Por José Carlos de Assis –
Diz um provérbio que peixe morre pela boca. Significa que, pela fala, as pessoas assumem compromissos dos quais não podem recuar sem desonra.
É o que está acontecendo com Joe Biden, o presidente dos Estados Unidos, em relação a seus recentes pronunciamentos, alguns de conteúdo profundamente contraditório. Na última Assembleia Geral da ONU, ele anunciou o fim da busca da hegemonia pela guerra; em falas recentes e na iniciativa de convocar 110 países para a luta pela “Democracia”, recaiu na era da Guerra Fria.
O discurso na ONU foi entusiasmante. Biden reconheceu, em face do desfecho desastroso concreto da intervenção norte-americana no Afeganistão, que as tentativas de superpotências de imporem sua vontade a outros povos por meios militares estavam condenadas ao fracasso. Diante disso, propunha uma era onde as relações entre as nações seriam conduzidas, de forma recorrente, pela diplomacia. A mensagem implícita era o fim da busca da hegemonia pelas superpotências pelo caminho da guerra.
Vladimir Putin, da Rússia, e Xi Jinping, da China, receberam essas mensagens com natural cautela. Os norte-americanos, em princípio, não são confiáveis. Não tem um Estado unificado. O Estado público, que fala ao mundo, emite mensagens ancoradas em princípios gerais de defesa da Democracia e dos Direitos Humanos, nem sempre sinceros. O Estado oculto, ou Deep State, mantém-se numa linguagem de guerra conduzida pelos sistemas de informação, notadamente a CIA e a Agência de Segurança Nacional. Não é certo que se conforma à autoridade presidencial.
A recente Conferência do Clima, em Glasgow, Escócia, foi uma excelente oportunidade onde as intenções norte-americanas puderam ser testadas. O discurso público de Biden reiterou o que dissera na ONU quanto ao enfrentamento comum, pelas nações, dos riscos climáticos, mas suas declarações à imprensa, denunciando como inaceitável para os EUA o resultado das eleições na Nicarágua, antes que se realizassem, foi uma provocação aos russos e chineses. Estes, aliados de Daniel Ortega, o presidente sandinista nicaraguense.
A Nicarágua é um pequeno país centro-americano sem qualquer importância, em si, no jogo geopolítico. Sua importância é que, com suporte russo e chinês, pode tirar da órbita de influência norte-americana outras nações da Centro América e da América Latina. Os americanos resistem à ideia de entregar aos povos desses países as decisões sobre seus próprios destinos. Insistem em intervir para salvar sua “Democracia”, seus “Direitos Humanos” e sua “Estabilidade Política”, na linha do que defendem os radicais do seu Deep State, muitos deles do Partido de Biden.
Essa contradição marca as Relações Internacionais contemporâneas dos EUA. No fundo, são contradições entre “conceitos subjetivos” e “realidade objetiva”. Esta última, caracterizada pela crise climática e pela crise energética, empurra os países para a cooperação objetiva em termos de uma ação comum para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. Entretanto, não há como definir objetivamente conceitos que só existem no campo subjetivo, como “Democracia” e “Direitos Humanos”. E na verdade não existe, no campo jurídico, nada que os defina rigorosamente.
Num dos discursos para 110 países que reuniu a fim de discutir uma espécie de aliança “democrática” no mundo, o próprio Joe Biden reconheceu que cada nação faz a Democracia a seu jeito, baseada em certos princípios básicos. Acontece que também esses princípios são subjetivos. Por exemplo, onde está definido, claramente, o que são “Direitos Humanos”? Onde começam, onde terminam, como são violados? Em que medida a ação concreta de um governo contra um opositor caracteriza “violação” de direitos ou é um ato legítimo de defesa da estabilidade do Estado?
O mesmo pode-se dizer de “Democracia”. Cada um tem seu próprio conceito dela. Os países a aplicam, cada um a seu modo. Existem princípios gerais que a caracterizam, como escolha dos mandatários por eleições periódicas, alternância de poder, voto secreto, liberdade de propaganda eleitoral. Contudo, não existe uma regra única que deve ser seguida por todos os países para que sejam reconhecidos como uma “verdadeira Democracia”.
