Por Alcyr Cavalcanti

Era uma bela manhã de domingo, dia que as pessoas dormem até mais tarde, e depois vão degustar o almoço de domingo. Para os que vivem de serviços prestados, não existe manhã, nem tarde nem noite, nem domingo nem dia santificado. Estava escalado pelo Diário Lance para mais uma final de campeonato no Maracanã onde jogaria o Vasco. Deveria ir junto à primeira equipe, que sairia da sede na Cidade Nova em torno das 13h30 para registrar a chegada dos primeiros torcedores, o entorno do estádio e suas possíveis situações de conflito. Havia saído de casa às 9h30 para me dirigir até a sucursal do Jornal Estado de São Paulo, no Centro da Cidade em um rápido percurso de Metro. O fiel amigo, o laboratorista Luiz Augusto, para os íntimos Sexta Feira estava à minha espera para emprestar uma teleobjetiva 300mm de propriedade da Agência Estado, conforme acertado com o querido Delfim, editor de Fotografia da Suc/Rio, em uma operação secreta. Ninguém deveria saber da tramoia, era uma “ação entre amigos”.

Carregava uma bolsa grande na tentativa de ocultar a tele e não chamar a atenção, mas tive uma grande surpresa. O chefe da redação o Jota Paulo entra a todo vapor no Departamento Fotográfico e vai logo me interpelando “Pô Alcyr, isso é hora, você tem de ir voando para a Câmara de Vereadores para cobrir o velório do cantor Nelson Gonçalves”. Ele era um  ídolo de milhares de fãs.Fiquei petrificado, sem poder dizer a ele que minha ida ao jornal era bem outra. Tinha de resolver a situação, sem comprometer ninguém, em hipótese algumas ninguém deveria saber. Olhei de soslaio para o Sexta que também não sabia de nada e o primeiro fotógrafo a chegar era às 11h, mas tinha outra pauta. Tive de raciocinar bem rápido. Pedi filmes e um carro de reportagem ao que o Jota respondeu, “Tá maluco é daqui até a Cinelândia, vai logo antes que o cortejo saia para o São João Batista. Eu insisti, argumentei que necessitava da viatura em virtude carregar muito peso e principalmente para entregar os filmes da primeira remessa para entrar logo no sistema da Agência Estado. Só assim consegui convencer o chefão.

FOTOGRAFAR O VELÓRIO DA MELHOR E MAIS RÁPIDA MANEIRA POSSÍVEL

O problema agora seria convencer o piloto a dar uma fuga até minha casa para pegar o equipamento, bolsa, câmera, objetivas, flash, bloco de anotações enfim tudo que tinha direito. Só então pude zarpar  para a Câmara na Cinelândia e pedi ao piloto com quem tinha bom relacionamento para esperar um pouco, a ordem seria para somente me conduzir e voltar rapidamente. Procurei registrar de todos os ângulos possíveis, trocava de objetivas, subia e descia as escadarias, fazia closes e atendia ao pedido das clássicas entrevistas com os fãs. Em vinte minutos dois filmes Fuji 200 iso que prontamente entreguei ao piloto para levar ao laboratório e distribuir a quem fosse possível, via telefoto. Continuei a tarefa, um pouco mais calmo, mas quando fui olhar o motorista não havia retornado, fiquei desesperado e resolvi arriscar fui o mais rápido de pude até a sucursal, mas tinha de carregar quilos de equipamento, parecia uma árvore de Natal. Ao chegar o Jota ficou surpreso e fulminou, “Pô tá fazendo o que, volta logo, e fica lá até a rendição”. Entrei no laboratório e irritado perguntei ao Sexta, cadê o fotógrafo para me render?” Quando respondeu fiquei gelado, quem viria era o M..um “marcha lenta” praguejei, cuspi maribondos e pedi pro Sexta ligar de novo. Pensei e falei em voz alta, “esse cara deve estar a retocar a maquiagem, vai levar umas duas horas, tô ferrado”. E voltei desolado para o velório, e desta vez quase sem ação na esperança que M saísse das cobertas.

