Por Paulo Calmon Nogueira da Gama –
“Torcer pela cobra”, no caso de uma cobra ter sido utilizada como instrumento de tortura sobre a qual se comenta publicamente é, sim, apologizar essa mesma espécie de crime.
Uma jovem idealista foi torturada pelo regime militar. Grávida, sofreu graves ameaças e privações físicas, chegando a ser presa numa sala escura com uma jiboia de dois metros.
O tempo fez aquela jovem mudar, alterar sua personalidade, trocar suas bandeiras. Agora madura, ela viu que a cobra que a ameaçara um dia também mudou. Mas a cobra mudou só de pele: despiu aquela padronagem camuflada típica do exército e a trocou pelo degradê chique neoliberal, que encantou até algumas de suas vítimas, como aquela jovem. Essa serpente, a mesma de sempre, depois de ter ficado alguns anos “jiboiando”, enfim, deu cria. De seu ovo eclodiu uma víbora crua, instintiva, que num fascismo primitivo destruiu alguns dos que ajudaram seu próprio choco. Uma criatura pior, muito pior, que seus criadores.
O tempo fez a jovem mudar muito, mas o serpentário mudou pouco. E uma coisa nada mudou: o passado. A jovem fora, ali e para sempre, vítima de um crime cruel; e a jiboia, um de seus instrumentos.
O fato de haver ou não punição àquela tortura a que submetida a jovem não altera a concretude de um fato típico e antijurídico. Não importa se houve ou não prescrição, se houve ou não identificação específica de todos autores imputáveis, se houve ou não interesse do Estado fazer cumprir a lei penal. Aquele evento fático, tal como concretamente narrado, era e continua sendo um ilícito penal: crime de tortura.
Não se trata de uma abstração ou de uma ilustração acadêmica. No dia 3/12/72, e semanas subsequentes, uma jovem de 19 anos, grávida, foi presa sem ordem judicial, torturada de várias formas, inclusive atemorizada por uma cobra, deliberadamente deixada pelos torturadores na mesma sala escura. Esse relato é o retrato de um crime. Um crime bárbaro, hediondo e covarde.
Para que se configure “apologia ao crime”, não é essencial que exista a condenação de alguém por fato criminoso específico, que tenha gerado efetiva punição de seu autor. O bem jurídico tutelado é a paz pública, o respeito ao ordenamento penal. E ele, o bem jurídico, é quem deve dirigir a atividade interpretativa.
Basta que, em meio público, redes sociais; por exemplo, elogie-se, enalteça-se, certo evento de característica criminosa contido num relato concreto, algo já ocorrido, não necessariamente o crime, mas o relato do crime acerca do qual alguém se manifesta apologeticamente. Para tanto é suficiente que o “modus operandi”, os instrumentos ou qualquer dado ou elemento que remetam ao crime narrado sejam defendidos. O reconhecimento da ocorrência do evento criminoso em que se apoia eventual apologia criminosa pode até se dar em outras esferas, reparação civil, estatal, política, moral; religiosa, literária, por mera plausibilidade, verossimilhança.
E até mesmo com suporte em ficção pode-se cogitar o crime do art. 287 do Código Penal: teoricamente enquadrável aquele que mostre publicamente idolatria e admiração a atos criminosos, ficcionais, porém, factíveis, por exemplo, de famigerado “serial killer” extraído de algum romance ou telenovela e passe a divulgá-los, minuciá-los, elogiá-los, ensinar como reproduzi-los no mundo real, enfim, estimular algum “efeito copycat”.
Em resumo: para que se tenha a figura típica penal do art. 287 do Código Penal Brasileiro, sob a vertente “apologia”, é bastante que se veicule publicamente alguma forma de elogio a um evento criminoso ou a alguém pelo fato de tê-lo perpetrado.
A ideia da punição à apologia ao crime é a de justamente voltar os olhos ao passado, invocado pelo evento que no presente se elogia, para prevenir sua disseminação e reiteração futura.
Por exemplo: “torcer pela cobra”, no caso de uma cobra ter sido utilizada como instrumento de tortura no evento concreto sobre o qual se comenta publicamente é, sim, apologizar essa mesma espécie de crime. Simples assim.
PS: tortura nunca mais!
Paulo Calmon Nogueira da Gama é Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, Desembargador do TJMG.
Publicado inicialmente no Migalhas. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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