto ao que fizeram oficiais nacionalistas egípcios em reação à chamada  Primavera Árabe.

É estreito, por outro lado, o espaço que sobra para efetivação de uma oposição eficaz ao regime de extrema direita brasileiro. Como não há unidade das oposições para se estabelecer um confronto, a  única saída à vista é um processo de conscientização popular no médio prazo, que obviamente não contará com o apoio dos órgãos de comunicação empresariais embora podendo contar com a internet. A curto prazo não é provável que haverá condições para a mudança, mesmo com o desmanche da economia. Portanto, a perspectiva é longa e remete às eleições de 2022. Se não houver sobressaltos externos e internos -, e considerando que o único líder carismático, Lula, que poderia se opor ao sistema com algum grau de eficácia, certamente será mantido preso -, teremos eleições formalmente livres mas absolutamente controladas através da grande mídia cooptada pelo sistema financeiro.

Isso aponta para o imperativo de um processo de conscientização que venha a ser reforçado pela pedagogia da realidade. O desemprego continuará elevado. O PIB saltará da situação atual de vôo de galinha para retornar à estagnação. O expediente de liberação do FGTS, que teve pequeno efeito sobre a demanda porque foi sugado em parte pelos bancos, se esgotará ainda este ano. A concentração de renda puxada pelos lucros bancários prosseguirá. Os salários continuarão tendendo a cair. E trabalhadores e classes médias continuarão enredados em débitos no sistema bancário, em situação de virtual falência familiar. Essa é uma situação que dificilmente se reverterá, porque corresponde ao programa econômico neoliberal sob os auspícios da financeirização.

Com o sistema político de oposição dividido e neutralizado por querelas ideológicas, o processo de conscientização acima mencionado terá de ser uma tarefa no nível da sociedade civil, que pode vir a ser estimulado pela crise federativa. Os Estados, especialmente do Nordeste, estão virtualmente falidos. E o governo acena para eles com um novo pacto federativo infame, cujo único objetivo é acelerar a privatização de entes públicos nas esferas estaduais. Não há nos projetos a respeito enviados ao Congresso uma menção sequer à busca do aumento do emprego e do desenvolvimento. E o governo assumirá plenamente o controle das finanças estaduais liquidando concretamente a autonomia e soberania dos Estados.

A situação objetiva dos Estados pode levar a uma afinidade de objetivos com a sociedade civil, inclusive por parte do movimento contra a privatização das estatais e da  defesa do serviço público. Isso dependerá de duas coisas: primeiro, da percepção estratégica dos governadores assumindo que não tem outra saída a não ser repelir o chamado pacto federativo nos termos do governo e encontrar uma alternativa política, via projeto de lei. Não é impossível, porque o Congresso, bem articulado, poderá lhes dar respaldo. Segundo, de algum nível de percepção das lideranças da sociedade civil, por cima de querelas ideológicas, reconhecendo na aliança com os governadores, contra a privatização e pelo serviço público, um meio de luta eficaz contra o governo que se confessa de extrema direita.

Quem tem o poder institucional governa o curso da história a curto prazo. Por isso, insista-se, a contraposição a ele requer uma agenda de médio prazo, a qual, no entanto, deveria ser colocada em prática imediatamente. O governo federal, por mais autoritário e militarizado que seja, não tem como impedir um processo de conscientização conduzido de forma inteligente por uma liderança coletiva na sociedade civil, capaz de reconhecer o contexto das restrições mundiais e locais. Este, porém, é o campo da tática. Não me deterei nele. Apenas manifesto a esperança de que se materialize o quanto antes, embora visando ao médio prazo.

O Brasil revigorado poderá ter um papel geopolítico relevante no mundo, como começou a acontecer no governo Lula, com o frustrado acordo EUA-Irã, logo sabotado pelos norte-americanos.  Isso por ser uma grande nação disputada entre o Oeste americano e o Leste russo-chinês. Entretanto, o insano presidente Donald Trump acaba de retomar os planos de militarização do espaço através de um comando militar próprio, Spacecomand. Russos e chineses mantêm viva uma proposta que veda o uso do espaço como meio de guerra. O Brasil deveria fomentar um acordo entre as duas partes, colocando-se como co-signatário de um tratado comum vedando concretamente a militarização do espaço. Neste ficaria especificado que desistirá definitivamente de iniciar um programa nuclear com possível apoio russo-chinês, e mediante financiamento acordado do Novo Banco de Desenvolvimento (BRICS), desde que as três potências desistam da militarização espacial.

 


 

*Professor aposentado de Economia Política e Relações Internacionais da UEPB.