Por Hermes C. Fernandes –
O pastor Ed René Kivitz se atreveu a publicar em seu perfil no facebook a seguinte citação de Karl Marx:
“Chegou, enfim, um tempo em que tudo o que os homens haviam considerado inalienável se tornou objeto de troca, de tráfico e se pode vender. O tempo em que as próprias coisas que até então eram coparticipadas, mas jamais trocadas; dadas, mas jamais vendidas; adquiridas, mas jamais compradas – virtude, amor, opinião, ciência, consciência, etc. Agora de tudo isso se faz comércio. Irrompeu o tempo da corrupção universal ou, para falar em termos de economia política, inaugurou-se o tempo em que qualquer coisa, moral ou física, uma vez tornada valor venal, é levada ao mercado para receber seu preço.”
Pergunto: alguma inverdade no trecho acima? Algo que contradiga nossa fé e prática cristãs? Quando li as reações nos comentários, fiquei a imaginar se as mesmas seriam diferentes se em vez de atribuir o texto a Marx, ele o atribuísse a algum autor cristão incensado entre os evangélicos, em especial, os reformados.
Propus, então, fazer um teste em meu próprio perfil.
Publiquei várias frases de Marx, atribuindo-as a João Calvino, Martinho Lutero, Charles Spurgeon, John Stott e Agostinho. Um bocado de gente curtiu e compartilhou, sem imaginar seu verdadeiro autor. Publiquei também frases destes mesmos autores, porém, atribuindo-as a Marx. Obviamente, muitos também curtiram. Entretanto, as críticas vieram e foram duras.
Por exemplo: “A família é a fonte da prosperidade e da desgraça dos povos.” Esta frase é do reformador Martinho Lutero. Mas como estava atribuída a Karl Marx, houve quem comentasse: “Família e a base de Deus entre os que ele criou, homens e mulheres. Karl Maxx era um apócrifo imbecil. Era morreu, e com ele suas idéias idiotas” (sic).
Outra frase que atribuí ao sociólogo alemão é de autoria do príncipe dos pregadores C.H. Spurgeon: “Não creia em metade do que você ouve; não repita metade do que você crer; quando ouvir uma notícia negativa divida-a por dois, depois por quatro, e não diga nada acerca do restante dela.” Lindíssima frase, não? Mas como estava assinada por Marx, gerou foi confusão. Num dos comentários, lia-se: “Vdd…a vida dele mostra quem ele foi…Marx teve apenas um trabalho fixo e, embora fosse estudioso… Por esse amor, ele aceitou a morte de quatro dos sete filhos, duas filhas se suicidaram, e que dependeu financeiramente da mulher durante os 16 anos que se dedicou a escrever “O Capital”. UM EXEMPLO, SÓ QUE NÃO” (sic). Outro comentário dizia: “Sujeito ordinário, preguiçoso e imoral, que não conseguiu sequer colocar a própria vida em ordem. É este pilantra, em muitos aspectos similar ao Lulla, o criador do sistema que tem a pretensão de trazer a solução para o mundo? Pois é. Cada um tem a referência que merece” (sic).
O que tudo isso tem a ver com as frases? O fato de ter tido uma biografia desastrosa, como teve tantos outros, inclusive cristãos, porventura desabona qualquer lampejo de genialidade que tenha tido? O fato de Sócrates ter se suicidado desfaz toda a sua filosofia? Fico a me perguntar se a maioria de seus críticos já reservou um tempinho para ler uma linha de “O Capital”. Provavelmente, não. Estavam ocupados assistindo aos vídeos do grande mestre astrólogo e filósofo Olavo de Carvalho, ou lendo seu maravilhoso livro “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota.” (Antes que me perguntem se já o li, minha resposta é não. Não me apetece. As coisas que assisti em seus vídeos foram suficientes para que formasse um juízo acerca de suas ideias).
Até quando comeremos com as mãos dos outros? Quem recebeu procuração para pensar por nós? Conheço calvinistas que nunca leram uma linha das Institutas ou do Sínodo de Dort. Citam Agostinho sem jamais terem lido “Confissões” ou “A Cidade de Deus.” Detonam Darwin sem terem lido nem o prefácio de “A origem das espécies”. Criticam acidamente Simone De Beauvior sem nunca terem lido “O segundo sexo” (mesmo porque, a grossura do volume é assustadora! rs). Caem de pau no coitado do Paulo Freire (celebrado no mundo inteiro!), mas nunca leram “Pedagogia do Oprimido”. Desdenham de Foucault sem terem lido “Vigiar e Punir” ou “A Arqueologia do Saber”.
