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A idade da Cooperação
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A idade da Cooperação

Por José Carlos de Assis

Estamos mergulhados na maior crise econômica presenciada por esta geração e provavelmente pelas gerações de nossos filhos e de nossos netos. A precedência das relações econômicas sobre os demais aspectos da civilização talvez se apresente mais convincente agora aos que, desconfiados de Marx, viam nas relações do poder político os elementos básicos da dinâmica histórica. No entanto, como é comum na filosofia oriental, elementos aparentemente paradoxais encontram um ponto de convergência num nível superior a ambos. A economia neoliberal nos conduziu à crise. É a política que nos vai tirar dela. Seu principal instrumento será a cooperação, levando ao capitalismo regulado, algo até há pouco impensável num mundo que valorizava antes de tudo a competição, a concorrência e o individualismo exacerbado.

O modo de produção capitalista não chegou a dominar toda a economia mundial, mas foi o fator estruturante básico dos aspectos fundamentais da civilização moderna. Os conceitos e valores basilares de sua ideologia mais recente, o neoliberalismo – recidiva do capitalismo liberal que prevaleceu até os anos 20 do século passado, e cuja expressão máxima foi o darwinismo social de Herbert Spencer e, posteriormente, o radicalismo libertário de Hayek -, transcenderam a esfera da economia e penetraram profundamente, ao longo das últimas três décadas, na política, na cultura, na diplomacia, na moral. Justamente por isso o colapso neoliberal não é apenas um fenômeno econômico, mas a derrocada de todo um universo civilizatório. A reconstrução caberá à política, já que, no jogo do poder, é a única esfera relativamente autônoma em face da perversão neoliberal na medida em que seja empurrada de baixo para cima pela democracia de cidadania ampliada, ancorada esta na busca de interesses sociais concretos e não ideológicos.

A profundidade da crise econômica e sua extensão a cada aspecto da vida contemporânea, em todos os pontos relevantes do planeta, está muito mais clara agora do que em fins de 2008 – um ano, até setembro, de excepcional crescimento para o mundo, tanto o desenvolvido quanto o dos emergentes e subdesenvolvidos, embora com um nível jamais visto de concentração de renda e de riqueza. Por isso, não me deterei nas estatísticas e nos conceitos que pretendem descrevê-las. Tentarei visualizar o futuro. Há razões significativas para se acautelar com análises prospectivas neste momento, maiores que nos exercícios padronizados de planejamento que eram usados até aqui. Não obstante, temos pontos de referência. Ainda não sabemos exatamente o que virá, mas sabemos o que certamente não virá, ou que não voltará a ser. É a partir daí que podemos especular sobre o que será e o que deveremos buscar.

A civilização ocidental, que a partir das duas últimas décadas do século XX se globalizou, ancora-se num conjunto de paradigmas básicos, alguns recorrentes ao início da Era Moderna e outros até a Antiguidade. Podemos distinguir, de forma não cronológica mas de relevância para os desafios contemporâneos, o paradigma ideológico do livre comércio que embute a livre circulação da riqueza e do dinheiro, a liberdade ilimitada de produção que embute a exploração predatória dos recursos naturais, a liberdade ilimitada dos Estados de fazer a guerra, a liberdade ilimitada no campo da pesquisa científica, inclusive da Genética humana, e a própria liberdade política até há pouco concentrada nas mãos de uns poucos. O traço comum por trás desses paradigmas, no campo filosófico, é o conceito de liberdade individual ilimitada como valor laico supremo. Seu reflexo no campo moral tem sido o individualismo.

