Por Lincoln Penna –
Edson Arantes do Nascimento, Pelé, eu o vi pela primeira vez ao despontar no futebol brasileiro no ano de 1957, mais ou menos um ano antes da Copa do Mundo de 1958, que o projetaria como o grande craque que foi a ponto de ser considerado mais tarde o Atleta do Século XX e se tornado o rei do futebol. Na segunda vez o encontrei agora mais próximo ao ídolo que já era em um embarque aéreo, e uma terceira vez numa situação inusitada, na qual bastou a evocação de seu nome para que saísse de um sufoco.
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A primeira vez aconteceu quando o combinado Vasco – Santos enfrentou em jogo realizado no Maracanã o Belenenses de Portugal. Corria o mês de junho, ocasião em que era comum os amistosos internacionais. O resultado foi uma goleada do combinado. Pelé tinha apenas 16 anos, mas já se movimentava no gramado como um veterano, ou melhor já exibia a desenvoltura que só os artistas da bola conseguem imprimir numa partida.
Meu ídolo à época era o Dida do Flamengo, meia ponta de lança como Pelé, por sinal ambos selecionados para a Copa do Mundo na Suécia, depois das amargas derrotas em 1950 no mesmo estádio onde exibiria seu talento. Menino juraria ao pai que faria o possível para superar aquele trauma. A Copa de 1954 na Suíça adiou o sonho brasileiro, que se concretizaria em 1958 na final com os donos da casa. Pelé cumpria a sua promessa.
Naquele dia, em que pude presenciar o nascimento de um ídolo do “velho esporte bretão”, como evocava à época alguns locutores esportivos, dentre eles Luíz Mendes, o mesmo que narrou a triste vitória do Uruguai na mais dolorida derrota esportiva do futebol brasileiro, o mundo futebolístico se curvava ao novo mestre, depois de Leônidas da Silva e Domingos da Guia, ambos craques sem títulos, salvo as honrarias.
A partir daquele jogo ele ganhara o torcedor carioca e transformara o Santos Futebol Clube no segundo time de todos os adeptos que frequentam o “Maior estádio do mundo”, como era orgulhosamente denominado o Mário Filho, nome oficial do Maraca, como popularmente é conhecido. Venerado por seus dribles, arrancos em direção ao gol e as famosas “tabelinhas” com Pagão e depois Coutinho, mesmo quando vinha jogar contra os times cariocas as torcidas desses clubes não deixavam de aplaudi-lo.
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Passados muitos anos eu encontrei Pelé no aeroporto do Galeão indo para Brasília, o meu destino também. Não poderia deixar de cumprimentá-lo. Antes ao vê-lo na área de embarque reparei que Pelé não era tão alto como imaginava. Assim pensava ao vê-lo a vencer com habilidade e energia os beques grandalhões. Mais surpreso ainda quando ao me aproximei dele senti a personalidade encantadora de um homem simples que naturalmente cultivava o encanto do estrelato, porém com discrição, nem sempre comum aos notáveis midiáticos de hoje.
Sua simpatia e a modéstia possível diante dos que sempre o cercaram de carinho e homenagens fez daquela viagem uma festa contida, é claro, quando o comandante anunciou sua presença naquele trajeto sempre concorrido por celebridades, inclusive, e sobretudo, de políticos.
Não mais o vi depois desse contato aéreo, senão através de reportagens televisivas, filmes e documentários, mas acompanho o noticiário a seu respeito. Afinal, ele é realmente o nosso mito. Mais recentemente tomei conhecimento, como todos nós, de seu estado de saúde e, também como todos nós, baixou a preocupação natural, porque símbolos nacionais precisam viver milênios. E o gênio da bola o alcançou.
Dizia o antropólogo, professor e o inspirador da educação pública, o irrequieto político Darcy Ribeiro com o humor de sempre, que daqui há séculos só três brasileiros seriam lembrados: Oscar Niemeyer, Pelé e ele, Darcy. Gostava de dizer isso e mais ainda de ouvir as gargalhadas inevitáveis de quem o ouvisse a dizer.
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A propósito da presença de Pelé em minha vida tive ocasião de contar em outra oportunidade como a evocação de seu nome salvou-me de uma situação embaraçosa. Aconteceu no aeroporto de Budapest, após o meu retorno de Moscou. Era muito tarde, cerca de meia noite e o representante brasileiro da Federação Mundial da Juventude Democrática, o camarada Marcos Jaimovich, de pseudônimo Alceu, residente na capital húngara não se encontrava naquele momento de meu desembarque. Faltou comunicação e ele não sabia que meu voo chegaria àquela hora. Sem contar com sua presença e o meu desconhecimento absoluto da complicada língua magiar a situação me deixou vulnerável.
O problema da aduana não era tanto o idioma. Era o carimbo em meu passaporte naquele distante ano de 1968 em plena ditadura no Brasil, que evidentemente causaria problemas em minha chegado com tal visto em meu passaporte. Tentei negociar invocando o que se passava em meu país, em vão. De repente um dos guardas da aduana parecia ter se referido ao Brasil e mencionou o nome de Pelé. Foi o que me permitiu indagar se conheciam o nosso craque. Sorriram como quem ironiza alguém ingênuo como se dissesse, como não conhecer Pelé?
Em troca de gentilezas mencionei o nome do grande craque da seleção da Hungria, Albert, e eles se mostraram tão encantados ao saber que o conhecia de nome, que imediatamente deixaram de mão o carimbo e pude passar e aguardar o meu amigo. Assim que ele chegou e soube do ocorrido disse às gargalhadas: quem diria que Pelé seria o seu passaporte de ingresso numa capital socialista!
Depois fomos conhecer a bela cidade que um dia Niemeyer disse ser uma das três mais exuberantes do mundo, juntamente com Istambul e Rio de janeiro, para o orgulho de quem nela vive, apesar dos percalços de nosso cotidiano a maltratar seus habitantes. E nesse tour pela cidade lembrávamos do rei que buscava alcançar o seu recorde de gols, que todos previam acontecer antes da Copa de 1970, quando sua estrela brilhou no México, palco do tricampeonato mundial.
E, finalmente, ao marcar o seu milésimo gol de pênalti no mesmo Maracanã Pelé fez uma declaração dada logo após o jogo. Disse que dedicava aquele momento às crianças. Para muitos foi considerada uma fala apenas movida pela emoção, quando na verdade era o reconhecimento de que infelizmente nem todos podiam usufruir de instantes como aquele.
Naquele instante se juntava a pobreza dominantemente de cor negra, e o racismo acovardado diante de sua majestade altaneira. Sua fala às crianças após atingir de pênalti a marca fantástica de gols não foi à toa. Marcou a emoção retroativa, capaz de inspirar as novas gerações de sua aldeia, que ainda por pouco tempo se transformaria numa aldeia global a instigar a ousadia dos humildes em face de tantas dificuldades na vida. É este Pelé que simboliza a sabedoria de nosso povo, bem mais eloquente do que a dos representantes de nossas classes dominantes.
Agora torço para que Pelé supere mais um obstáculo, o de sua enfermidade. Afinal, já experimentamos tantas derrotas que seria duro ter de enfrentar mais perdas.
Ele imortalizou-se como o mais exuberante símbolo de um povo que carrega o fardo de mais de três séculos de escravidão, e mesmo assim consegue com todas essas sequelas recorrentes ainda não removidas lograr produzir uma das raras e brilhantes representações da arte de fazer e ousar, não importa os transtornos que enfrenta em seu cotidiano.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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