Não estou dizendo com isso que todos temos a obrigação de ler tudo isso. Mas se formos honestos, ao menos, procuraremos nos inteirar de algumas ideias antes de sair por aí combatendo-as com frases prontas que ouvimos de terceiros.
Alguns dos que criticaram as frases falsamente atribuídas a Marx, curtiram e até compartilharam frases de sua autoria, porém, falsamente atribuídas a alguns dos grandes ícones cristãos. Abaixo, algumas delas:
“De cada um, de acordo com as suas habilidades, a cada um, de acordo com as suas necessidades.” (atribuí a John Stott).
“Se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária.” (atribuí a Agostinho).
“Se uma pessoa ama sem inspirar amor, isto é, se não é capaz, ao manifestar-se uma pessoa amável, de tornar-se amada, então o amor dela é impotente e uma desgraça.” (atribuí a Spurgeon).
“Os olhos que só enxergam a mentira quando percebem a verdade, cegam.” (atribuí a Lutero).
“Quem usa o nome da justiça para defender seus erros é capaz de muito mais para desvirtuar um direito.” (atribuí a Calvino…rs).
Espero que nenhum dos meus amigos que curtiram qualquer das citações se sinta aborrecido comigo. Foi, digamos, um experimento… E que demonstrou que, de fato, ainda há muito preconceito entre nós, inclusive, de cunho intelectual.
Vira e mexe, sou chamado de Marxista, principalmente, quando saio em defesa das minorias, ou quando denuncio injustiças, e mais recentemente, ao posicionar-me contra o impeachment. O que me consola é saber que eu, Kivitz, Ariovaldo e tantos outros, não somos os únicos a lidar com a mentalidade tacanha que insiste em prevalecer em alguns setores cristãos. Dom Helder Câmara dizia que quando ele alimentava os pobres, chamavam-no de santo, mas ao questionar a razão da pobreza, chamaram-no de comunista. Fazer o quê? Ossos do ofício…rs
É mais fácil rotular do que debater ideias. Rotulando, encerra-se a discussão. Posso garantir, mesmo não sendo marxista, que quem ler Marx desprovido de preconceito, poderá sentir-se constrangido ao encontrar em seus escritos mais de cristianismo do que em muitos escritores cristãos. O mesmo se dá com Nietzsche, Sartre, Voltaire, Espinoza, Freud, Jung e tantos outros. Experimente ler também Rubem Alves, Leonardo Boff, Frei Betto e Teresa d’Ávila com a mesma disposição com que lê Agostinho (se é que lê o bispo de Hipona). Aproveite e leia o rabino Nilton Bonder (ele me surpreendeu! principalmente com “A alma imoral”). Vai por mim… deixe de lado a teologia enlatada “made in USA” e varie um pouco seu cardápio de leitura. Garanto que fará bem à sua alma.
A propósito, sabe de quem é a frase postada no cabeçalho do meu post? Dele mesmo. Do miserável do Marx! Alguém ousa discordar do velho barbudo? Aliás, Karl Marx faz parte do dileto grupo dos cinco judeus que mudaram o mundo, ao lado de Jesus, Moisés, Einstein e Freud. Dorme com um barulho desses…rs
E responde à pergunta do post: talvez demonizemos tanto Marx porque suas teorias acabam revelando que não somos tão cristãos como deveríamos ser. Como disse um tal Martin Luther King, “só existe o comunismo porque não somos suficientemente cristãos.”
Podíamos dormir sem essa, não?
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
Tribuna recomenda!
NOTA DO EDITOR: Quem conhece o professor Ricardo Cravo Albin, autor do recém lançado “Pandemia e Pandemônio” sabe bem que desde o ano passado ele vêm escrevendo dezenas de textos, todos publicados aqui na coluna, alertando para os riscos da desobediência civil e do insultuoso desprezo de multidões de pessoas a contrariar normas de higiene sanitária apregoadas com veemência por tantas autoridades responsáveis. Sabe também da máxima que apregoa: “entre a economia e uma vida, jamais deveria haver dúvida: a vida, sempre e sempre o ser humano, feito à imagem de Deus” (Daniel Mazola). Crédito: Iluska Lopes/Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
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