Por José Carlos de Assis –
Comentei anteriormente relatório do Banco Mundial que traz “recomendações” ao governo brasileiro sobre a anunciada reforma administrativa. É um crime encomendado. Está na cara que responde a um pedido do governo brasileiro para justificar o enxugamento da administração na linha ideológica do Estado mínimo proposto por Paulo Guedes e prepostos. Não faz análises qualitativas. Tudo se resume a números presumidos. Não há sugestão quanto à melhoria real do serviço público. Resume tudo a quantidades sem fundamentação.
Tratei das linhas gerais do relatório. Gostaria de tratar de aspectos qualitativos que ele esconde. Comparações de salários e de número de trabalhadores entre setor público e setor privado são falaciosas. O funcionário é um servidor público que trata de assuntos públicos a partir de uma especialização profissional específica. Como mediador entre o Estado e a sociedade não pode discriminar o cidadão, e não pode fazer de seu cargo um instrumento para ganhar dinheiro. Sua progressão na carreira deve seguir protocolos impessoais.
O trabalhador no setor privado não enfrenta nenhuma restrição a ganhar dinheiro, exceto os limites de sua capacidade. O servidor não pode administrar negócios próprios e deve contentar-se com o salário e aumentos programados desde o início do concurso. É claro que, num país com 13 milhões de desempregados, quem passa num concurso público acaba sendo um privilegiado. Entretanto, a carreira está aberta a todo mundo. Tem acesso a ela quem tem as qualificações devidas, apuradas num processo concorrencial.
O importante é que o concurso público define competências e separa o servidor público, num sistema hierarquizado, do trabalhador no mercado privado. Ele passa a ter salário e estabilidade. Mas é justamente isso que lhe garante a condição de prestador de um serviço impessoal num regime democrático. Do contrário, por motivos partidários, poderia ser pressionado a tomar decisões a favor dos mandantes políticos, correndo inclusive o risco de demissão caso não obedeça. Se houve isso no Brasil recente, não pode haver de novo.
O serviço público impessoal e hierarquizado é uma característica de todos os países politicamente civilizados. É uma implicação da democracia. Max Weber, o pai da sociologia, observa que a alternativa a ela é o poder “carismático” ou ditatorial, inaceitável num regime democrático. Os Estados Unidos conheceram essa situação no século XIX, com as práticas do “spoils system”, ou “sistema de butim”, pelo qual o partido vitorioso demitia todos os funcionários do governo anterior e preenchia os cargos com os seus próprios filiados.
O sistema de butim começou a ser desmontado em 1881, quando um trabalhador frustrado com um pedido de emprego matou o presidente James Garfield numa estação ferroviária de Washington. Esse fato chocante foi o ponto inicial de uma reforma administrativa promovida pelo Congresso norte-americano. O que podemos perguntar agora é sobre a natureza da reforma administrativa pretendida por Guedes/Bolsonaro, com apoio do Banco Mundial. Será para melhorar o serviço público brasileiro, ou será para instituir no Brasil do século XXI o sistema de butim dos Estados Unidos do século XIX?
Entendo que o setor público brasileiro precisa de uma reforma. Acho, porém, que deveria focar o Judiciário em defesa dos interesses dos cidadãos. A experiência da Lava Jato nos tem mostrado que as prerrogativas do Ministério Público e do Judiciário chegaram a limites insuportáveis, pondo em risco a própria economia. Essas carreiras “intocáveis”, as mais bem remuneradas da República, repelem qualquer tipo de controle. Daí a repulsa ao próprio controle interno estabelecido na Lei contra o abuso de autoridade, contra a qual se insurgem como se fossem sindicalistas rebeldes e não autoridades sujeitas ao poder do Congresso.
JOSÉ CARLOS DE ASSIS é jornalista, economista, escritor e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 20 livros sobre economia política. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964. Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro. Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica.
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