Redação –
A Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (AMAERJ) repudia as mensagens de teor ofensivo dirigidas ao juiz Rubens Casara, da 43ª Vara Criminal da Comarca do Rio de Janeiro, pelo empresário Luciano Hang.
Contrariado com recente decisão do magistrado, fundamentada em preceitos absolutamente legais, o empresário usou seus canais nas redes sociais para atacá-lo.
Ao agir desta forma, Luciano Hang desrespeita o Poder Judiciário e demonstra desprezo pelo Estado Democrático de Direito. Decisões judiciais devem ser contestadas na forma normatizada pela legislação brasileira.
Segue a decisão:
Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro
Comarca da Capital
43ª Vara Criminal
DECISÃO
Trata-se de ação penal de iniciativa privada promovida por LUCIANO HANG, devidamente qualificado na petição inicial, em desfavor de FELIPE NETO RODRIGUES VIEIRA, também qualificado nos autos, na qual se atribui ao Querelado a prática de “crime de calúnia cometido por rede social” (fl.03).
Não foi possível a conciliação em razão da vontade das partes, consoante revelam as manifestações de fls. 71/80 e 89/95. De igual sorte, nenhuma solução dialogal foi aceita. Registre-se, por exemplo, que o Querelante não se manifestou sobre eventual “acordo de não-persecução penal” e o Querelado, expressamente, afirmou que não havia interesse nessa medida.
Instado a se manifestar sobre o juízo de admissibilidade da queixa, o Ministério Público afirmou a necessidade do prosseguimento do feito, isso porque, em sua opinião, a queixa-crime “é regular e contém a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias” e, de igual sorte, por não vislumbrar qualquer violação ao princípio da indivisibilidade da ação penal (fls. 102/103).
É o breve relatório. Decido.
O juízo de admissibilidade da acusação tem por finalidade exercer o controle sobre a legalidade, a legitimidade e a seriedade da acusação formulada em juízo. Visa-se, portanto, evitar processos desnecessários, inúteis, inadequados, desvirtuados, ilegais ou, ainda, que se formalize um processo criminal sem o necessário suporte em elementos sérios de convicção (prova da materialidade e indícios de autoria). No Estado Democrático de Direito, modelo que se caracteriza pela existência de limites rígidos ao exercício do poder (de qualquer poder, inclusive o de “acusar”), o juízo de admissibilidade da acusação é o momento processual voltado a evitar que a persecução penal seja utilizada como instrumento de opressão, de arbítrio, de perseguições a inimigos políticos ou mesmo de indevidas espetacularizações em prejuízo do princípio da legalidade, da dignidade da pessoa e do devido processo legal.
Assim, a leitura da peça inicial permite revelar que o Querelante afirma a ocorrência de violação ao bem jurídico “honra”, isso em razão da prática de conduta tipificada como um crime de calúnia (art. 138). Segundo o Querelante, o imputado teria afirmado “falsamente que o Querelante teria cometido o crime de falsidade ideológica (art.299, CP)”. Em princípio, portanto, o Querelante indica o fenômeno da “tipicidade aparente”. Anda segundo o Querelante, o acusado “especificamente”, teria diro “que LUCIANO HANG teria falsificado o atestado de óbito de sua mãe” (fl. 04).
Tem-se que, segundo o afirmado na queixa, o Querelado seria o autor de um crime contra a honra e, em consequência, culpado da violação a um bem jurídico protegido pelo ordenamento. Todavia, o Querelante falhou ao demonstrar a “justa causa” à propositura da ação penal. Isso porque, ao apontar o texto do Querelado que daria materialidade ao delito, o Querelante permite observar que não existem dados concretos a indicar a existência de uma “imputação falsa de fato definido como crime”. Sem que exista suporte probatório mínimo de uma “imputação de crime” impossível reconhecer tanto a configuração típica sugerida na queixa-crime quanto da seriedade da acusação formulada por Luciano Hang.
O tipo penal descrito no artigo 138 do Código Penal exige à configuração do crime de calúnia a existência de uma imputação falsa de crime. Na lição de Paulo Queiroz, por definição, “a calúnia é a imputação falsa de fato desonroso constitutivo de crime” (Curso de Direito Penal, Parte Especial. Salvador: Juspodium, 2013, p. 159). De igual sorte, como deixa clara a lição de Luiz Regis Prado, para além da atribuição de uma conduta determinada à vítima, no crime em questão, “exige-se que a imputação verse sobre fato definido como crime” (Curso de Direto Penal Brasileiro, Vol.2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 191).
Imputar é verbo bitransitivo: imputar é atribuir “algo” a “alguém”. Para a configuração do crime de calúnia é necessário que o Querelado tenha atribuído um fato criminoso (típico, ilícito e culpável) ao Querelante, ciente da falsidade do mesmo. Os elementos trazidos aos autos pelo Querelante não permitem confirmar a seriedade de hipótese descrita na queixa. Ao contrário, basta uma análise do material trazido à cognição, ainda que sumária, para se perceber que não existem dados concertos a indicar que existiu uma “imputação de crime” na conduta do Querelado.
