Por José Carlos de Assis –
O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, deu uma excelente aula de geopolítica para os jornalistas que o entrevistaram em Lisboa, frente a frente com Lula, quando lhe perguntaram sobre as declarações do presidente brasileiro sobre a guerra na Ucrânia. Com a simplicidade de um país integrante da OTAN, ele explicou, didaticamente, que o direito internacional veda que um país viole o território de outro país, como está fazendo a Rússia em relação à Ucrânia.
Embora esteja coberto de razão, e tenha colocado como “questão de princípio” para o fim do conflito a retirada das tropas russas da parte da Ucrânia que invadiu, ele deixou questões que os jornalistas presentes deixaram em aberto. Por exemplo, por que, como “questão de princípio”, os Estados Unidos, desde que se tornaram o país hegemônico no planeta, se acharam no direito de se transformarem no país que mais guerras promoveram no mundo, violando o direito internacional?
Portugal é um pequeno país europeu que tem influência limitada no cenário geopolítico. Entretanto, num ponto, ele tem um poder significativo. Como membro da OTAN, poderia ter-se colocado, de forma explícita, como contrário às pretensões de Kiev de integrar a aliança ocidental. A Turquia “quase” fez isso. Qualquer país membro da Aliança, independentemente de seu tamanho, poderia ter feito. Por que razão foram tão loucos ao ponto de provocar os russos a desencadear a invasão da Ucrânia?
Agora, os sinais de um conflito interno no bloco nos obrigam a ver com simpatia, e com grande desconforto, a posição manifestada por um líder de extrema direita na Europa. O primeiro ministro nazista da Hungria, Viktor Orbán, “irmão” confesso de Bolsonaro, foi o único dos líderes da Aliança que se pronunciou contra a aceitação das pretensões da Kiev de entrar na organização. Nesse ponto, revelou-se um líder extremamente equilibrado!
Marcelo de Sousa, por seu lado, parece um homem sábio. Contudo, não conseguiu ir muito além das propostas de Lula em sua entrevista. Condena a guerra, mas as ideias que deu para sair dela são pouco convincentes e quase ingênuas. Ninguém pára uma guerra como “questão de princípio”, como quer ele. As guerras são paralisadas como uma questão de poder e de força. Se as forças se equiparam, a guerra se torna infinita. Ou, pior ainda, ela escala e, no contexto mundial atual, pode-se tornar uma guerra escatológica.
Justificar o reforço do poder militar de Kiev, pela OTAN, como um “direito” apoiado em normas da ONU, para defender integridade territorial da Ucrânia, é ignorar que a ONU nunca foi levada a sério nem por Washington, nem por Moscou, ao longo da Guerra Fria. Por que teria de ser levada a sério agora, quando voltamos ao contexto da Guerra Fria, por culpa exclusiva dos Estados Unidos, ao decidir levar as fronteiras da OTAN para o quintal da Rússia, ameaçando-a com guerras híbridas?
Uma vez fortalecida pelas armas da OTAN, Kiev se sentirá estimulada a prolongar a guerra até a última gota de sangue de seu povo. A Rússia é forte demais para se render. Diante disso, a busca de paz, como imperativo de estabilidade do planeta, depende de negociações. Mas a primeira condição para isso não é a retirada das tropas russas da Ucrânia, mas um acordo irretratável aceito pela OTAN segundo o qual o território ucraniano jamais será usado como base de ataque contra Moscou.
Depois disso, sim, sob os auspícios de um grupo de países confiáveis para as duas partes, estas se sentariam à mesa de negociações para formular as bases de uma paz definitiva. O lado russo teria de se comprometer a aceitar os limites reconhecidos internacionalmente da Ucrânia, mas Kiev deveria se comprometer, por sua parte, a não repetir as violações de acordos similares aos de Minsk, assinados depois da anexação da Crimeia pela Rússia, e que deviam proteger os russófilos do Leste.
Tudo isso pode ser uma ilusão, mas mil vezes uma ilusão de paz, que mova o mundo para uma situação de relações internacionais normais, do que o apelo irrealista a “princípios” que bloqueiam qualquer saída para a guerra. Quanto à entrada de Lula no tema, eu a justifico com uma metáfora de John Donne, um poeta inglês dos séculos XVI e XVII. Ela pode ser aplicada aos ucranianos que sofrem com o conflito. Ele escreveu:
“Homem algum é uma ilha isolada. Cada homem é parte de um todo… Se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse o solar de teu amigo ou o teu próprio. Por isso não perguntes por quem os sinos dobram. Os sinos dobram por ti!”.
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JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, doutor em Engenharia da Produção, autor de mais de 25 livros de Economia Política e introdutor do jornalismo econômico investigativo no Brasil com denúncias de escândalos sob o regime militar que contribuíram de forma decisiva para o desgaste da ditadura nos anos 80. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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