Por Kakay –
“Eu creio em noites.”
Rainer Maria Rilke
O Direito é, por essência, chato e pedante. É verdade que tem que ser contido, nos limites da legalidade, para não florescerem, ainda mais, o arbítrio e os abusos. As discussões andam sempre no fio da navalha, especialmente quando as razões de fundo mexem com a justiça, com a complexidade da vida, com a crueza do mundo e com o direito posto.
Recentemente, o ministro Flávio Dino proferiu uma decisão que abalou uma série de verdades escondidas, embora incontestes. Ao decidir sobre a gravíssima questão do desaparecimento de uma pessoa, ele asseverou – como é bom ver um ministro que está no plano humano, embora duro no processo penal – que a dor era imprescritível. Essa é muito mais do que uma afirmação corajosa e humanista, é uma determinação jurídica com graves repercussões no mundo do Direito. E na vida real.
Remeto-me ao voto, excelente e culto, do ministro da Corte Interamericana de Direitos Humanos Rodrigo Mudrovitsch. Ele foi além, ao debater sobre o conceito, e até sobre a necessidade, de se capitular o crime de desaparecimento. A discussão, necessária e oportuna, tem que ser feita.
Existe uma tendência para se considerar o crime de ocultação de cadáver um crime permanente. Sem entrar em discussão jurídica, o que ocorreria, na prática, é a não investigação dos mortos sob a Ditadura. A prescrição desceria como um véu a selar o esquecimento de todas as dores. O Brasil, covardemente, optou por anistiar os crimes bárbaros daquele período. Vivemos em um país de sociedade pusilânime, na qual a barbárie foi perdoada.
Hoje, li na imprensa internacional que as Avós da Praça de Maio, na Argentina, uma organização de direitos humanos, encontraram o 138º neto que havia sido levado na Ditadura militar. Ele é filho de um casal de militantes políticos sequestrados em 1976 e que estão ainda desaparecidos. O neto identificado nasceu em dezembro de 1976, provavelmente na ESMA, um dos maiores centros de tortura e extermínio por onde passaram mais de 5 mil prisioneiros políticos argentinos. A mãe estava grávida de oito meses e meio quando foi presa. As Avós da Praça de Maio seguem buscando por cerca de 300 netos nascidos durante o cativeiro de suas mães.
Eu sempre fui contrário à ideia de que o Direito Penal deve ser a resposta aos desafios da sociedade. Isso é falso e perigoso. Assim como sou um crítico da discussão sobre novos tipos penais logo após grandes escândalos. Em regra, essa é uma falsa solução. Agora, estamos diante de um drama: devemos criminalizar o desaparecimento?
Penso que as razões técnicas do voto do ministro Mudrovitsch impressionam. Mas, principalmente, o que me emociona é o silêncio dos que não tem voz. O vazio dos que não sabem onde estão os filhos. A dor indescritível dos que não sabem onde estão os que amam.
Essa burguesia assassina tem que prestar contas. Onde, afinal, estão vocês? E o pior é o silêncio cúmplice do Estado. A resposta, talvez, responda à pergunta: ainda estou aqui?
“O rio Paranahyba, um rio triste, ensinou-me que o tempo não existe.”
Leão de Formosa, no poema Ternuras do Paranahyba
ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 67 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e já defendeu 4 ex-presidentes da República, 80 governadores, dezenas de congressistas e ministros de Estado. Além de grandes empreiteiras e banqueiros.
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