Todos esses paradigmas colapsaram. Alguns, com a crise, e outros destacados pela crise. A idéia do livre mercado absoluto, incluindo nesse conceito a circulação financeira, esbarrou nos limites de seu próprio desastre. Ninguém mais, a não ser por interesse pessoal, fala em Estado mínimo, ou nas virtudes da auto-regulação dos mercados, diante da evidência de que foi a falta de regulação estatal que possibilitou o maior desastre financeiro da história. Tome-se apenas um fato: em meados de 2008, antes da crise, o valor nocional de derivativos, títulos especulativos do mercado desregulado em circulação no mundo, elevava-se a quase 700 trilhões de dólares; o de títulos financeiros, a 170 trilhões; em face disso, todo o Produto Mundial Bruto ficava em torno dos 60 trilhões de dólares!

Foi essa descolagem da órbita financeira especulativa da órbita real de produção de bens e serviços que fez disparar a crise e sua rápida dispersão por um planeta interconectado. As quebras no mercado sub-prime norte-americano, de inaudita intensidade especulativa, foi apenas o gatilho. Essa imensa órbita financeira de riqueza virtual, sem correspondência no mundo da produção e do trabalho, cedo ou tarde explodiria em crise generalizada. Não foi a decisão do Governo Bush de deixar ir à quebra o banco Lehman Brothers que a provocou. Este foi apenas a agulha que furou o balão. Como na dança das cadeiras, ao sinal de sentar-se alguém fica de fora, pois não há base física para todos os que giram em volta.

É possível que, depois dessa crise, a idéia do livre mercado sobreviva, pelo menos nos limites da Organização Mundial do Comércio que tolera formas qualificadas de proteção comercial. Contudo, a liberação financeira não sobreviverá. No mínimo, teremos alguma forma de controle dos movimentos de capitais que discriminem inversões produtivas de pura especulação. Quando, na prevalência do paradigma anterior, se levantava essa possibilidade, o argumento dos neoliberais se apoiava ora na ineficácia alocativa de recursos que isso implicava, ora nas dificuldades operacionais de aplicar controles. Esses argumentos faliram. Quanto à alocação, vimos no que deu – pura especulação. Quanto à operacionalidade dos controles, perguntem à China e à Índia: elas sabem como fazer controles crescendo.

A desregulação financeira que levou o mundo ao desastre é produto direto da ganância em escala planetária. Os marcos dessa saga fatídica são bem conhecidos. No curso da Grande Depressão nos Estados Unidos, nos anos 30, o democrata Roosevelt estabeleceu, no âmbito do New Deal, uma série de diretivas de organização do sistema bancário que prevaleceria até os anos 70. Posteriormente, o Acordo de Bretton Woods admitiu o controle do movimento de capitais e estabeleceu um sistema cambial de taxas fixas que funcionou maravilhosamente bem no período de um quarto de século do pós-guerra, denominado a Era de Ouro do capitalismo. Em 71, o republicano Nixon iniciou a derrubada dessa arquitetura liquidando o acordo.

Nos anos 60, para limitar a especulação bancária interna, os governos democratas de Kennedy e Johnson impuseram ao sistema a chamada Regulation Q, estabelecendo um teto de captação para a taxa de juros. Os banqueiros de Nova Iorque, acolitados por seus comparsas de Londres, criaram o Euromercado, virtualmente livre de regulação. A boa performance do Euromercado em reciclar os petrodólares advindos da alta do petróleo deu-lhe uma espécie de carta branca para ir adiante. Em pouco tempo, explodiu a criação de Paraísos Fiscais pelo mundo, um verdadeiro acinte à organização dos Estados em bases fiscais, e uma apoteose para livre-cambistas, vigaristas, corruptos, traficantes e marginais de toda espécie. Com o republicano Reagan, a desregulação financeira fez dos próprios Estados Unidos um paraíso fiscal, e com o democrata Clinton caiu o último bastião regulatório, a Lei Glass-Steagall, que estabelecia separação entre bancos comerciais e de investimento.