Sob todos os aspectos, o sistema norte-americano é o pior de todos os que se definem como democráticos. O poder nos EUA é dominado por oligarquias estaduais que comandam, através de consultas primárias falsamente democráticas, dois partidos tradicionais que se alternam no poder, sem chances para outros concorrentes. O presidente não é eleito diretamente pelo povo, mas por representantes indiretos. Seu sistema congressual é orientado por lobistas privados, e seu sistema judiciário é facilmente corrompido por dinheiro. Como considerar tal sistema um exemplo?
A esse respeito, o sistema chinês é muito mais democrático e funcional que o norte-americano, combinando representatividade com meritocracia, assegurada esta por um amplo sistema educacional do Partido Comunista voltado para o debate de questões públicas. O poder é organizado de baixo para cima a partir das cidades, com participação de entidades políticas locais, que é o que importa para o cidadão comum. O que se contesta no ocidente é o papel institucionalizado do PCC, o que é compatibilizado pela abertura do partido a adesões e a formas democráticas internas.
É claro que, nos níveis superiores da administração pública, não há democracia real em nenhum pais do mundo.
Não existe país que submeta ao critério de julgamento das “massas” seu sistema estratégico, sua geopolítica, seu sistema de defesa, suas relações exteriores e sua política de infraestrutura econômica e social. Isso se trata ao nível de estamentos especializados. São temas que necessariamente requerem uma visão geral integrada e especializada, e que se definem de cima para baixo fora da atmosfera das assembleias “democráticas” que caracterizaram o “Terror” na Revolução Francesa, os assassinatos da Revolução Russa e as execuções em massa da Revolução Cubana.
Democracia não é assembleísmo, dizia um eminente assessor de Getúlio Vargas, o advogado-economista Ignácio Rangel. Graças às ditaduras de Getúlio e de Vargas o Brasil começou a construir sua infraestrutura econômica, continuada por outro ditador, Ernesto Geisel. Não quer dizer que seus crimes na órbita dos “Direitos Humanos” reais, universalmente reconhecidos como tais, devem ser ignorados. Mas a ambiguidade do conceito de “Direitos Humanos” não pode ser usada como pretexto para a submissão de um povo a outro povo, e sobretudo para que um povo imponha sua hegemonia aos demais.
A mensagem de Joe Biden aos 110 países supostamente “democráticos” que ele reuniu para isolar seus adversários geopolíticos e geoeconômicos, Rússia e China, não vai além de um convite para a ressurgência da Guerra Fria por meios não militares. É, porém, de uma tremenda crueldade no que diz respeito a “Direitos Humanos” reais. O presidente norte-americano, sentindo-se incapaz de impor a outros povos, por meios não militares, a hegemonia de seu país, se curva ao conselho de seu “Deep State” para vencê-los pela manipulação de conceitos subjetivos.
Os dois grandes pensadores da Era Moderna, Hegel e Marx, conceberam a História como evolução separada de elementos subjetivos e objetivos: Hegel, na “Fenomenologia do Espírito”, mostrou como a interação das formas ideológicas subjetivas das sociedades determinava o progresso espiritual da História; Marx, em “O Capital”, mostrou como a interação de forças sociais objetivas, o Capital e o Trabalho, determinava seu avanço material. Passados mais de um século, sabemos hoje que nenhuma dessas forças, individualmente, responde pelo progresso humano: a História exprime uma interação de elementos objetivos e subjetivos.
O que Biden está fazendo é usar os conceitos subjetivos de “Democracia” e de “Direitos Humanos” como instrumento geopolítico para dominar o mundo. Ignoro se faz isso conscientemente, ou se é levado a essa posição pelo Deep State. De fato, o uso político desses conceitos é uma velha técnica da CIA e da NSA para criar insurgências internas e derrubar governos não alinhados aos interesses imperiais norte-americanos. Contudo, há indicações de que o sistema de informações norte-americano tem políticas próprias, não necessariamente submetidas a uma hierarquia formal que a ponha sob controle da Presidência.
