Por Kakay –
“E amanhã eu vou ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje.” – Clarice Lispector.
A coerência constitucional, principalmente no trato com os nossos adversários, é o que pode imprimir no país uma normalidade democrática. Os fascistas, os ultradireitistas, os idiotas úteis, os oportunistas, os dinheiristas: todos esses apostaram pesado na ruptura institucional. Depois de saquearem o erário público e de destruírem todas as conquistas humanistas dos últimos governos, investiram numa tentativa de golpe de Estado para implantar, de vez, um regime no qual não precisariam posar de democratas.
Depois de pregarem uma ridícula hipótese de golpe constitucional, com uma subleitura farsesca do artigo 142 da Constituição Federal, armarem a população civil, cooptarem boa parte do Legislativo e tentarem emparedar o Judiciário –sem êxito, nesse ponto–, resolveram tirar as máscaras e invadir, pela força, as sedes dos Três Poderes. Felizmente, a reação dos Poderes constituídos se deu à altura. Igualmente importante foi a reação do povo brasileiro, o qual os fascistas julgavam ter sob controle. Representativos 94% dos cidadãos se posicionaram contra a depredação violenta e criminosa.
E, depois de uma primeira não-reação e conivência de parte das autoridades do Distrito Federal, inclusive e principalmente, dos responsáveis pela segurança, foram vistas quase 1.500 prisões. Ato contínuo, numa demonstração inequívoca da necessidade de preservar o Estado Democrático de Direito, as operações contra os golpistas extremistas se fizeram mostrar. Das prisões em flagrante, 922 foram convertidas em preventivas. Vários golpistas foram liberados com tornozeleiras eletrônicas.
Nos dias que se seguiram, outra operação foi colocada em curso: a Lesa Pátria. E militares, financiadores e idealizadores estão sendo investigados e presos. A AGU (Advocacia-Geral da União), com competência louvável e discrição, encetou ações, além das criminais, e tem investido contra o bolso, que é o órgão mais sensível dos fascistas: milhões de reais estão bloqueados para ressarcir os cofres públicos.
As ações –sérias e técnicas– se encaminham com segurança jurídica em direção inexorável aos mandantes e idealizadores. Só voltaremos a ter normalidade democrática se esclarecermos, com punição civil e criminal, quem eram os reais beneficiários da sanha golpista. Especialmente os políticos que pretendiam continuar o saque ao país, os financiadores mais pesados, os militares de alto coturno e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e sua turma mais próxima. Sem tais ações, alimentaremos a sarjeta onde habitam esses seres escatológicos. E eles voltarão com mais força para completarem o que começaram.
Não podemos esquecer que atentaram contra o regime democrático e tentaram um golpe de Estado. As ações são tipicamente terroristas. Não podem ser enquadrados na Lei de Terrorismo, pela definição estreita do tipo penal, mas serão responsabilizados de acordo com o Código Penal, a partir da redação dada pela Lei de defesa do Estado de direito. Os crimes serão punidos com penas rigorosas. E temos a certeza de que o termo a ser usado é mesmo “terrorista”, na acepção aceita pela ONU em ações que atentam contra a democracia. Como ensinou Bertolt Brecht: “Por que temem tanto a palavra clara?”
Porém, passados 40 dias do dia da infâmia, 8 de janeiro, e consolidada a resposta pronta e democrática aos golpistas, é hora de todos os democratas refletirem a respeito dos rumos que queremos dar ao nosso país. Algumas ponderações e críticas se fazem necessárias e, entendo, pertinentes.
O acompanhamento rigoroso das 922 prisões preventivas é salutar e compete a todos os operadores do direito. Como não aceitei advogar para nenhum dos que me procuraram nesse episódio dramático de grave crise institucional, alerto que não conheço os processos, mas acompanho e tenho a obrigação de manifestar minhas inquietações.
Um princípio básico tem que ser preservado: as prisões só podem ser mantidas se absolutamente imprescindíveis. Há que se fazer uma análise periódica da necessidade da manutenção da medida extrema, até por imposição legal. E não se pode converter de ofício a prisão em flagrante em preventiva. Há notícias de conversão contra a manifestação do Ministério Público, que era favorável à liberdade provisória. O Pleno do Supremo tem o dever de analisar caso a caso. Recorrendo ao grande Octavio Paz:
“Sem liberdade a democracia é um despotismo, sem democracia a liberdade é uma quimera”.
Urge que os processos sejam, em regra, baixados à 1ª Instância. Mesmo eu, ardoroso defensor dos inquéritos abertos no Supremo, que foram e são fundamentais para manter a institucionalidade, reconheço que a Corte Suprema não tem estrutura para lidar com as novas ações. O Tribunal já é exageradamente demandado com causas que ocupam toda a pauta. Ademais, é fundamental, em nome de uma humanização do processo penal, que os presos sejam recambiados para suas cidades. Responder aos processos, que podem resultar em dezenas de anos de prisão em regime fechado, perto de suas famílias e de seus advogado.
É necessário também não sobrecarregar, ainda mais, o já falido sistema carcerário do Distrito Federal. É significativo ouvir as lamúrias dos autodenominados patriotas na frente da penitenciária: reclamam da comida –“é uma lavagem”–, da superlotação, do excesso de tempo com as celas fechadas, da falta de estrutura para suas necessidades, dos banheiros, da água fria, da falta de comunicação com o mundo exterior. Bingo! Esses fascistas que sempre nos criticavam e nos taxavam de “defensores de direitos humanos para bandidos”, agora, presos, se reconhecem como “humanos”. Esse é um importante efeito.
É hora de defender os direitos deles. Dos fascistas, que sempre negaram aos pretos e aos pobres qualquer garantia. A população tradicional do sistema perverso, que são os invisíveis sociais, nunca frequentou a preocupação dessa elite repugnante. No entanto, se nós nos igualarmos a eles e nos calarmos, eles terão ganhado. A barbárie terá se sobreposto à civilização.
Temos que aproveitar para fazer uma grande discussão sobre o sistema penitenciário e sobre a necessidade da prisão, salvo para casos excepcionais, bem como acerca da imprescindibilidade de humanizar o direito penal com um processo penal democrático. Lembrando Torquato Neto:
“É preciso que haja algum respeito, ao menos um esboço, ou a dignidade humana se afirmará a machadadas”.
ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 61 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e já defendeu 4 ex-presidentes da República, 80 governadores, dezenas de congressistas e ministros de Estado. Além de grandes empreiteiras e banqueiros.
Publicado inicialmente no Poder360. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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