O tempo é inclemente e não para. Uma da tarde, teria de estar no Lance daí a meia hora, quase sentei nas escadarias para começar a chorar. Resolvi implorar pro Sexta ligar e pedir para o bravo M parar de retocar a maquiagem e pentear as longas madeixas. Calmamente respondeu que já havia ligado e desta vez não obteve resposta.Senti que não iria dar para ir até o Lance e perderia os serviços que eram quase diários. Fiquei desolado, mas resolvi me concentrar e torcer pra tudo dar certo. Começam os preparativos para o translado do caixão para o São João Batista. O ídolo das multidões seria transportado em um carro do Corpo de Bombeiros na última homenagem. O caixão desce as escadarias, a multidão se divide entre lágrimas e aplausos, em uma cena comovente. Procurei o melhor ângulo, já estava á beira de um ataque de nervos, mas tinha de “honrar a firma”. O carro dos bombeiros toma posição para sair da Rio Branco em direção ao Aterro. Olho ao redor e nada do bendito M. O jeito é acompanhar, avisto ao longe o guapo substituto a caminhar lentamente ao sabor dos ventos. Fiquei ao mesmo tempo enfurecido e aliviado, tirei um peso das costas. Disse uns três impropérios para ele entreguei mais um filme ao motorista para deixar na sucursal e voltar para o cortejo fúnebre e voei para o Lance. O relógio marcava 13h50.

Cheguei na Cidade Nova todo suado, sujo completamente descontrolado, mas procurei respirar. Ao chegar o Paulo Marcos editor secamente disse “Alcyr você estava escalado pra ir às 13h30, não deu pra esperar, outro foi em seu lugar”. Desabei, e pensei tanto esforço pra nada.  Resolvi  sentar em uma canto da Redação. Paulo me chamou e disse , “Oi você vai com a segunda turma, que sai daqui a pouco, pega os filmes e se prepara pra não atrasar de novo”e deu uma gargalhada. Fui com a segunda turma, pensando em novas situações, novo tipo de cobertura, situações sociais bem diversas. Ao chegar ao Maracanã cliquei dois personagens que seriam os primeiros torcedores a chegar. Fiz também uma pancadaria entre torcedores e um entrevero com policiais e mandei o filme. O motorista levou dois filmes até o jornal. Na redação do Lance uma dúvida e uma polêmica, havia um corpo sendo transportado em um caixão. Um dos laboratoristas disse espantado “Esse Alcyr é foda, conseguiu até um morto na briga de torcidas, caramba”. E foram apurar, me chamaram ao rádio,do carro, tive de explicar e pedir mil desculpas pela confusão e confessar a trapalhada. Era o cortejo do Nelson Gonçalves que não interessava a um jornal dedicado ao esporte. Ele era “apenas um cantor” e não um craque da bola. Continuei minha tarefa procurando me acalmar. Começa a partida fui escalado para ficar em cima, a chamada “foto da garantia”, a meu ver horrorosa, nada melhor que uma bela foto feita do fosso.

Fotógrafos em ação Acervo/Arfoc

Veio o grande final, Vasco campeão, clássica corrida com a taça para delírio dos milhares de torcedores da geral, os geraldinos que davam cambalhotas de alegria. Volta à redação do Lance, escolha das centenas de imagens, a equipe era excelente e dominava os meandros do futebol como ninguém e tinha o Sérgio Moraes como o primeiro do time. Lá pelas tantas escolhem a capa, as fotos para compor as páginas, e a escolha da página três que chamavam de “Capita” e tinha muita importância. Grata surpresa, minha foto feita da arquibancada do time da Cruz de Malta foi a escolhida e ocupava toda a página  Fui pra casa descansar, todo despencado e dormi no limite físico. Na manhã de segunda fui pra banca perto de casa ver o Lance e o Estadão. Grata surpresa, no Lance a página três de cima a baixo e no Estadão além de fotos em páginas internas, também a da capa. Só que da capa não era minha e sim do querido e devagar quase parando M. O Moraes meu amigão deu sonoras gargalhadas ao saber da trapalhada feita em São Paulo e do prêmio (talvez indevido) pelo meu esforço. Coisas do destino e dos deuses para premiar o esforço sobre humano da mui dura vida de um fotógrafo freelancer.


ALCYR CAVALCANTI – Fotógrafo, jornalista, professor universitário, ex-presidente da ARFOC, ex-secretário da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Trabalhou em alguns dos principais veículos de comunicação do país como as Organizações Globo, Última Hora e o jornal O Dia.