Foi sobre essa base, agora bipartidária e aventureira, que se formou a frondosa árvore especulativa. É evidente por si mesmo que isso atingiria um limite. O longo percurso que teremos de percorrer até a recuperação plena da economia mundial, mediante a recolagem da órbita financeira na órbita produtiva, não permite que se mantenha o ponto de partida da especulação. No mínimo, teríamos que voltar ao sistema de Bretton Wooks no que diz respeito a movimento de capitais especulativos. Outro mecanismo seria uma taxa Tobin sobre o movimento de capitais, que fosse pequena o suficiente para não desestimular investimentos produtivos mas que, pelo efeito de replicação que tem a aplicação especulativa, a coibisse. Em qualquer hipótese, não será o fim do capitalismo, mas a afirmação do capitalismo regulado.

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Contudo, é no contexto geral da civilização contemporânea que temos de buscar os sinais dos novos tempos. O neoliberalismo foi uma revivescência do velho liberalismo econômico que parecia impensável depois do New Deal e nas duas décadas do pós-guerra. Por que ressurgiu? Uma versão ingênua poderia supor que o neoliberalismo resultou da convincente pedagogia de Hayek e de Friedman, ou dos valores intrínsecos das teorias que divulgaram. Balelas. Ainda no início dos anos 70 Hayek não era levado a sério em qualquer meio universitário e profissional do mundo, exceto em alguns nichos. Foi a forte instabilidade cambial e monetária dos anos 70 que trouxe à baila a alternativa liberal, à falta de melhor resposta para a crise. Além disso, o neoliberalismo era um bom instrumento ideológico para tentar dissolver o Estado de bem-estar social criado pelas democracias sociais européias.

Nos Estados Unidos, o monetarismo de Friedman, também pouco levado a sério durante décadas, foi testado por Paul Volcker em face de uma inflação de dois dígitos e depois de sua tentativa de uma política financeira coordenada dos países industriais, repelida pela Inglaterra, Alemanha e Japão. Revelou-se inconsistente. A teoria previa que o controle numa taxa constante da expansão monetária eliminaria o ciclo econômico, estabilizaria os preços e garantiria um crescimento sustentável. A economia desabou e Volcker, sabiamente, retornou ao leito tradicional da regulação da quantidade de moeda pela taxa de juros, visando simultaneamente a inflação, ao crescimento do produto e ao emprego. Mas Hayek e Friedmann sobreviveram, e sua ideologia de livre mercado absoluto, auto-regulação e Estado mínimo ganharam o status de pedra angular da globalização especulativa.

A razão disso não é muito difícil de encontrar em retrospectiva, exceto apenas para economistas sectários que vêem a economia como um processo autônomo no contexto civilizatório. Na verdade, o liberalismo voltou não pela perspectiva de suas virtudes intrínsecas na economia, mas porque foi percebido como o instrumento ideológico eficaz, no Governo Reagan, para o projeto deste de retomar a hegemonia norte-americana no Ocidente, a despeito da crise, e de levar a União Soviética à rendição, sem guerra ou mesmo com risco de guerra. De fato, não havia nada mais contraditório com o neoliberalismo de Estado mínimo, percebido muito claramente pelos contemporâneos, do que os gigantescos déficits fiscais norte-americanos, recordes para a época, frutos de um orçamento de guerra.

Entender o contexto geopolítico da revivescência liberal dos anos 80 para cá é fundamental para responder à pergunta inevitável diante da atual crise, a saber, o neoliberalismo voltará depois dela em futuro próximo ou distante, em outra roupagem, assim como o velho liberalismo voltou décadas depois da Grande Depressão sob a forma de neoliberalismo? Suspeito que não. Se é possível aplicar métodos científicos rigorosos para examinar o curso da civilização, o mais elementar desses métodos é examinar todo o contexto em que nascem, se desenvolvem e morrem os paradigmas em que ela se assenta. Nesse sentido, não é apenas a copa da árvore do neoliberalismo que secou. São também as raízes e a terra de que se nutriu.

