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A cadeira de Cícero – por Wander Lourenço
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A cadeira de Cícero – por Wander Lourenço

Por Wander Lourenço

O poeta, filósofo, advogado e político Marco Túlio Cícero (107 a.C. – 43 a.C.) já nos dizia que não há nada tão absurdo que o hábito não torne aceitável; e, quiçá, por efeito midiático, nós nos acostumamos a presenciar nos últimos tempos a eleição de não ficcionistas, com exceção dos escritores Antônio Torres, Ignácio de Loyola Brandão e Godofredo de Oliveira Neto, no ingresso de acadêmicos recém-empossados, na Academia Brasileira de Letras (ABL).

Academia Brasileira de Letras (ABL)

Neste contexto – mas não necessariamente nesta ordem de ingresso, porque, assim como o memorialista Brás Cubas, de cronologias não hei de cuidar eu, simples cronista – os últimos eleitos tais como: Rosisca Darcy (Sociologia), Celso Lafer (Advocacia), Merval Pereira (Jornalismo), Jorge Caldeira, Edmar Bacha e Eduardo Giannetti (História / Economia), Cacá Dieguez (Cinema), Fernanda Montenegro (Dramaturgia), Gilberto Gil (Música), Paulo Niemeyer Filho (Medicina), Ruy Castro (Biografia), Ailton Krenak (Filosofia), Ricardo Cavaliere (Gramática), Heloísa (Buarque de Hollanda) Teixeira (Crítica Literária) e Lilia Schwarcz (Antropologia), foram contemplados com a dádiva da imortalidade, ainda que, decerto, o tenham deixado o fundador desta centenária instituição, o mestre Machado de Assis, com uma pulga atrás da orelha em seu mausoléu de posteridade, com esta espécie de repugnância aos ficcionistas contemporâneos de berço e ofício.

Antonio Cicero Correia Lima foi um compositor, poeta, crítico literário, filósofo e escritor brasileiro. Em 10 de agosto de 2017 foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras, tomando posse em 16 de março de 2018. (Wikipédia)

Em diálogo com o falecimento do bardo filosófico e letrista Antônio Cícero; e, consequentemente, com a abertura de uma vaga no Monte Olimpo da Rua Presidente Wilson, creio que, também como disse o seu homônimo clássico, sobre o fato de que nenhum homem instruído em sã consciência afirmaria que a mudança de opinião se caracteriza com uma inconsistência, a Casa de Machado de Assis deveria rever os seus conceitos de avaliação democrática, pois que está com a faca e o queijo às mãos, para providenciar a reparação histórica deste lapso ficcional, com os prosadores de ficção pátrios, elegendo-se, com a máxima urgência, o maior escritor brasileiro vivo – porém, não imortal –, o magnífico Milton Hatoum, para ocupação da Cadeira 27 em aberto, com a ausência de Cícero, o carioca.

Na ordem: Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles e Lêdo Ivo, na primeira fileira da esquerda para direita, secundados por Eduardo Portela e Rachel de Queiroz. (Crédito: ABL/Arquivo)

Neste pleito, até poder-se-ia chamar atenção para a relevância de ser o criador de Relatos de um certo Oriente e Cinzas do Norte o mais inspirado herdeiro literário do autor de Dom Casmurro e Isaú e Jacó, sendo o aclamado romance Dois irmãos responsável por capturar o espírito da introspecção machadiana, com a maestria (e genialidade rara à Dostoievski, Stendhal e Tolstói), que há de suplantar a mera missão do discípulo. Por esta linha de raciocínio, dever-se-ia sugerir os nomes dos romancistas Raduan Nassar e Deonísio da Silva, sobretudo por Lavoura arcaica e Avante, soldados: Para trás, respectivamente, como suplentes habilitados pelo labor ficcional que exercem há décadas e décadas.

Jornalista Merval Pereira toma posse como presidente da ABL. (Crédito: Agência Brasil)

Não obstante, caso a Academia Brasileira de Letras opte por prosseguir com o critério de escolha, que se pauta pelo reconhecimento do lavor artístico para além das páginas ficcionais, por justiça e meritocracia, a cadeira de Cícero houvera de ser mui bem ocupada (e representada!) pelo musicólogo Ricardo Cravo Albin, com o seu ilibado percurso intelectual por seis décadas ininterruptas de produção e pela criação do mais importante documento iconográfico do mundo ocidental, o Dicionário Cravo Albin de Música Popular Brasileira.

Em 2019, por sua trajetória em defesa da cultura brasileira e boas práticas jornalísticas, Ricardo Cravo Albin foi um dos homenageados na 3ª edição do Prêmio em Defesa do Movimento Sindical, Liberdade de Imprensa e Terceiro Setor – parceria do jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ. Na ocasião recebeu certificado e troféu das mãos do Editor-chefe, Daniel Mazola. (Iluska Lopes/Tribuna da Imprensa Livre)

Entretanto, infelizmente, como os ventos políticos da ABL sopram contrariamente à sua candidatura e as forças ocultas da imortalidade o impedem de ser laureado, em razão da insensibilidade atávica dos membros da Casa de Machado de Assis, o incansável e indestrutível Cravo Albin já não demonstra o mesmo ânimo de outrora, para se candidatar ao processo acadêmico, em virtude das inúmeras decepções com os seus pares nas trincheiras da resistência – vide a concepção do projeto Depoimentos para Posteridade e dos Conselhos de Cultura, em pleno período da ditadura militar pós-64 –, que lhe renegam o direito adquirido por sangrentas batalhas de fazer parte da mais importante instituição social do país, a ABL.

ABL/Divulgação

A meu ver, perde mais a Academia Brasileira de Letras do que o Homem dos múltiplos afazeres em sua luta pela sobrevivência da Memória desta nação, no sentido e acepção, filosoficamente, quixotescos do vocábulo Brasil. Por fim, como iniciei estas mal traçadas linhas, com Cícero, o antigo, peço permissão aos Leitores para também com o seu homônimo contemporâneo encerrá-las, visto que, em sua mais fascinante canção, intitulada “Fulgás”, em parceria com a mana Marina Lima, legou-nos a seguinte reflexão de cunho profético, imaginariamente acompanhado ao som do Cravo de Ricardo Albin, personificando-se através de Nereidas da ABL:

E tudo de lindo que eu faço
É, vem com você, vem feliz
Você me abre seus braços
E a gente faz um país.

WANDER LOURENÇO é professor, cineasta, poeta, letrista e escritor. PhD em Literatura Comparada pela Universidade Clássica de Lisboa; pela PUC-GO; e pela UFMG. Doutor, mestre e especialista em Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense. Produtor e diretor do documentários “Carlos Nejar, o Dom Quixote dos Pampas (2015); “Nélida Piñon, a Dama de Pétalas” (2017); e o “Cravo e a lapela: biografia de Ricardo Cravo Albin” (2021). Livros recentes: Escrevinhaturas – Poesia / Editora Elefante-SP (2022); e A República do Cruzeiro do Sul – Romance histórico / Editora Almedina (2023).

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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