Por João Batista Damasceno –
A história da sociedade brasileira é a história da divisão social em estamentos similares às castas indianas.
Celso Viáfora compôs a música ‘A cara do Brasil’ retratando um país dividido. Não é atual a polarização e a tensão decorrentes dos conflitos das classes cujos interesses se contrapõem. No presente momento ouvem-se os alaridos dos excluídos, clamando por direitos. A voz do povo tira o sono da classe dominante. Mas “cala a boca já morreu!” e se não há pão para o povo que não haja sono para os poderosos que promovem as injustiças.
A história da sociedade brasileira é a história da divisão social em estamentos similares às castas indianas. Tivemos as casas grandes e as senzalas; os mausoléus e as covas rasas; as camisas de linho e os descamisados; os sapatos de cromo alemão e os pés descalços, além dos literatos com suas más letras e os analfabetos. Enfim, uma sociedade excludente. Não é de agora a polarização. Hoje temos o despertar da cidadania e o clamor por igualdade, alimentação, Justiça, Educação, Saúde e tudo mais que pertence a quem trabalha, pois, resultado de seu esforço.
Em nossa formação social desumanizadora, primeiramente se tentou escravizar os nativos e depois pessoas foram trazidas da África e tratadas como objetos. À escravidão sucederam outras formas de exploração. O bisavô de um mito do futebol brasileiro, Garrincha, foi apanhado numa dessas armadilhas. Garrincha era descendente do povo Fulniô, que até hoje habita a região de Águas Belas, situada entre Bom Conselho e Garanhuns, em Pernambuco, e Quebrangulo, onde nasceu o escritor Graciliano Ramos, e Palmeira dos Índios, em Alagoas.
Garrincha tinha a cara e jeito do povo brasileiro. Sua vida igualmente expressa o que fazem com o povo, usado como se usa lenha, e depois descartado como se joga fora a cinza que entope a fornalha. Os cuidados que recebeu ao final da vida foi da companheira Elza Soares, a mais exuberante voz negra da música brasileira.
Neste momento em que a sociedade brasileira se polariza é preciso lembrar que todos têm as suas razões.
Um ponto de vista é a vista a partir de um ponto. Um número pintado no chão pode ser 6 ou 9, dependendo do lado em que se coloca o observador. Para entender o interlocutor, precisamos indagar de onde ele olha o mundo, quais são seus interesses concretos e o que é para ele o Brasil, tal como fez o compositor.
“O Brasil é o homem que tem sede ou quem vive da seca do sertão? Ou será que o Brasil dos dois é o mesmo: o que vai é o que vem na contramão? O Brasil é um caboclo sem dinheiro procurando um doutor nalgum lugar ou será o professor Darcy Ribeiro que fugiu do hospital pra se tratar? O Brasil é o que tem talher de prata ou aquele que só come com a mão? Ou será que o Brasil é o que não come: o Brasil gordo da contradição? O Brasil é o que bate tambor de lata ou o que bate carteira na estação? O Brasil é o lixo que consome ou tem nele o maná da criação? Brasil Mauro Silva, Dunga e Zinho, que é o Brasil zero a zero e campeão, ou o Brasil que parou pelo caminho: Zico, Sócrates, Júnior e Falcão? O Brasil é uma foto do Betinho ou um vídeo da Favela Naval? São os Trens da Alegria de Brasília ou os trens de subúrbio da Central? É o Brasil-globo de Roberto Marinho ou o Brasil-bairro: Carlinhos-Candeal? É quem vê, do Vidigal, o mar e as ilhas ou quem das ilhas vê o Vidigal? É o Brasil encharcado, palafita: seco açude sangrado, chapadão? Ou será que é uma Avenida Paulista?” O que é o Brasil e para quem?
Os colonizadores europeus saíram pelo mundo roubando, mutilando, matando e saqueando as riquezas que encontravam. Tudo era objeto de apropriação: especiarias da Índia, pau-brasil, metais e pedras preciosas da África e do continente americano, além das mulheres nativas tratadas como objeto passível de apossamento. E tudo era feito a pretexto de difundir civilização para os povos dos novos territórios encontrados. Sem a presença dos colonizadores e da dita civilização trazida por eles, o povo Fulniô, que vivia nos arredores de Garanhuns, não teria sido disperso, nem migrado em busca da sobrevivência, como fez o pai de Garrincha.
A música de Celso Viáfora conclui que “a gente é torto igual Garrincha e Aleijadinho; ninguém precisa consertar”. Tal como eles, temos as virtudes e valores que espantam os que usam talher de prata. O professor Darcy Ribeiro dizia que a crise da Educação no Brasil era um projeto da classe dominante. Sem Educação o povo não olhará no espelho para se reconhecer, nem verá os seus iguais com os quais pode se unir e transformar a realidade.
Mas isto está mudando. O povo brasileiro, depois da promulgação da Constituição Cidadã de 1988, sepultante do regime empresarial-militar que torturou, matou, roubou e impediu – por meio da censura ou sigilos decretados – o conhecimento sobre o que faziam, assumiu o papel de titular do seu destino e tal como Garrincha, haverá sempre de driblar os que lhe querem retirar a qualidade de pessoa humana, titular de múltiplos direitos: os direitos humanos em toda sua extensão.
JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Colunista do Jornal O Dia; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Jornalista com registro profissional no MTPS n.º 0037453/RJ, Sócio honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros/IAB, Conselheiro efetivo da ABI. Texto publicado inicialmente em O Dia.
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