Por Roberto Amaral –
O acordão da casa-grande, tratado neste espaço como artimanha em andamento (“A tramoia da casa-grande para salvar Jair Bolsonaro”. 09.072020), deixa o campo das hipóteses e se estabelece como fato consumado, de que dá conta a nova linha editorial dos grandes jornais, para os quais a presença do capitão e sua récua no comando do país deixou de representar uma ameaça às instituições democráticas. Porque o fundamental, agora, é salvar a “pauta Guedes”, ameaçada de cair por terra com o esboroamento do governo.
Mas que política econômica é esta a que as classes dominantes tanto se aferram? O número de falências em junho cresceu 71,3% sobre junho do ano passado, e nada menos que 93,4% dessa quebradeira atinge as pequenas e médias empresas (dados da Boa Vista-SCPC). Segundo o Banco Central (IBC-Br) a atividade econômica caiu 11,4% entre março e maio. É o maior recuo em toda a série histórica, anunciando uma queda do PIB deste ano em torno de 15%; uma tragédia, se considerarmos que em 2019 o “crescimento” já estancara em pífio 1,1%. Mas nada disso é relevante, porque a batalha ideológica, até aqui ganha pela direita, transformou as reformas do neoliberalismo em uma encantação mágica.
Aqui e neste tempo se apresenta como “modernidade” uma receita que fracassou em todo o mundo. E quando todas as economias capitalistas, incluindo as economias dos países centrais, investem em políticas desenvolvimentistas, entre nós, sempre derradeiros, a “novidade” é a contenção dos gastos, pai e mãe da estagnação da economia, da quebradeira, e do desemprego que crescem a olhos vistos, e crescerão ainda mais se não tivermos forças para conter o projeto suicida da classe dominante brasileira.
Em plena pandemia (aprofundada pelo governo), com nossos mortos se aproximando dos 100 mil (desconsideradas as consabidas subnotificações) continua o descalabro criminoso: o ministério da saúde chefiado por um general (de infantaria) interino, cercado de fardados ocupando cargos civis destinados a técnicos e especialistas. Aliás, enquanto o fracasso do governo é regra, sob todos os aspectos, dobra a presença de militares em funções civis. Segundo o TCU, temos hoje 6.157 militares em cargos civis. Uma invasão.
O fato objetivo é que as forças armadas, carregadas por uma coorte de generais em comissão, estão definitivamente atreladas ao governo, com ele se confundem, e com ele subirão, condenadas, ao patíbulo da história. Bolsonaro é a caricatura dessa nova forma de governo militar. É a face aparente.
Enquanto os fardados não se dão conta do atoleiro em que se meteram e nos meteram, e não encontram a porta de saída para o desatino, a classe dominante, esta sim astuta, cuida de salvar os dedos quando vê ameaçados os anéis conquistados quase sempre sem honra. Chama as partes para o entendimento e indica a fórmula de consenso: salvar a “pauta Guedes”.
O povo, como dizia uma certa ex-ministra da Fazendo em governo de péssima memória, é só um “detalhe”. Um número nas planilhas dos tecnoburocratas.
O mantra, agora, são as “reformas” do neoliberalismo, pois elas nos salvarão, destruindo o Estado, reduzindo os gastos públicos, suspendendo investimentos, reduzindo salários, estancando o desenvolvimento.
Mantra é como a fé, não se discute, porque prescinde de razão, como o criacionismo, o terraplanismo. A crença irracional nos poderes milagrosos do liberalismo arcaico – privatismo, soberania do lucro privado sobre o interesse público – já está destruindo o pouco que nas últimas décadas conseguimos avançar na busca de um ainda longínquo Estado do bem-estar social. No seu rasto ficará a selvageria do capitalismo sem freios, a barbárie. Já ostentamos a maior concentração de renda do mundo. Que nos espera, logo mais adiante, sob uma política alérgica ao interesse social?
