Por Lincoln Penna

Há dez anos a serem completados no dia 20 de junho o centro da cidade do Rio de janeiro foi literalmente tomado por uma multidão, que sendo de natureza política criminalizou a ação política numa inversão de valores jamais vista. Uma semana antes, dia 13, algo que pareceu depois como um ensaio geral havia reunido uma malta há muito não vista, pelo menos desde as manifestações em defesa das liberdades democráticas, que antecederam a derrota da ditadura.

Dessa vez, isto é, na semana seguinte algo semelhante também ocorreu em outras capitais da República e mesmo em cidades de médio porte, e em todos esses lugares as tais manifestações antipolíticas se encontravam presentes. Ora miravam temas como a segurança pública, educação e saúde; ora individualizavam os responsáveis por insatisfações relativas a ausência de políticas públicas. Em todas essas pautas soava um estranho sentimento de ódio acumulado que dessa vez parecia externado de uma forma catártica.

Tanto a esquerda quanto a direita procuraram tirar partido dessa onda de demandas reprimidas. No caso das esquerdas assinalando com júbilo a volta às ruas, ao passo que a direita evocando as teses de sempre, quais sejam, as denúncias de corrupção e de desprezo pelos nossos símbolos pátrios, que segundo os mais extremados tinham sido subtraídos em prol das bandeiras vermelhas do comunismo, o algoz de sempre. Ainda que nesses dias a presença do anticomunismo não chegasse a ser demonstrado com a exuberância que gostariam os seus mais ideólogos praticantes, de qualquer maneira sua presença foi bem assinalada por quem quisesse ver.

Essa tibieza por parte de uma direita já extremada evitou confrontos. O embate que na ocasião dos jovens nos espaços dos grandes e médios centros urbanos ainda não havia sido travado. À primeira vista parecia uma atitude generalizada e sem um perfil claramente ideológico. Pelo menos, assim todos pensavam naqueles momentos de uma agitação coletiva.

Não demoraria muito para que as primeiras avaliações com algum tino viessem a dotar essas enxurradas massivas. Afinal, alguma coisa se passava nos ambientes bem-comportados dos fazedores de fatos pré-fabricados que atendessem aos sempre poderosos de plantão. Em outras palavras, esses acontecimentos não foram espontâneos. Desde cedo houve, com razão, quem suspeitasse dessas arruaças sem lideranças visíveis ou assumidas de modo a dar a impressão tratar-se de uma grossa indignação popular, que de popular a rigor pouco ou nada tinham. Tudo fazia parte de um enredo, sujos desdobramentos todos saberiam em curto espaço de tempo.

Cenário de revolta e insatisfação social ajudou a compor junho de 2013 | Agência Brasil

Aparentemente não havia promotores do evento, salvo as inúmeras mensagens nas redes sociais convocando os internautas para comparecerem à manifestação, que em alguns casos tinha a assinatura de um ainda pouco conhecido Movimento Brasil Livre (MBL). De base predominantemente jovem e de classe média esse movimento carecia de conteúdos que pudessem à época identificá-los do ponto de vista ideológico. Com o passar dos dias e meses surgiriam dentre eles as figuras que se tornariam candidatos com pautas críticas aos políticos e suas práticas e à própria política, de modo a revelar o verdadeiro caráter de seus membros. Alguns deles eleitos. Hoje sustentam também as teses caras à reação, que embalariam o bolsonarismo que viria a arrebanhá-los.

Durante muito tempo a direita em suas variadas expressões comportava-se silenciosamente. Evitava exprimir suas convicções, seja por que razão fosse, e com isso seu único canal para fazer valer suas ideias era nas urnas por ocasião dos pleitos eleitorais. Algumas exceções, é verdade, devem ser mencionadas como a do lacerdismo, no Rio de janeiro, e episodicamente em torno de outras lideranças locais ou regionais.

Porém, o avanço de um ideário mais reformista e por vezes de cunho até mais mudancista no que concerne à revisão de direitos reprimidos no âmbito das questões sociais tornariam essas vozes silenciosas pouco a pouco mais estridentes. Todavia, no fundo com os mesmos propósitos no que diz respeito aos avanços de teses que constrangeriam seus valores.