Basta ler o texto de autoria de Felipe Neto Rodrigues Vieira para se perceber que não há a atribuição de um fato definido como crime ao empresário Luciano Hang. Vale transcrever o texto integral (composto de dois “tweets” que, segundo o Querelante, configuraria o meio à ação criminosa):
“Imagina o seguinte:
Sua mãe contrai Covid.
Vc coloca ela num hospital da Prevent. Ela recebe tratamento do kit Covid.
Ela morre.
Só q vc é tão obcecado pelo governo q vc falsifica o atestado de óbito dela…
E sai por aí dizendo q ela só morreu pq NÃO recebeu o kit Covid.” (fim do primeiro tweet);
“É exatamente isso que Luciano Hang, o Veio da Havan, está sendo acusado de ter feito.
Ele terá que comparecer na CPI na próxima quarta-feira e vai ter q se explicar.
Não parece ter mta saída…”.
Dizer que alguém está sendo “acusado” de um fato criminoso, como fez o Querelado, não equivale a dizer que alguém cometeu um fato definido como criminoso. Em matéria de tipicidade penal (ainda que “aparente” e em cognição sumária), não se admite os fenômenos da analogia e da interpretação extensiva. Mas, não é só. Aqui, por evidente, pouco importa a veracidade, ou não, do que consta do texto do Querelado: no caso em exame, simplesmente, não há a atribuição de fato criminoso ao Querelante: logo, não há elementos de convicção a apontar a viabilidade da persecução penal pelo crime de calúnia. Pouco importa a fonte, confiável ou não, da “acusação” mencionada pelo Querelado em seu Tweet: em não existindo a imputação de “fato definido como crime”, não há o crime de calúnia e nem é possível a instauração da instância penal.
Vale insistir: impossível o recurso à analogia ou ao método de interpretação extensiva para justificar a persecução penal em desfavor do imputado. Em respeito ao princípio da tipicidade penal, não há como equiparar a afirmação de que alguém está sendo acusado por um crime com a conduta criminosa de imputar a prática de um fato definido como crime.
Em outras palavras: o texto atribuído ao Querelado, acima transcrito e que instrui a queixa, não permite vislumbrar, mesmo em abstrato, a imputação de um fato definido como crime e, portanto, impede um juízo de admissibilidade positivo da acusação. Frise-se que o estudo da hermenêutica aponta que o texto é sempre um evento que precisa ser respeitado pelos intérpretes. Existem limites intransponíveis à interpretação de um texto. Um texto deve sempre, e sempre, ser interpretado em seu conjunto e no seu contexto (no caso, uma das redes que alguns teóricos chegam a chamar de “antissociais). Por evidente, o Querelado não pode ser penalmente perseguido por uma interpretação do Querelante que não encontra respaldo no texto apontado como ofensivo. A pessoa só pode ser punida pelo que faz, nunca pelo que alguém, mesmo que se sinta ofendido, acredita que o imputado quis fazer.
Curioso notar que o próprio Querelante parece perceber que a literalidade do texto apontado como criminoso não atende ao desejo de ver o Querelado perseguido judicialmente. Esse indício, que parece indicar uma distorção, ainda que inconsciente, do sentido dado ao texto, fica claro na leitura da própria petição inicial, a saber: “o Querelado, na sagaz tentativa de evitar sua responsabilidade criminal, fez sugestão de que não seria ele quem teria iniciado essa afirmação(…)”. Impossível, pois, seguir com a persecução penal em juízo a partir daquilo que o Querelante imagina ser o sentido de um texto, sem que essa projeção encontre respaldo mínimo na materialidade do texto. Na produção do significado atribuído aos textos pelos leitores, não é de hoje que se sabe, entram em jogo valores, preconceitos e pré-compreensões do intérprete que não podem ser atribuídos ao autor do texto.
Ademais, a leitura dos “tweets” atribuídos ao Querelado autoriza imaginar a vontade de especular sobre uma hipótese (que pode ser falsa ou verdadeira) ou mesmo de narrar um fato (“animus narrandi”) de interesse público, mas nunca a “consciência e a vontade de caluniar” necessárias à configuração típica, ou seja, não existem elementos de convicção mínimos que permitam afirmar que a vontade do Querelado dirigiu-se à imputação falsa de um fato definido como um crime. Afinal, na lição de Paulo Queiroz, “não há calúnia, por ausência de dolo, se o agente atuar de boa fé” (Curso de Direito Penal, Parte Especial. Salvador: Juspodium, 2013, p. 161). Diante dos elementos trazidos pelo próprio Querelante, não se pode presumir a “má-fé” do imputado.
Mas, não é só. A queixa formulada em desfavor de Felipe Neto Rodrigues Vieira não chega a expor “o fato criminoso, com todas as suas circunstâncias”, isso em desobediência do previsto no artigo 41 do Código de Processo Penal. A Queixa, apenas para citar um exemplo, não esclarece de forma adequada a data em que a ação criminosa atribuída ao Querelado teria se dado (há apenas a “foto” de um dos tweets em que a provável data da postagem pode ser vista) ou, ainda, a data da ciência do Querelante sobre esses fatos. Há, portanto, inépcia manifesta.
