Por Lincoln Penna

No dia 15 de novembro, há 134 anos foi instituído o regime republicano no Brasil.

Ao refletirmos sobre a sua trajetória cabem algumas indagações quando estamos a registrar mais um ano de existência centenária. A começar pela própria conceituação, a da res publica, ou seja, a coisa pública, que deveria distingui-la de outros regimes, principalmente das monarquias em face das quais as repúblicas se opuseram historicamente.

Esse início de indagações é pertinente por várias razões, dentre as quais a não observância de sua razão de ser, qual seja a de fazer valer a vontade de seus cidadãos sem discriminações, de maneira a nos convidar à questionar o seu funcionamento dado o descompasso entre o seu fundamento etimológico e doutrinário e a sua prática. Nesse sentido, há de se constatar o descolamento dessas experiências republicanas, particularmente a brasileira, da democracia e da austeridade, princípios caros derivados do sentido republicano original.

Na passagem de mais um ano de República no Brasil é preciso que lembremos tratar-se de um fato histórico, sem dúvida, que nos remete necessariamente àquela situação em que o país vivia. Cerca de um ano e alguns meses antes havia sido abolida formalmente a escravidão sem indenização, fato este que levou aos fazendeiros e escravocratas a se tornarem os “republicanos do dia 14 de maio”, como dissera Rui Barbosa ironicamente. Logo, em represália à decisão de não serem compensados pela perda de seus plantéis de escravos esses senhores de terra aderiram à República.

Ruy Barbosa de Oliveira foi um polímata, tendo se destacado principalmente como jurista, advogado, político, diplomata, escritor, filólogo, jornalista, tradutor e orador. (Arquivo Nacional)

Na realidade, para eles tratava-se tão somente de uma nova vestimenta institucional sabedores de que não perderiam os seus privilégios e a influência que sempre exerceram e tenderiam a exercer agora sob o manto de uma nova nomenclatura uma vez que de resto nada implicaria em mudanças substanciais. E nessa aposta estavam certos, haja vista o imenso legado que herdamos de regressões continuadas ao lado de uma modernização conservadora, por isso mesmo.

Em meio aos propagandistas havia os segmentos verdadeiramente republicanos de raiz, aqueles que pretendiam mirar no que ocorrera nos Estados Unidos e na França, neste país em especial, até porque no ano de 1889 estava a se comemorar o primeiro centenário da Revolução Francesa; e, os que ainda sob a influência francesa, mais particularmente do filósofo Augusto Comte e o seu Positivismo, de cunho cientificista, sustentavam um regime unitário e baseado no culto à ciência, estágio ao qual teria chegado irremediavelmente a humanidade, segundo o credo desse movimento político-filosófico fundado no culto ao saber.

Foi na Escola Militar que os ensinamentos do Comtismo chegaram mais efusivamente a contagiar de forma inapelável os cadetes e seus superiores, dentre os quais deve se citar o nome de Benjamin Constant Botelho de Magalhães, cuja figura terá destaque nos primeiros momentos da Proclamação do novo regime. Essa Mocidade entusiasta pela adoção do regime republicano acabaria arrastando a corporação militar, principalmente o Exército. O contencioso existente entre o Segundo Reinado e os militares dessa Força Armada derivada da Guerra do Paraguai e seus desdobramentos, bem como dos soldos defasados, agregaria mais adesão ao Movimento Republicano.

Pintura “A liberdade guiando o povo”, de Eugène Delacroix. Representa a Revolução Francesa. Segundo o professor Florestan Fernandes, “a revolução burguesa democrática envolve rupturas e opções que a burguesia brasileira não pode e nem quis fazer. Porém, a sociedade brasileira não é mais uma sociedade tradicional, e as classes subalternas emergem na história com força e organização para levar a cabo uma revolução democrática que não foi feita. A democracia ao assumir contornos populares se liga ao socialismo. (Divulgação)

Há quem diga e com razão que ao derrubarem a monarquia os militares tendo a frente o Exército e parte da Armada (Marinha) tornaram o regime recém-instalado uma responsabilidade dos militares. Daí, evoluírem as teses segundo as quais desde essa época e, portanto, desde a República que o seu mando é diretamente ou indiretamente exercido pelos comandos fardados ou pelo menos assim é considerado na caserna.

Na própria história republicana brasileira não foram poucas as participações efetivas das Forças Armadas na vida política do país. Estas se alternaram em um tipo de cesarismo progressista, a implantação da República como projeto foi um deles juntamente com a dita Revolução Liberal de 1930, e um cesarismo regressista, tal qual o Golpe de 1964, entre outras tentativas não exitosas.

Essa é uma questão que ainda suscita muito debate. Há quem sustente que os militares monitoram a República no Brasil e que essa forte interferência vai muito além de suas prerrogativas funcionais como instituição de Estado. Um reparo é preciso ser feito. E ele está no instante em que a opção republicana passou a ser também partilhada pela Casa Grande, ou seja, os mesmos senhores de terras que ao aderirem por conveniência à adoção da República passaram a manter inalterada a estrutura herdada pelo novo regime, que ao definir o sistema federativo acabaria por reforçar o já existente mandonismo local, originário e representado pelo coronelismo do conhecimento de todos os que acompanham a República.