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Como observado, paradigmas fundamentais estabelecidos ao longo de séculos e milênios sustentaram a arquitetura da civilização ocidental, a qual, nas últimas quatro décadas, praticamente se universalizou. O mais antigo deles, que remete ao início da civilização, é o que sustenta a prerrogativa dos Estados de fazer a guerra. Múltiplos pretextos têm justificado a guerra ao longo da história, desde o simples saque até a busca de honra e glória, ou ainda como expressão do imperialismo, mas em nenhuma das circunstâncias históricas antigas a humanidade se defrontou com o risco do virtual desaparecimento da espécie humana, ou ao menos de grande parte dela, numa guerra nuclear generalizada. Isto é absolutamente novo. E trata-se de uma realidade objetiva determinada pelo desenvolvimento de forças produtivas (na área militar), segundo o conceito rigoroso de Marx.

Não é que guerras tópicas, marginais, não continuarão acontecendo. Mesmo agora temos algumas em andamento no Orienta e na África. Refiro-me a guerras gerais, com potencial de envolverem forças nucleares. E só guerras gerais, pelas lições da história, teriam implicações econômicas suficientes, por exemplo, para arrancar o mundo da crise em que se encontra – conforme ficou evidenciado pela contribuição da Segunda Guerra à plena recuperação das economias industriais avançadas ao fim da Grande Depressão dos anos 30. A evidência disso, aliás, se deduz do efeito pouco relevante que as guerras do Iraque e do Afeganistão tiveram na performance econômica norte-americana, muito mais influenciada pela exacerbação do crédito e a especulação financeira desenfreada.

A limitação do direito de guerra subverte o antigo enunciado de Karl Von Clausewitz segundo o qual a guerra é a continuação da política por outros meios. Na verdade, na era nuclear, para resolver conflitos entre os Estados, não há como substituir política e diplomacia. Guerras entre países nuclearizados não distinguiriam vencedores de vencidos, agressores de agredidos. São auto-contidas dentro do mesmo princípio de dissuasão que, na Guerra Fria, evitou o conflito direto entre Estados Unidos e União Soviética a despeito de uma oposição ideológica que tinha a força das guerras religiosas do passado e a despeito de suas intervenções militares na Coréia, no Vietnã e no Afeganistão, efetivamente limitadas na vizinhança do adversário principal. Adiante, será possível aplicar conceito similar a revoluções nos espaços nacionais, quando se discutir o paradigma da democracia de cidadania ampliada.

A dificuldade em aceitar a realidade do colapso do paradigma militar como meio de superar crises resulta da impressionante acumulação de forças bélicas no mundo, principalmente nos Estados Unidos. O senso comum rejeita a idéia de que todos esses arsenais – centenas de bases militares, imensos porta-aviões nucleares e submarinos estratégicos, milhares de bombardeiros e caças, e toda a parafernália eletrônica dos mísseis teleguiados -, são efetivamente inúteis quando se trata de conflitos entre nações nuclearizadas. Raymond Aron percebeu esse paradoxo, ainda no contexto da Guerra Fria, quando se referiu a aumento de poder com diminuição de controle. De fato, o poder nuclear determina a paridade virtual das nações dele armadas, independentemente do tamanho de seus arsenais

É claro que se pode imaginar um cenário de guerra convencional entre Estados nuclearizados. Começaria por um bloqueio global de terra, mar e ar, como aconteceu em Cuba, no intuito de dobrar a vontade do adversário segundo algum propósito. Entretanto, admitindo que houvesse algum motivo que a justificasse, como acabaria essa guerra, se o bloqueado não fosse um país periférico, como Cuba, mas uma potência nuclear? Pela rendição incondicional, a despeito da posse de arsenais nucleares? Muitos exercícios estratégicos desse tipo foram realizados tanto nos Estados Unidos quanto na antiga União Soviética, mas sempre levavam a um impasse. Os falcões do Pentágono que Anatole Rapoport chamava de “estrategistas clausewitzianos” chegaram, em seus jogos de guerra, a testar a hipótese de que, numa situação limite, houvesse um acordo tácito entre os contendores de jogar “apenas” uma bomba de cada lado, num alvo previamente escolhido. Era o desejo implícito de conferir uso ao poder nuclear. Mas se isso fosse para forçar um acordo, não faria mais sentido chegar ao acordo antes de atirar as bombas?

