Por Lincoln Penna –
Há sessenta e oito anos conheci a figura de Graciliano Ramos, exatamente no ano em que o grande escritor morreu.
Não foi como gostaria de conhecê-lo, e na época nem poderia ser diferente, pois era apenas um adolescente curioso, filho de um professor que chegara à casa de posse de um livro que ganhara de um amigo. Era justamente a de Graciliano que viria a falecer naquele mesmo ano de 1953. Meu pai comentou comigo aquela perda, e eu a partir daquele momento me tornaria seu leitor e admirador.
Graciliano Ramos de Oliveira foi um cidadão brasileiro pleno, sem jamais se dar conta de como foi admirado pela sua capacidade intelectual e de homem comprometido com o seu povo. Notabilizou-se como romancista, mas foi um cronista também, tal como contista exibiu seu talento, da mesma forma que o fez na faina jornalística. Não poderia ser pleno se não se envolvesse nas atividades políticas. Entre outras obras, ficaria mais conhecido por Vidas Secas, o que o situa igualmente no campo das memórias, uma vez que se trata de uma leitura de seu mundo do sertão profundo revelado de forma excepcionalmente realista.
E por que tão realista foi a composição daquele retrato verdadeiro e profundamente humano, que permanece impactante. Talvez sua origem explique essa capacidade de construir com perfeição aquele cenário real, pois nasceu numa grande família de classe média e viveu os primeiros anos de sua infância transitando pelas diversas cidades da Região Nordeste do Brasil, ainda sensível em face de uma realidade que não está distante do retratado por Graciliano.
Neste próximo dia 27 de outubro, o alagoano que nos encantou desde os primeiros contatos de sua obra faria 129 anos de nascimento, mas sua presença entre nós não se encerrou. Ao contrário, sua vida e suas atividades literárias se fazem falta pela sua ausência por outro lado alimentam a autoestima de seus conterrâneos. Logo, trazê-lo de volta nessas linhas de lembranças tão amareladas como foto bem antiga, não só é apropriada como se torna necessária para quem cultiva os bons exemplos.
O livro que provocou a minha curiosidade eu não mais o tenho. É pena. Na biblioteca de meu pai, até hoje mantida praticamente intacta, não o encontro, tampouco o herdei como outros que surrupiei daquele acervo mais centrado nos temas de Filosofia, Psicologia e Ciências Sociais em geral. Mas, Vidas Secas não se perdeu.
Suas edições sucessivas e a versão cinematográfica ficaram como uma reserva cultural de um povo marcado pela resistência estóica.
Quem conheceu Graciliano desvendou em sua personalidade a rudeza do sertanejo de poucas palavras e de muita sabedoria prática, aquela que é usada para perceber os instintos de quem quer que seja. Essa combinação de alguém introspectivo, voltado aparentemente para si é o mesmo a sentir as agruras pelo outro, numa espécie de solidariedade obstinada. Assim era Graça, como os amigos mais chegados os chamavam. E tal atitude casava com a opção de uma discreta militância política dada a sua condição de membro do Partido Comunista de Prestes.
Preso em 1936, seu comportamento não se alterou. Continuou imerso em seu mundo impenetrável tornado mais condizente com a sua situação de detento, e nesta condição escreveu Angústia, que além de relatos de experiências pessoais, desenvolveu a expressão estética da práxis social de seu mundo. Tal como Graça Aranha em Canaã, que tem sido considerado o pioneiro do romance social brasileiro, o mesmo se aplica à genialidade de Graciliano para a literatura regional com São Bernardo.
Contudo, foi em Vidas Secas que seu talento se harmoniza com o seu compromisso político a reunir a realidade de seu universo familiar, no sentido da grande família do agreste mais despojado, com o da revelação e denúncia da exploração que viceja nos seres que habitam o espaço da exclusão social brasileira. E foi na composição mais dura dessa realidade exibida em seu trabalho monumental, que assim é porque da simplicidade de paisagens e personagens revela a grandeza da miséria em seu convívio com a permanente adversidade.
O cenário hoje modernizado pela tecnologia não se alterou substancialmente, pois as cenas descritas e muito bem reproduzidas no cinema de Vidas Secas permanecem a desafiar a engenharia política das forças sociais que se empenham pela superação dessa realidade. Haja engenho político capaz de prover de dignidade real, porque subjetivamente o sertanejo tem de sobra, para que possamos dizer que esse trabalho político principiou com as denúncias produzidas pelo gênio de Graciliano. E hoje se converte em referência para os que pertencem à tribo dos indignados.
Passados tanto tempo, o que me ressinto nos dias em que estamos vivendo é exatamente a simplicidade terna de pessoas como Graça, que na sua aparente sisudez jamais deixou de lado suas raízes e seu compromisso em melhorar o mundo.
O seu particular universo de origem e o de todos, para que realidades amargas não mais se reproduzam no seio da humanidade, que tem tudo para dar certo e prover o mundo de felicidade, de encanto e da fraternidade e justiça social.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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