O preço que a humanidade pode pagar por essa política insana é brutal. Imagine que o povo chinês, instigado pelo governo dos EUA ou por ONGs financiadas por ele ou por bilionários ativistas, como a Open Society de George Soros, se insurja contra o governo de Pequim. Imagine as consequências em instabilidade social, guerra interna e correntes migratórias que isso pode resultar para o conjunto da Ásia, para a Europa e para o mundo: é que poderá haver uma diáspora de uma população que soma cerca de 1,3 bilhão de pessoas fugindo da “ditadura” do Partido Comunista! Europa e EUA assumirão a responsabilidade por isso?
Agora imagine que a Rússia, uma potência virtualmente em paridade de poder nuclear com os EUA, caia em mãos de um governante “democrata” bêbedo. Isso aconteceu com Boris Yeltsin, logo depois da derrocada da União Soviética, instigada por potências ocidentais que lavaram as mãos quanto às consequências de suas provocações contra o antigo regime comunista “ditatorial”. A sorte foi que, em lugar de um bêbedo, o poder institucional russo caiu finalmente nas mãos de um dirigente responsável, Vladmir Putin, o maior estrategista político do início deste século.
São grandes os riscos para os países e para o mundo de decisões que possam revelar-se irresponsáveis por parte de dirigentes escolhidos por massas ignorantes e despreparadas em sistemas supostamente democráticos. Vejam o que aconteceu com Donald Trump, nos EUA; vejam o que aconteceu com Bolsonaro, no Brasil. Acaso os regimes instituídos por esses dirigentes, por serem supostamente democráticos, são melhores do que os regimes estáveis e responsáveis da Rússia e da China, só porque há neles um tipo de liberdade de imprensa que, no fundo, não garante nenhum direito real do povo a conquistas sociais efetivas?
Considere-se, paralelamente, o papel que as ONGs ocidentais patrocinadas por bilionários articulados aos sistemas de informação de seus países desempenham no cenário internacional contemporâneo. Estão sujeitas às mesmas ambiguidades conceituais com que um país como os EUA justifica perante sua própria população a intervenção em países estrangeiros. Foi a resistência popular que impôs uma derrota militar dos EUA na guerra do Vietnã. Isso mudou. Parte da cadeia de ONGs de movimentos populares – alguns ingênuos e bem intencionados, outros cooptados e manipulados -, espalhada pelo planeta, aliou-se ao Deep State para promover a guerra, não a paz.
A parte aliada ao Deep State, como os Estados e os bilionários que a patrocinam, não tem compromisso algum com a estabilidade interna dos países. Na Ucrânia, na Síria, na Tunísia, no Egito, na Líbia, promoveram rebeliões que levaram à queda ou mesmo à execução de dirigentes políticos tradicionais, gerando as imensas correntes migratórias que hoje criam situações humanitárias terríveis nas fronteiras e dentro da Europa. A culpa desses dirigentes era a de ter relações amistosas com Rússia e China. Na Ucrânia, a origem da crise atual foram rebeliões “estudantis” contra um governo eleito cuja única culpa era também a proximidade com o governo russo, tendo metade de sua etnia comum.
Diante disso, não é surpresa que Putin e Xi Jinping não tenham comparecido pessoalmente à COP26: eles estão em estado de quarentena em relação ao que Joe Biden anunciou na Assembleia das Nações Unidas e reiterou em Glasgow como efetivo compromisso com uma era de paz e de prosperidade para os povos. O que me anima, na situação presente, não é o “texto” das mensagens entre os principais atores geopolíticos, mas o “subtexto” delas e o “contexto” geral do ambiente em que nos encontramos. O texto é o que diz Biden de forma contraditória; o subtexto é a realidade objetiva; e o contexto são as relações geopolíticas gerais.
São essas relações, a meu juízo, que na interseção do objetivo e do subjetivo determinarão daqui para a frente o curso da História. Antes de Marx e de Hegel, os filósofos políticos apoiaram a Democracia Moderna em três fundamentos do que consideravam Direito Natural: o direito à Vida, o direito à Liberdade e o direito à Propriedade. Não há como definir objetivamente o direito à Liberdade (a não ser enquanto limitado pela liberdade do outro) e o direito à Propriedade; quanto a este, é preciso condicioná-lo ao fato de que o direito de um ter propriedade privada (dos meios de produção) implica que o outro tenha o direito ao trabalho dignamente remunerado (pleno emprego).