Não é difícil concluir, portanto, que, diante do fantástico desenvolvimento das forças produtivas na área militar, levando paradoxalmente à sua inutilidade virtual, a ideologia que justificava a guerra como um ato livre dos Estados-nação colapsou definitivamente. Se uma ideologia, no sentido de Marx, é justamente uma resultante no campo das idéias do desenvolvimento das forças produtivas materiais, não há ideologia que suporte a possibilidade de seu uso para efeito da destruição da espécie. Não se trata, pois, de uma conclusão apenas ética. É o mais genuíno materialismo histórico. Em seu tempo, Gandhi e Nehru podiam ser ridicularizados como idealistas, e muitas vezes o foram. Hoje, seriam apenas realistas. Entretanto, falou-se do colapso de um paradigma. Adiante será necessário tratar daquilo que o substitui.

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O segundo paradigma milenar cujo colapso está sendo ressaltado no curso da presente crise diz respeito à liberdade ilimitada de produção com respeito ao meio ambiente. A civilização humana já foi descrita como domínio das forças naturais e subjugação da matéria inerte a sua vontade. Isso justificou a exploração predatória da natureza até o limite em que as condições de vida na terra tornam-se instáveis e precárias. A consciência disso é relativamente recente, e há cientistas que se perguntam se já não ultrapassamos o ponto da irreversibilidade. No entanto, tornou-se também irreversível, em escala planetária, uma mobilização ampla em dois pontos essenciais: o combate ao aquecimento global para controlar as mudanças climáticas e as advertências para a conservação da água doce.

Lembro-me de um jovem engenheiro que, em sua primeira viagem pela Europa, visitou a Tchecoslováquia em meados dos anos 70, entusiasmado com a oportunidade de conhecer pessoalmente uma nação socialista. Voltou profundamente desapontado. Ao lado da impossibilidade de conseguir uma vaga de hotel ou uma entrada na ópera sem o recurso a uma propina a algum funcionário público, o que mais o desencantou foi ver exibidos, no trajeto do aeroporto de Praga ao centro da cidade, imensos cartazes com grandes chaminés vomitando espirais de fumaça como símbolos do progresso socialista. No Ocidente, ao contrário, a cultura pela preservação ambiental já estava se espalhando, sobretudo depois que o Clube de Roma publicou, em 1970, o “Limites do Crescimento”. Hoje, basta ligar a televisão para perceber a extensão na qual a questão ambiental se tornou tema universal.

O ex-presidente George Bush provavelmente terá sido o último líder mundial, com autoridade sobre um país dominante, que justificou a indiferença em relação aos problemas ambientais com o argumento de que a ação preventiva, especialmente aquela prevista no Protocolo de Kyoto, prejudicava a economia norte-americana, pelo que explicitamente sancionou a produção predatória da natureza. Seu sucessor Barak Obama, através de um enviado, não só assumiu um compromisso retórico positivo em relação ao tema, na conferência mundial sobre o clima em Varsóvia, antes de sua posse, como colocou a questão do desenvolvimento de fontes energéticas limpas e de criação de empregos verdes como eixo estratégico do programa de recuperação da economia que fez aprovar no Congresso.

Trata-se, sim, de uma mudança fundamental de atitude num país que tem e ainda terá por muito tempo um papel de liderança no mundo. Tal compromisso inicial já teve efeitos em várias partes do planeta. A China, acusada de principal poluidora entre os países emergentes, iniciou um vasto programa destinado a promover a energia limpa e a produção limpa. O Brasil fez do biodiesel um dos pilares de seu desenvolvimento energético. São iniciativas inequivocamente irreversíveis. O que significa que a superação da crise, que, na vigência do paradigma anterior, resultaria inexoravelmente num aprofundamento do padrão predatório da natureza, para o futuro terá que incluir na sua própria dinâmica a preservação ecológica e o respeito ao meio ambiente.