Há quem tenha se referido a essa “nova direita” como sendo a representação de uma vertente extremada, daí o tom mais agudo de suas aparições e as atitudes mais voltadas para confrontos com quem não aceita suas ideias. Avaliação esta que estaria fortalecida pelo fato de haver uma maior representação dessa extrema-direita mundo afora. Mas, se há uma profusão dessa corrente mais agressiva não se pode descartar sua filiação aos abalos da ordem mundial, seja esta percebida do ponto de vista econômico, logo tendo filiação ao próprio capitalismo, seja no que se refere aos que associam essas crises sistêmicas aos fenômenos fascistas, que historicamente têm sido uma resposta para as crises de um modo de produção cujo único vetor é o culto à lógica do ganho cumulativo.

Associar as crises do modo de produção capitalista ao ressurgimento de uma nova manifestação do fascismo com características próprias, embora pondo em prática métodos similares aos dos regimes totalitários do entreguerras, é mais do que plausível. Faz sentido na medida em que o fascismo é um expediente que busca travar os movimentos emancipatórios, que podem ferir de morte as estruturas que se tornaram arcaicas e precisam ser transformadas para atender as amplas camadas sociais.

Da mesma maneira que o nazifascismo surgiu de movimentos ultranacionalistas a exaltar valores pátrios e a sustenta a defesa da família, da ordem e da propriedade, além, é claro, de atiçar a opinião pública contra a ameaça comunista, supostamente em condições de se impor contra os donos do poder; presentemente – e isso teve seu primeiro surto com os eventos dos dias 13 e 20 de junho de 2013 – há muitas semelhanças. Tem-se dito que o fascismo é insidioso. Surgiu no entreguerras sendo considerado algo bizarro. Poucas pessoas poderiam imaginar que rapidamente e aproveitando-se de um cenário tenso e desesperançoso ganhasse as massas desorganizadas e em busca de uma solução para os seus males.

20 de junho de 2013, Avenida Presidente Vargas, Rio de Janeiro. (Reprodução)

Reavaliar esses 10 anos de um surto massivo e de bandeiras as mais estranhas e confusas nos impõe no mínimo bastante atenção. As crises quando não avaliadas corretamente podem levar a saídas estapafúrdias. E em geral, estas são geralmente contra os interesses do povo, que enganado pode até vir a adotar as falsas soluções de quem efetivamente dirige esse ímpeto antipolítico.

E esse fato não acontece atoa porque é na política que se travam os conflitos de interesses. E estes devem atender às demandas de quem procura uma vida melhor, principalmente as classes subalternas violadas permanentemente, e objeto de perdas de muitas conquistas surrupiadas em nome do equilíbrio orçamentário, teto de gastos, e preocupações com o senhor mercado, quando é na força de trabalho que se criam as riquezas das nações, hoje em dia bombardeadas mais ainda por uma estratégia internacional visando impedir a real libertação dos povos ainda submisso ao ímpeto da acumulação de riqueza desenfreada.

Por último, não custa lembrar que tanto o fascismo italiano quanto o nazismo alemão ocorreram num mundo que se reestruturava e sob o impacto de uma revolução de trabalhadores ocorrida na Rússia a desencadear focos que levaram às classes dominantes europeias a se deixarem atrair pelo fascínio do expediente fascista, sem precisar naquele momento o risco que corriam. Fazer valer esse risco diante da reconstrução e retomada de propostas propositivas nas áreas sociais por parte do governo Lula tende a levar a burguesia a se abrigar às correntes de tipo salvacionista, como o fascismo costuma se apresentar. É temerário para essas burguesias tementes de mudanças mais substantivas e, por outro lado, desastroso para o nosso futuro como povo.

Estamos em tempo de abrir passagem para as grandes transformações necessárias para que o povo brasileiro possa despertar para a realização de sua verdadeira independência, que só pode ser libertadora se for popular. Do contrário, teremos sempre uma porta entreaberta para dar vazão ao desespero, que nos levam a mais submissão e dependência, tal como naqueles tempos da Europa saída da Grande Guerra de 1914 a 1918.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

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