Em sua coluna do último domingo (“Platô no vírus e na política”, Estadão. 18/07/2020), a jornalista Eliane Cantanhêde, arguta e bem informada, nos fala na união (é como traduz o acordão ou a “ordem unida” ditada pela casa-grande) necessária “para minimizar os danos colaterais [da pandemia] e tratar as feridas: quebradeira de empresas, milhões a mais de desempregados e o aprofundamento da miséria”. Registra que o capitão deixou de “disparar insultos diários, atiçar as hordas golpistas, avalizar a guerra da internet contra todos”. Não nos esclarece, porém, as razões de tão surpreendente mudança de uma caráter paranoico sem qualquer habilitação para o convívio com a realidade. De qualquer sorte teríamos chegado ao nosso platô, da miséria e da política. É hora, portanto, de chamar os jogadores de volta ao centro do campo, e estabelecer novas regras, porque está muito alto o número de faltas e contusões. O capitão-presidente, olhando para o banco de reservas, se dispõe conter as agressões aos poderes institucionais. Põe-se em retiro, e se cala, o que significa que deixou de dizer sandices. Cruza os braços, lava as mãos diante da crise, e deixa que os militares conversem com os políticos e o “mercado”. Segundo a articulista, o governo teria reaberto o “diálogo e as relações com os poderes”. Daí, aduzo, veio a paz que se estampa no silêncio das manchetes dos jornais que não mais se chocam com os desmandos do governo.
É a vitória da direita sobre a direita; a mudança para que nada mude.
A colunista define esse realinhamento como um “movimento” que estabelece “uma distinção entre a direita moderna, culta e pragmática [sic] e essa direita instalada no poder, atrasada, ignorante, com um discurso ideológico incompreensível”. Essa segunda direita, evidentemente, é o bolsonarismo.
Continua a jornalista, como que resumindo os termos do acordão: “A direita entendeu e obrigou Bolsonaro a começar a entender”.
É o concerto clássico da classe dominante. A entente da direita com a direita, contra o país. No plenário da casa-grande não há espaço para as forças populares.
A direita simplesmente se deu conta de que ela própria estava ameaçando seu reino e corrige o engano. Daí o tranco. O preço da paz vem a galope e será pago pela nossa tragédia: não se fala mais em frentes, amplas ou não, contra Bolsonaro, pelo menos enquanto a focinheira funcionar; as hordas serão aquietadas, os generais falarão menos, um ou outro ministro ainda pode ser ejetado, tudo, e o mais que não se conta, aplainando os caminhos das “reformas” que serão tocadas cartorialmente pelo Congresso sob o reino ético do “centrão” e das bancadas da bíblia e da bala, todos aliás, bem alimentados pelas verbas da União distribuídas a mãos cheias pelo capitão.
O “mercado” é que interessa, o resto não interessa.
Muda-se de direita para que o governo continue de direita. Muda-se para que nada mude, muda-se a aparência de um governo tresloucado por um governo aparentemente bem comportado, mas sua natureza reacionária, antinacional e anti povo, genocida como afirma um ministro do STF, persiste. Para preservá-la, aliás, é que a casa-grande interveio. Para salvar-se, teve de pôr Bolsonaro sob sua guarda.
Depois do freio de arrumação, vamos ao que interessa, e quando este artigo estiver sendo lido o congresso começará a discutir a reforma tributária, que ninguém conhece, prometida pelo ministro da Economia. Será mais um pacote que se empurrará goela a baixo. O projeto, qualquer que seja a proposta, passará, como passou o marco do saneamento, como passará tudo o que for de interesse da nova ordem. Estamos apenas no começo das “reformas”.
Se assim é na periferia, na metrópole organiza-se uma Internacional Socialista “moderna”, isto é, livre das propostas socialistas e das críticas do socialismo ao capitalismo. Em nenhuma hipótese se tocará em “luta de classes”. E ao invés de defender o socialismo, a nova Internacional proporá o “pós-capitalismo”. Que é isso, ainda não foi dito. Surge, assim, uma esquerda bem comportada, com todos os atributos para ser bem aceita pela casa-grande, seus intelectuais orgânicos e seus jornais.
ROBERTO AMARAL – Escritor, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
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