Mas, o reparo a fazer é que nos primeiros anos da República sob a presidência militar o embate entre as forças retrógradas dos velhos e permanentes senhores de terras e os militares ciosos de darem um rumo aos princípios fundamentais do regime perduraria até os episódios de Canudos, no Arraial de Belo Monte, abrigo dessa experiência alvo das investidas das tropas governamentais. Este fato ocorrido já ao final da década de 1890 resultou na perda, pelo menos durante algum tempo, do protagonismo militar, em função da ação indiscriminada contra os sertanejos comandados pelas prédicas de Antônio Conselheiro.

Nas expedições enviadas ao interior da Bahia, os soldados foram moralmente derrotados e a vitória militar foi desastrosa para a imagem do militar republicano. Vale lembrar o último capítulo de Os Sertões de Euclides da Cunha é bem significativo de um desfecho lamentável e ao mesmo tempo melancólico para os militares.

Prisioneiros do arraial de Canudos após o confronto com o Exército retratado em “Os Sertões”; a foto fez parte da exposição “Euclides da Cunha. Os sertões — testemunho e apocalipse”, na Biblioteca Nacional. (Divulgação)

Euclides que fora militar e percorreu o cenário da Guerra de Canudos, convencidos inicialmente tratar-se de uma ameaça restauradora, portanto contra a República, deparou-se com a resistência de homens, mulheres e crianças a defenderem dignamente as suas vidas violadas diante da prepotência dos mal orientados soldados. O epíteto consagrador por ele pronunciado tem-se repetido na região, o de que o sertanejo é antes de tudo um forte.

Esses fatos datam já do governo civil de Prudente de Moraes, que ao recepcionar as últimas tropas vindas de Canudos foi alvo de um atentado perpetrado pelo anspeçada (patente militar abaixo de sargento, já extinta) Marcelino Bispo, segundo o qual teria sido influenciado pelos florianistas, adeptos do segundo presidente da República Floriano Peixoto, que já tinha enfrentado uma verdadeira guerra civil, a chamada Revolta da Armada entre os meses de setembro de 1893 e de março de 1894, e entregou a presidência ao primeiro governante eleito pelo voto de um eleitorado bastante minguado, situação que de resto ocorreu nos pleitos ao longo da Primeira República, já que as mulheres, analfabetos e os praças de pré, isto é, agrupamentos inferiores da categoria militar, que também não tinham direito ao voto.

Com o passar do tempo e a imersão no capitalismo, que a partir da metade do século XX internalizou-se no mundo rural brasileiro, o sentido da coisa pública foi pouco a pouco substituído pelo da coisa privada. Logo, a res publica deu lugar a res privata. Inversão que solapou não apenas o republicanismo como introduziu a lógica do capital a estimular a concentração de renda e a primazia da concorrência de portadores de renda disponível. Logo, devidamente centrada nos investidores de capital e sob a cobertura de uma classe dominante voltada para a ganância do lucro fácil.

Todavia, o passivo da República tem se agigantado em decorrência do desleixo em relação à extensão da cidadania, valor universal para um regime verdadeiramente republicano. A exclusão social implica em fratura exposta desse regime, em virtude de ele apresentar a desigualdade social como um dos grandes obstáculos à fundação efetiva de um regime republicano. Não obstante, tivemos nos anos em que perdurou a escravidão e as organizações tribais de nossos povos originários exemplos de repúblicas, que a despeito das seguidas repressões dos ocupantes colonialistas souberam transmitir às suas gerações o sentido da comunhão fraternal.

O golpe de 1889 foi um momento-chave no surgimento dos militares como protagonistas no cenário político brasileiro

No que diz respeito à República que temos desde 1889, o que nos resta a registrar não passa de um longo convívio com essa dívida social que as atuais gerações e por certo as próximas terão de equacionar, sob pena do desmonte da República e seu aniquilamento como um passado não resolvido entre nós. Canudos, talvez sem saber os seus protagonistas, foi uma tentativa de retomada das experiências republicanas dos mocambos e quilombos, assim como das tribos resistentes ao desmonte das várias gerações de um poder exclusivamente voltado para a exploração da terra e dos seres que nela habitavam, resistência a demonstrar que é possível erguer uma comunidade fraternal, a do bem comum.

Sendo assim, ou a República que temos se republicaniza e reencontra-se com seus postulados originais, o que implica na socialização da cidadania; ou estará irremediavelmente sepultada para sempre, pois sem justiça social e a incessante busca da fraternidade universal não será possível resgatar o seu sentido primário, o da coisa pública, de todos e todas em igualdade de condições afim de proverem a sua subsistência irmanados e manter íntegro o seu sentido de vida.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

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