Por Ricardo Cravo Albin

“(Você vem feito criança / pra chorar o meu perdão / qual o quê / diz pra eu não ficar sentida / diz que vai mudar de vida / para aguardar meu abraço)” – Chico Buarque, 1966.

Recebi há dias telefonema da emissora cultural do Chile – que abriga basicamente as universidades do país – para uma entrevista comigo sobre um fato, segundo eles, surpreendente: como considerar Chico Buarque, logo ele a fazer censura de suas próprias músicas, logo ele, o grande censurado no Regime Militar (1964-1985)?

Devo logo explicar que há dois anos ministrei um curso acadêmico em Santiago com o título “De Noel Rosa a Chico Buarque” – transmitido todo ele pela simpática emissora Universitária. Isso geraria largo interesse pelos vultos da MPB lá perfilados, em especial os que limitavam pelo título do seminário os últimos 100 anos de música, Noel e Chico.

Pois bem, a primeira pergunta, de um estudante de comunicação, quase me enfureceu, ao se referir ao Chico como possível censor, ou mesmo autocensor de suas próprias letras, em especial aquela que eu tinha afirmado no anfiteatro da universidade ser uma das minhas preferidas, exatamente “Com açúcar e com afeto”, tanto pela qualidade poética arrebatadora de um iniciante de 20 anos, quanto pelo fato de ter sido divulgada por uma de minhas cantoras do coração, a musa Nara Leão, para quem a canção foi composta. De pronto fiz uma correção inicial (“Jamais você acuse Chico de censor, mesmo autocensor, até porque ele não proibiu a música, apenas se reservou o direito de não mais canta-la em público, como preito de gentil solidariedade e adesão a um grupo de feministas que se queixava de machismo na MPB”).

Devo expressar aqui opinião pessoal sobre grupos minoritários a exigirem silenciar canções do passado, em especial do carnaval, necessariamente libertário e livre, como ocorrera há 2 ou 3 anos, condenando com fúria e mau humor marchinhas que fizeram alegria das gargantas do povo por décadas a fio como “O teu cabelo não nega” do genial Lamartine, ou mesmo Amélia, dos não menos geniais Ataulpho Alves e Mário Lago.

Nessa época, publiquei artigos em defesa dos autores censurados e de suas cantigas imortais. Veio, em contra partida, uma chuva de mais e mais peças que deveriam ser proibidas. Sim, proibidas!! Por uma censura que graças a Deus jamais deve dar as caras, como o famigerado DCDP (Departamento de Censura e Diversões Públicas da Polícia Federal). De fato, admito que esses possíveis guardiões do politicamente correto, os de hoje e agora, confundem o politicamente correto dos tempos mais leves e amáveis em que foram perfilados e contextualizados como normalíssimos [de mais a mais, citar o cabelo duro da mulata (meu Deus, empregar o substantivo mulata na marchinha pode ser insultuoso) tanto quanto chamar de Amélia uma mulher de prendas caseiras pode ser um palavrão].

Considero, como diria minha querida amiga a cronista Eneida, uma bobagem em dó maior essa caça às pulgas, enquanto os ratos estão aí mesmo devorando o país de cima a baixo, ao impor seu poderoso império cultural em música, cinema e etc, incluindo a macaqueação de tantas imbecilidades chinfrins em discos.

Ainda sobre Chico Buarque, por conhecê-lo e gostar dele desde 1965, sou insuspeito em falar. Até por ter-lhe atribuído o primeiro Golfinho de Ouro do MIS (em 1967, por Carolina, outra musa eterna dele) e também lhe ter registrado o primeiro depoimento para a posteridade do MIS, sendo ele um compositor apenas de 20 anos – quando só a turma dos 70 adentrava o pódio cobiçado da eternidade, como Pixinguinha, Donga, Ismael, Heitor, Ataulpho e todos os demais pioneiros do samba negro e pobre.

Aceno daqui um pedido de admirador do Chico por décadas a fio: não atenda mais ninguém que se julgar atingido por suas cantigas. Com Açúcar vai fazer, sim, muita falta. Quem sabe se nesse país mal humorado de hoje alguém pedirá a cabeça do operário suicida de Construção ou a censura da apedrejada Geni, em nome de minorias, dignas com certeza, como os travestis ou os suicidas trágicos?

Luiz Caldas já disse que não mais cantaria Fricote (marco zero do axé music) Mano Brown já baniu seu “Mulheres Vulgares” Zeca, o meu estimado Pagodinho, não mais canta Faixa Amarela.

Estou na espreita que algum policial peça a censura do pioneiríssimo Pelo Telefone (“O chefe da policia pelo telefone manda me avisar / que na Carioca tem uma roleta para se jogar”). Quem sabe se não haverá armas apontadas pedindo a censura de boa parte do repertorio do sublime Noel, como Mulher Indigesta, a levar pedrada na testa, ou Eu Sei Sofrer (“quem é que já sofreu mais do que eu / quem é que já me viu chorar / sofrer é o prazer que Deus me deu / eu sei sofrer sem reclamar…”). Um Noel masoquista será mau exemplo para a juventude e poderá ser censurado por algum engraçadinho de plantão.

Ainda anotei mais de 50 canções que transgridem hoje o chamado “politicamente correto”, mas irretocáveis à época em que foram feitas.

E daí? “proibiram que eu te amasse / proibiram que eu saísse… / proíbam muito mais, preguem avisos / fechem portas, ponham guizos. E Daí” (Miguel Gustavo, 1959).

E daí, questiono eu?

PS 1 – Pablo Neruda em O Carteiro e O Poeta repreende o mensageiro por usar os seus versos para conquistar uma mulher. O Carteiro se defende “a poesia não é feita pra quem faz, poesia é feita para quem precisa dela”.

PS 2 – Acaba de sair o belíssimo Almanaque da Carioquice, da insight. Comento semana que vem o trabalho de Luiz César Faro e Mônica Sinelli.

PS 3 – O livro “Darcy Ribeiro em Maricá, a utopia é aqui”, publicado pela prefeitura de Maricá, tem curadoria de Gringo Cardia. Anseio lê-lo até porque acompanhei Darcy e Claudia Zarvos, tanto quanto Callado e Ana Arruda todo o tempo em Maricá, como vizinho e amigo dos dois casais.

PS 4 – Saúdo o grande Dorival Caymmi, quem mais e melhor cantou o mar e suas lendas, no dia 2 de fevereiro, dia de Yemanjá.

RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.


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