Por Ricardo Cravo Albin

“O pequeno Museu Carmen Miranda, projetado ao final do Parque do Flamengo por Afonso Reidy em forma circular de 360°, estava fechado há dez anos. Detalhe: sempre foi um dos museus mais visitados do Rio” – Ricardo Cravo Albin.

Fui à aguardada reabertura do Museu do Flamengo há dias e ali colhi outra boa notícia. Funcionários da Secretária de Cultura, a estimada Danielle Barros, asseguram que outro museu fechado, o Villa Lobos, estará prestes a ser recuperado, tal como o Carmen Miranda. Este agora muito bem equacionado e repensado pela dupla de intelectuais e escritores Ruy Castro e Heloísa Seixas, que impuseram no minúsculo espaço circular um dado de essência: a elegância e a distribuição comedida de objetos.

Estive há muitas décadas na inauguração do então originalíssimo espaço do arquiteto Reidy. Ele mesmo me dissera com preocupação muito antes de ser inaugurado. “Projetei na imensidão vertical do aterro este único prédio em forma rígida de círculo. O segredo de sua ocupação é ser econômico, norma da boa arquitetura. Aqui, meu caro, o menos é mais. Quanto mais ocupado e mais entulhado, meu pequeno disco voador fica inchado e feio. Logo explodirá”.

Ao adentrar há dias o “disco” do grande arquiteto, de imediato me dei conta de como a memória de Carmen esteve presente em meus projetos de vida. Todas aquelas roupas, sapatos e joias me eram familiares, embora agora muitíssimo bem conservados, muitos deles recuperados e remontados com exemplar capricho.

Evoco aqui memórias pessoais: ao assumir o Museu da Imagem e do Som (1965), um dos primeiros telefonemas que recebi foi de D. Alzira Vargas do Amaral Peixoto, que queria visitar o novíssimo MIS porque me proporia agregar acervo precioso que estava a seus cuidados. O acervo: os baús de Carmen com seus milhares de itens coletados (quero crer em Hollywood) pelo viúvo David A. Sebastian e pela irmã Aurora Miranda, A proposta: o MIS passaria a expô-lo e conservá-lo. Dito e feito. Abrimos os baús (penso que eles mesmos estão expostos agora pelo casal Ruy e Heloísa) com grande emoção ao lado das irmãs Aurora e Cecília, ambas muitas vezes às lagrimas. Marcamos a exposição Carmen Miranda no andar superior do MIS. O sucesso foi total ao longo do ano de 1966. Meses a fio tivemos filas extensas de gente de todo o Brasil, além de muitos turistas (americanos alguns inclusive presidentes de extensos fãs clubes locais. Havia até um inglês, que se dizia “sir”, que usava sapatos plataforma e se exibia com pesada maquiagem no rosto).

Acabada a exposição no MIS, as roupas voltaram para seus muitos baús originais e o governador do Estado me comunicou que pensava em inaugurar o que se chamaria “Museu Carmen Miranda” na ainda não ocupada instalação circular de Reidy no Aterro. Tentei convencer o governador de que o MIS poderia alojá-lo no prédio de dois pavimentos ao lado esquerdo do Museu, que compartilhávamos com a Polícia Federal. O governador foi objetivo e claro: “mas ai vão pensar que a Carmen não terá seu próprio museu. Eu quero um museu autônomo só para se dizer dela”.

O Museu da Pequena Notável seria inaugurado anos depois em 1976 na edificação circular. Fechado nos últimos dez anos, pude comprovar, por pesquisas, que passou a ser um dos museus mais visitados do Rio, fato que já era do meu conhecimento a partir da abertura inicial com milhares de pessoas da Expo Carmen ao longo de quase todo o ano de 1966 no MIS.

Quando presidi o Conselho Estadual de Cultura celebramos Carmen (em parceria com o Museu do Flamengo) no velho Cinema Iris, com a exibição de todos os seus filmes de sexta a domingo. Só que em sessões contínuas (jamais experimentadas no Brasil) de 24 horas. Em plena madrugada havia gente assistindo, poucas é verdade. Muita gente saía das boates e chegava ao histórico cinema (que Carmen frequentava nos anos 20/30, segundo Aurora) e dobrava as sessões das 2h e das 4h da matina. Pelo puro prazer de conferir a magia de Carmen (só ela mesma seria capaz de exalar tal fascínio).

Por pura curiosidade, andei contabilizando os programas radiofônicos que a ela dediquei: foram quase 200 (a maioria de 60 minutos) pelas rádios MEC, Nacional e Roquette desde a expo do MIS no longínquo 1966, além de textos para TV Globo (com Vannucci) e TV E. Criamos também muitos espirais e documentários para TVs de Portugal, Espanha e Costa Oeste dos EUA. Recordo-me ainda (recordar é viver, já titularizou a velha marchinha carioca dos antigos carnavais) do Premio Carmen Miranda para as melhores interpretes do repertorio carnavalesco dos Festivais para Musicas de Carnaval do antigo MIS. A primeira ganhadora foi Marlene, logo seguida por Emilinha. Nada mal…

Na década de 30 o dramaturgo norte-americano Marc Connelly e a atriz Sonja Henje veem uma apresentação da cantora Carmen Miranda no Cassino da Urca e ela é convidada para ir trabalhar Hollywood. Ela fez um show de despedida no Cassino e viajou para os Estados Unidos em 17 de maio de 1939. Foto: Carmen e o Bando da Lua (Divulgação)

Em resumo, tudo isso para louvar a memória da mais importante artista que o Brasil já produziu. E não apenas porque foi a única a ser exportada com destaque de estrela absoluta para todo o mundo. Mas porque, enquanto viveu de 1929 a 1940 no Rio, consolidaria por aqui valores essenciais estéticos e históricos. Como bem assinalou Ruy Castro na reinauguração dias atrás, os curadores se preocuparam em exibir uma Carmen brasileira, em plena década de ouro.

Carmen continua viva. E será sempre o máximo para quem ama este país. Sem preconceitos tolos.

RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

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