Por João Batista Damasceno –
O Brasil tem suas esquisitices. Não é à toa que não temos sequer um Nobel.
Tal como os iconoclastas que destroem imagens religiosas e se opõem às suas venerações, sempre que nos surge um talento arranjamos jeito de lhe colocar defeitos. E não faltam os advogados do diabo. O Advogado do Diabo era uma instituição da Igreja Católica. Era aquele que argumentava contra a canonização dos candidatos, tentando descobrir quaisquer falhas em seu desfavor. Instituído em 1587 pelo Papa Sisto V, foi abolido pelo Papa João Paulo II em 1983, mas nem por isso deixa de existir. Se dependesse dos Advogados do Diabo, nem São Pedro seria santo. Afinal, foi pego na mentira.
Hoje completam vinte e dois anos da morte do arquiteto, urbanista e design Sérgio Bernardes. Dentre suas muitas obras está o Pavilhão de São Cristóvão. Depois de um incêndio que lhe destruiu o teto côncavo, abriga a Feira de Tradições Nordestinas. Sérgio Bernardes marcou o modernismo. É um dos principais nomes, mas permanece à sombra de Oscar Niemeyer e Lucio Costa, igualmente monstros sagrados da arte. O Rio de Janeiro é muito ingrato com artistas que lhe quiserem melhorar a qualidade de vida. Devemos a Lota Macedo Soares a beleza do Aterro do Flamengo, mas pouco se fala dela. O arquiteto Burle Marx, juntamente com ela, semeou o gigantesco jardim à beira-mar plantado de modo a que sempre esteja florido. Quando uma espécie encerra seu ciclo floral outra já entra em cena. Há uma comunidade de coletores de sementes, que se conheceu ao longo dos anos.
Ultimamente, as maritacas têm acordado mais cedo ou comido as sementes antes que amadureçam, frustrando os coletores. Burle Marx deixou seu sítio para o Estado, aberto à visitação, e seu nome nele se perpetua. Affonso Eduardo Reidy é outro dos arquitetos de quem os cariocas pouco falam. Sua mais vistosa obra é o Museu de Arte Moderna no centro do Rio. Mas há outras esplendorosas.
Eu conheci Sergio Bernardes quando ainda era estudante. Nas eleições de 1982 o regime empresarial-militar inventou o voto vinculado. O eleitor tinha que votar em candidatos de apenas um partido. Eram seis votos: vereador, prefeito, deputado estadual, deputado federal, senador e governador. Um único voto em partido diferente o anulava. Foi uma forma que a ditadura arranjou para manter os currais eleitorais, garantir a fidelidade partidária nos grotões e inviabilizar os partidos de oposição que surgiam e não tinham como arranjar tantos candidatos quantos necessários para formar as nominatas. No Rio de Janeiro o povo queria Brizola governador depois de 15 anos de exílio, nacionalista e mais expressivo nome da oposição aos militares. Daí é que os eleitores começavam a preencher a cédula, de papel, pelo número do candidato a governador, que era 2, e depois preenchia o restante da cédula, sem sequer saber quem eram os candidatos, desde tivesse o número 2. Foi uma festa!
Teve gente que apenas emprestou o nome para compor a nominata do partido, mas acabou eleita.
Em Nova Iguaçu Brizola deu um banho de urna nos adversários e graças a ele o partido igualmente elegeu o prefeito. Embora se tratasse de arquiteto internacionalmente renomado, Sérgio Bernardes deixou o confortável escritório na Avenida Sernambetiba e assumiu o cargo de Secretário de Planejamento e Coordenador-geral da Prefeitura de Nova Iguaçu e começou a apresentar seus projetos para a construção de uma cidade economicamente viável e agradável aos seus habitantes. Mas acostumados, como somos, a improvisos, temporalidades e jeitinhos seus projetos foram incompreendidos. Nas vezes que o ouvi expressou-se de forma prática, simplificando o que parecia ser complexo, mas sem pretensão de convencer o interlocutor.
Um dos seus projetos foi construir um porto interno na Baixada Fluminense. Ele propôs que não se construísse o porto de Itaguaí ou o que viria a ser o Arco Rodoviário Metropolitano no Rio de Janeiro. Ele propunha que se interligasse, por um canal, o Rio Iguaçu, que deságua na Baía de Guanabara em Duque de Caxias, ao Rio Guandu, que deságua na Baía de Sepetiba. Dizia que os portos do Rio de Janeiro e Itaguaí ficariam interligados e o canal serviria como porto interno, protegido, ao longo do qual poderiam se estabelecer indústrias e outras atividades empresariais. Durante o tempo em que falava a plateia se remexia como se aquilo fosse um projeto inexequível. Ao fim de sua palestra, ainda menino, me aproximei e perguntei a ele sobre a viabilidade de se construir um canal com tal dimensão. Ele não me falou dos canais de Suez, Corinto ou Panamá. Apenas me perguntou: “Você conhece o porto de Hamburgo?” Eu disse que não.
Jamais tinha saído do país. Ele emendou: “Depois de conhecer me fale”. Na primeira vez que fui à Alemanha minha maior curiosidade era conhecer tal porto, para espanto de todos que diziam haver coisas melhores para ver.
Hamburgo e seu porto estão a 110 km do mar, é o 3º maior da Europa e 15º do mundo. O projeto de Sérgio Bernardes até que era singelo. Ele era muito maior.
O Brasil está perdendo a possibilidade de ser grande porque seus filhos e suas instituições estão se apequenando.
JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Colunista do Jornal O Dia; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Jornalista com registro profissional no MTPS n.º 0037453/RJ, Sócio honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros/IAB, Conselheiro efetivo da ABI.
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