Entretanto, é inequívoco o direito à Vida. Este é inquestionável. Nada lhe é superior. Nada o condiciona ou limita. Se o governante não respeita o direito à Vida de seus constituintes ele pode ser deposto. A Vida é inviolável segundo o Direito Natural.
Portanto, segundo o Direito Natural, instituições internacionais, como ONGs, que se arrogam o direito de interferir em outros países em nome de direitos subjetivos que não podem ser definidos de forma inequívoca em termos jurídicos internos – já que não há um Direito Internacional que defina crimes, regras de comportamento e punções por sua violação, exceto em condições de guerra -, arriscam-se a provocar neles violações do direito objetivo à Vida que se segue inexoravelmente a convulsões sociais provocadas externamente.
Assim, se os dirigentes dos países hegemônicos do mundo não se conscientizarem de que as mudanças climáticas e outros fatores ambientais provocados pelo homem, como a crise energética, implicam graves ameaças objetivas à Vida no planeta, eles podem ser depostos pelos seus constituintes e pressionados por forças externas a serem destituídos. Nesse caso, trata-se de uma afirmação da Democracia, e não contra ela. Mas esta é uma situação limite. Não há nenhuma outra que justifica a intervenção de um Estado na ordem interna de outro Estado.
Na entrevista conjunta que deram na abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, em Pequim, Xi Jinping e Putin advertiram os Estados Unidos a não se meterem nas políticas internas dos demais países. É o melhor que podem fazer. Infelizmente, em países da África e do Oriente Médio, ainda há muita violação inequívoca de Direitos Humanos que ferem a sensibilidade dos povos. Entretanto, se considerarmos que a geopolítica moderna começa na prática com os acordos de Westfalia, que puseram fim as guerras de origem religiosa – portanto, ideológicas -, é melhor manter a geopolítica nas fronteiras tradicionais não ideológicas.
No caso da Ucrânia, o que está em jogo é o direito russo, negociado verbalmente por Yeltsin e Bush pai como condição para o fim da Guerra Fria, a que a Ucrânia jamais se incorporaria à OTAN. A Rússia aceitou sem reagir ao avanço da OTAN para o Leste, aproximando-se cada vez mais de suas fronteiras, mas ao assumir o poder um governo forte, como o de Vladmir Putin, a situação mudou. Um avanço adicional será inaceitável. Diferentemente dos outros países que se incorporaram à Aliança militar do Ocidente, a Ucrânia está nas costas da Rússia e é um país territorialmente expressivo, populoso e com a etnia dividida com os próprios russos.
O golpe que derrubou o governo democrático ucraniano, em 2014, teve claro patrocínio norte-americano e de ONGs a serviço do Departamento de Estado e da CIA. Três nazistas declarados assumiram postos de destaque no novo governo. A Rússia tem todo o direito de proteger suas fronteiras. E a insistência da OTAN em incorporar a Ucrânia a suas fileiras consiste, em si mesma, o indício de uma intenção agressiva. Na história, não foi a Rússia, tradicionalmente, a potência agressora. Ela foi invadida pelos suecos, por Napoleão e por Hitler. Nada indica que ocorra o oposto agora, em plena era nuclear e com a Europa, sob patrocínio norte-americano, armada até os dentes.
A melhor solução para a crise ucraniana foi sugerida por Henry Kissinger, que reputo o grande geopolítico do século. Ele sugere que a Ucrânia desempenhe, uma vez reconhecido o definitivo encerramento da Guerra Fria, o papel que a Finlândia desempenhou ao longo dela: um país-tampão entre União Soviética e o Ocidente, geopoliticamente neutro, com boas relações com ambas as partes.
Isso proporcionaria uma base de paz permanente à Europa e ao mundo a partir do único foco de tensões reais que podem levar a uma guerra destrutiva sem precedentes depois da Guerra Fria.
JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política; Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964; Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro; Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica. Autor de “A Era da Certeza”, que acaba de ser lançado pela Amazon. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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