Por Carlos Mariano –
Hoje, na opinião pública do mundo do samba, existe uma corrente de pensamento que tenta diluir o peso da africanidade na cultura das nossas escolas de samba afirmando que elas são um produto de uma conquista social que as tornaram agremiações representantes de uma cultura popular e plural. Ou seja, não mais uma identidade negra.
Passou-se o tempo em que o samba era discriminado e marginalizado.
Hoje é a nossa identidade cultural maior e orgulho do Brasil no exterior. Tudo isso é de fato verdadeiro mas, o problema é que essa narrativa ajudou, ao longo do tempo, esquecermos da participação do sambista negro como o sujeito e inventor da escola de samba.
O processo de mestiçamento cultural pelo qual as escolas de samba foram sofrendo a partir do seu crescimento dos anos de 1950 para cá, as deixaram, de fato, mais plurais e menos autênticas. Elas se modificaram para se adequar ao carnaval espetáculo patrocinado pelo estado e pela mídia. Muitas escolas de samba deixaram de ser instituições culturais comunitárias negras para, aos poucos, transformarem-se nas chamadas Escolas de Samba S.A – fato bem relatado no magistral samba do Império Serrano de 1982, de autoria da genial dupla Aluísio Machado e Beto Sem Braço, ‘Bum Bum Bum, Praticumbum, prugurundum’:
“Super Escolas de Samba S/A
Super-alegorias
Escondendo gente bamba
Que covardia!”
O assunto também é destaque no livro “Samba e Identidade Nacional – das Origens à Era Vargas”, de Magno Bissoli. O pesquisador afirma que no processo de se tornar representante e identidade da cultura nacional durante a chamada Era Vargas, o samba sofre um desnegrecimento ideológico. Bissoli detecta um paradoxo vivido pelo mundo do samba: o negro, ao mesmo tempo que fornece ao estado os elementos culturais que lhe dão condições de congregar interesses para a construção da identidade nacional, ele é espoliado da paternidade da tais elementos culturais.
Antônio Candeia Filho, um dos maiores nomes do samba brasileiro, no seu clássico livro “Escola de samba – Árvore que esqueceu a Raiz”, afirma também, de forma categórica e poderosa, que para se falar de samba, temos que falar do negro, e para se falar de negro, temos que reconhecer o seu papel de sujeito da sua própria história, na luta contra o preconceito de raça e de cor herdado da escravidão. Candeia, com essa narrativa afirmativa, conceitua de forma contundente que o samba e é de fato e de direito uma criação do povo preto no período de pós-abolição. E a escola de samba é uma instituição cultural, cujo objetivo é ser o bastião de resistência dessa cultura negra no combate ao racismo brasileiro. Então, quando uma escola de samba qualquer faz um enredo falando e abordando a cultura negra, ela não está falando de algo externo a ela, pelo contrário, está apenas reafirmando à sua condição de agremiação carnavalesca de origem afro-brasileira.
Nei Lopes, outro ícone do samba como pensamento negro, lembra, no seu recente livro “Afro-Brasil Reluzente – 100 Personalidades Notáveis do Século XX”, que sendo o Brasil um país afrodescendente, tal condição causou medo nas estruturas de dominação brasileira e as fizeram por em prática o projeto ideológico da miscigenação racial da população negra, que significaria torná-la mais branca não só na cor, mas, também no pensamento.
Uma boa parte da crítica especializada em carnaval hoje trabalha pelo branqueamento da história das escolas de samba, colocando-as como um fenômeno da celebração da nossa democracia e tolerância racial.
Busca-se sempre vê-las como exemplo para os gringos do maior espetáculo da Terra, uma festa feita e aberta a todos sem preconceito de cor, gênero, credo, etnia ou classe social. As escolas de samba não teriam mais “donos ou inventores”, seriam um produto comercial e social bem sucedido da indústria cultural e da nossa capacidade de sermos livres, plurais e criativos.
Isso é uma maneira ideológica de esquecer e assim esconder da memória nacional a participação do negro como artífice da história cultural brasileira. O fato é que o negro fez do batuque de macumba e, depois, o nosso samba, uma representatividade contínua de resistência cultural afro-brasileira na nossa sociedade.
Em outras palavras, seja na comunidade do morro, no asfalto da Sapucaí, nos camarotes da burguesia e ou seja nas vitrines do mundo, não há discussão: a escola de samba é negra, sim, senhor!
Bibliografia
Candeia, Antônio e Isnard. Samba – árvore que esqueceu a raiz. Editora Lidador, 1978 RJ.
Sodré, Muniz. Samba, o dono do corpo. Mauad Editora, 1998 RJ.
Bissoli, Magno. Samba e identidade nacional. Editora Unesp, 2012 SP
Lopes, Nei. Afro-Brasil reluzente – 100 personalidades negras do século XX. Editora Nova Fronteira Participações S.A. 2019 RJ.
CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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NOTA DO EDITOR: Quem conhece o professor Ricardo Cravo Albin, autor do recém lançado “Pandemia e Pandemônio” sabe bem que desde o ano passado ele vêm escrevendo dezenas de textos, todos publicados aqui na coluna, alertando para os riscos da desobediência civil e do insultuoso desprezo de multidões de pessoas a contrariar normas de higiene sanitária apregoadas com veemência por tantas autoridades responsáveis. Sabe também da máxima que apregoa: “entre a economia e uma vida, jamais deveria haver dúvida: a vida, sempre e sempre o ser humano, feito à imagem de Deus” (Daniel Mazola). Crédito: Iluska Lopes/Tribuna da Imprensa Livre.
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