Por Kakay –
País vem sendo desestruturado em todas as áreas. Efeito sobre a gerações vindouras é avassalador.
“Morrer não é nada, não viver é que é horrível”, escreveu Victor Hugo. Andemos com ele.
“Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…”
– O grande Pessoa, no poema “O meu olhar é nítido como um girassol”
Em que momento perdemos a capacidade de nos indignar? Essa é uma pergunta recorrente que eu tenho me feito sem conseguir resposta. Sinto que, nesta sociedade, na qual as notícias se sobrepõem com uma velocidade meteórica, é raro um assunto merecer o espanto essencial para que certa ira nos domine e faça com que surjam uma vontade indômita e uma necessidade de sair da inércia.
Às vezes, uma foto tem capacidade de potencializar nossos sentidos até mais do que um texto, ainda que bem escrito. Nesta semana, a foto de uma senhora catando lixo, fato corriqueiro nas grandes cidades, ocupou a 1ª página de um jornal e nos lembrou da nossa imobilidade. Quando 20 milhões de pessoas estão em estado famélico em um país com tanta riqueza, é preciso reconhecer que erramos e pedir para parar o mundo. Andando com Victor Hugo:
“Morrer não é nada, não viver é que é horrível.”
O Brasil vai demorar muito para recuperar parte do que foi tragado e destruído pelo desastre que é governo federal. Em todas as áreas. Nossas fraturas são expostas nos mínimos detalhes, mesmo que, em alguns casos, quase imperceptíveis. É no desprezo oficial pelas crianças especiais, na valorização neofascista do preconceito racial e na ousadia aberta de expor misoginia como regra. A manifestação agressiva e homofóbica de um empresário bolsonarista contra o senador Contarato demonstra o caráter desses canalhas.
Enfim, o país vai sendo desestruturado em todas as áreas e o efeito disso sobre as gerações que estão vindo é avassalador. A suprema infelicidade de enfrentarmos, no meio de um desgoverno, uma crise sanitária desse porte levou o Brasil às cordas. Bolsonaro não tem preparo para administrar nem a si próprio, quanto mais autoridade para conduzir o país no meio desta crise.
No auge da pandemia, uma questão marcou-me profunda e indelevelmente: a não reação geral quando, todos dias, era anunciado o número de mortos. Mais de 3 mil pessoas morriam diariamente e eram expostos na mídia como números, tão somente. Parecia não haver, por trás daquela contagem, pessoas que ficaram órfãs, viúvas, amigos separados, enfim, não tínhamos tempo para dar espaço à dor, à reflexão e à indignação. Viramos observadores externos e perplexos da vida, sem parecer que essa é, afinal, a nossa vida. Recorro-me a Augusto dos Anjos, no poema “A Dor”:
“Chama-se a Dor, e quando passa, enluta
E todo mundo que por ela passa
Há de beber a taça da cicuta
E há de beber até o fim da taça!”
Esse certo torpor que nos aprisiona tem amarras invisíveis. A acomodação de uma elite embrutecida e cruel e a falta de mobilização popular que emperram o país. A estratégia de estrangulamento desse governo, que se ampara na mentira e em fake news, está sendo denunciada incessantemente, mas a impressão é que somente é percebida dentro de uma bolha específica.
Para quem não tem escrúpulos e nem senso de ridículo, tem valido a pena prosseguir criando um mundo paralelo que continua sendo habitado imaginariamente por milhões de pessoas. O jogo pelo poder parece não ter limites e a comprovação nesta semana na CPI da Covid, de que fizeram brasileiros de cobaias, ratifica a degradação miserável a que chegamos.
Num país com 20 milhões de pessoas abaixo do nível de pobreza, com fome e sem esperança, com 15% de desempregados e com todas as conquistas humanistas sendo desmanteladas, é necessário fazer o tempo acontecer. A passividade e a falta de indignação são maneiras indiretas de apoiar os crápulas. Muitos ainda têm tempo de esperar, mas para milhões de pessoas a espera significa a capitulação. Se não nos revoltarmos por nós mesmos, pelo menos que a solidariedade nos leve a sair do imobilismo. Vamos rasgar o véu que nos oprime e tira nossa visão e derrubar este muro que aprisiona a cada um de nós.
Venho falando e escrevendo há tempos que essa CPI que mobilizou o país pode ter um final que liberta ou que aprofunda a desesperança. A superexposição já fez com que ela fosse prolongada além do tempo. Nós temos pressa e o Brasil tem pressa. A politização tirou parte do foco. A conclusão dos trabalhos será demolidora, mas precisa ter eficácia, sob pena de frustrar expectativas e aprofundar o fosso.
A CPI não enfrentou a questão dos poderes imperiais do presidente da Câmara e do procurador-geral da República. Se o relatório final for simplesmente arquivado, na Câmara e no Ministério Público, o que é uma possibilidade real hoje, nós teremos ficado, mais uma vez, à margem da história. E estaremos alimentando a angústia coletiva que resulta exatamente da falta de indignação.
É preciso que tenhamos a coragem de dar um passo à frente e sair do círculo de giz que nos amordaça e nos imobiliza. A fome tem pressa. Miro-me no imortal Saramago, no poema “Venham Enfim”:
“Venham enfim as altas alegrias,
As ardentes auroras, as noites calmas,
Venha a paz desejada, as harmonias,
E o resgate do fruto, e a flor das almas.
Que venham, meu amor, porque estes dias
São de morte cansada,
De raiva e agonias
E nada”.
KAKAY ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 61 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e colunista da Tribuna da Imprensa Livre. Publicado inicialmente em Poder 360.
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