Por fim, necessário, ainda, tecer algumas considerações não só sobre a ausência de violação do bem jurídico protegido pela norma do artigo 138 do Código Penal, como também sobre a compatibilidade dos “crimes contra a honra” com o ordenamento brasileiro diante das garantias constitucionais da liberdade de expressão e da livre manifestação do pensamento. Na lição de Juarez Tavares:
“A honra deve ser vista, essencialmente, como bem da pessoa e não da sociedade. Como tal, é erigida como sua condição de existência, a partir do reconhecimento de sua dignidade, que se afirma como elemento estrutural do Estado democrático, independentemente das habilidades ou deficiências de cada um. Quanto vista no sentido social, a honra não pode ser transformada em bem de utilidade, mas alinhavada igualmente como condição da ordem jurídica” (Anotações aos crimes contra a honra. São Paulo: Revista Brasileira de Ciências Criminais, Ano 20, v.94, Jan/Fev, 2021, p. 97/98).
Percebe-se, pois, que a persecução penal de crimes contra a honra só se justifica à luz da normatividade constitucional em razão do risco concreto ou da efetiva violação à dignidade da pessoa humana, valor também assegurado pela Constituição da República tanto quanto as garantias da liberdade de pensamento e da liberdade de expressão. Assim, para além da tipicidade formal, só haverá “crime contra a honra” (tipicidade material) nas hipóteses de efetiva violação dessa dignidade, o que, por vezes, é impossível de ocorrer em um ambiente que beira o “vale tudo” virtual, com pessoas que naturalizam as “notícias falsas”, no qual a verdade é relativizada e os participantes parecem aceitar a ilimitação inerente ao contexto em que escrevem ou falam.
Não se pode esquecer que, como já ensinava Fabio Bittencourt da Rosa, “a honra está submetida à Ética. Logo, varia no tempo e no espaço” (Aspectos dos crimes contra a honra. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 561, Jul./1982). No caso em exame, tanto o Querelante (Luciano Hang) quanto o Querelado (Felipe Neto) são personagens frequentes do debate político brasileiro, mas que dialogam e influenciam “grupos de interesse” distintos a partir de lógicas narrativas diversas, naquilo que alguns designam como “bolhas” antagônicas. Uma breve pesquisa nas redes sociais das partes permite dar um exemplo: um é defensor do chamado “Kit Covid”; o outro, por sua vez, de orientações distintas que foram formuladas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Atuam em “bolhas”, portanto, que dificilmente se comunicam. O efeito “bolha”, vale lembrar, é causado pelo algoritmo de seleção dos conteúdos que são apresentados no feed de notícias ou em outros espaços da rede de computadores, isso a partir de escolhas, em nada neutras, de programadores. Assim, pode-se afirmar, sem dificuldade, que Luciano e Felipe possuem públicos, admiradores e seguidores tendencialmente muito diferentes. Dificilmente, o que Felipe diz ou escreve em suas redes sociais produzirá danos à imagem pública de Luciano ou à ideia que ele tem de si próprio (a interação do “eu” real com o “eu” imaginário), e vice-versa.
Desnecessário lembrar que o valor “verdade”, que implica no reconhecimento da complexidade dos fenômenos (sempre carregados, ao mesmo tempo, de “positividades” e “negatividades”), encontra-se desprestigiado nas redes sociais que atendem à lógica das mercadorias espetaculares (que se apresentam como meras “positividades” capazes de gerar “likes” e a capitalização política de quem opta por escrever nesses espaços). Não por acaso, na era do “poder numérico” e das redes sociais, vive-se a ascensão dos fenômenos da “pós-verdade” (o atomismo de milhões de pessoas convictas de que têm razão) e das “fake news”, ou seja, a produção de manifestações discursivas que, sem o ser, acabam percebidas como “verdadeiras”, produzindo “efeitos de verdade”, por “confirmar” preconceitos e imagens distorcidas dos destinatários. Ou seja, nas redes sociais, a “verdade” tem valor muito reduzido a ponto de tornar problemática, na atual quadra histórica, a ocorrência de efetiva violação à dignidade da pessoa humana através de postagens em uma rede social por alguém do campo ideológico (da “bolha”) oposto e com práticas discursivas distintas.
A questão ventilada na queixa-crime, ao que parece, deveria ter sido discutida em outra seara.
Por todo o exposto, em especial diante da absoluta ausência de justa causa à ação penal e da inépcia manifesta da peça, rejeito a presente queixa-crime, com fulcro no artigo 395, incisos I e III, do Código de Processo Penal.
Intimem-se
Após a preclusão, dê-se baixa na distribuição e arquivem-se os autos.
Rio de Janeiro, 25 de março de 2022.
Fonte: AMAERJ
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MAZOLA
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