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Outro paradigma secular que se aproxima do colapso é o da liberdade de investigação e experimentação científicas sem limite. Desde o início da Era Moderna a Ciência conquistou um estatuto de total liberdade de ação que, inquestionavelmente, fez dela o principal instrumento de desenvolvimento intelectual e material da humanidade. Enquanto isso se deu no terreno da Física, até há pouco considerada a mais avançada das ciências, isso tinha limitadas implicações de natureza moral, não obstante restrições episódicas inaceitáveis no campo religioso. Entretanto, chegou o momento em que a Biologia molecular deu um salto qualitativo adiante da Física, e mergulhou o homem no conhecimento dos fundamentos de sua genética.

Desse ponto em diante entra o dilema da experimentação: pode o cientista, por exemplo, testar combinações de genes humanos no sentido de melhorar a descendência de um casal ou de uma pessoa clonada? O fato de que tais experimentos sejam inviáveis hoje, pelo conhecimento científico de que se dispõe, não significa que os avanços formidáveis da Genética nos últimos anos não prossigam no mesmo ritmo pelos próximos, sobretudo depois que se decodificou todo o genoma humana e o de várias outras espécies. Na medida em que o conhecimento adquirido torna-se rapidamente partilhado pela comunidade científica, cresce a possibilidade de experimentos de motivação ambígua, como, por exemplo, a de pais que querem um filho geneticamente perfeito, dispõem-se a pagar por isso e encontram um cientista disposto a tentar.

A eugenia não é tudo, embora os experimentos de eugenia nazistas, num mundo de tão alta cultura como o alemão, estejam suficientemente próximos de nós, no tempo, para não nos descuidarmos de uma recidiva. Numa perspectiva de futuro, pode-se imaginar cientistas “loucos” empenhados, como o Dr. Moreau do clássico cinematográfico, em experimentos de combinação de genes para dar características humanas a animais, ou características de animais a humanos, ou para fazer construtos humanos de três cabeças. Por enquanto, trata-se de mera fantasia lúgubre, pois o conhecimento genético atual nos informa que as principais características dos humanos são determinadas por mais de um gene, e provavelmente pela relação deles com outros elementos desconhecidos do genoma, inclusive o chamado “DNA lixo” (justamente porque suas propriedades não são conhecidas). Mas o problema moral não está aí.

Grande parte do conhecimento científico não foi adquirido por experimentos determinísticos previstos numa teoria abstrata, mas simplesmente pelo método da tentativa e erro na experimentação: o cientista estava procurando por uma coisa e encontrou outra. Não é absurdo, pois, supor que cientistas em busca de glória ou de dinheiro se metam a fazer experimentação genética com o genoma de forma aleatória. O que resultará disso? O potencial de controvérsia a esse respeito tem sido antecipado pela polêmica em torno da utilização das células tronco para desenvolvimento de órgãos humanos, algo seriamente questionado do ponto de vista religioso e moral a despeito das inequívocas razões benévolas dos cientistas que buscam tratamento eficaz para doenças incuráveis.

O fato é que, diante do avanço da Genética, é necessário estabelecer desde já um limite para a experimentação científica, a não ser que se tenha uma perspectiva totalmente materialista da condição humana, que lhe tire o caráter especial de seres com qualidades mentais e emocionais superiores na natureza. Não creio que essa perspectiva exista mesmo entre cientistas ateus. A idéia de que o homem possa interferir na sua própria linhagem, fazendo o papel da evolução natural – como sugeriu, recentemente, o físico Stephen Hawking -, escandaliza o sentido moral que todos temos inato, e jamais seria tolerada pela maioria das pessoas que participa do processo civilizatório comum. Um novo paradigma que estabelece limites para a experimentação científica está emergindo dos debates atuais, dentro e fora da comunidade científica. Resta saber como ele se consolidará sem inibir a Ciência.

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Finalmente, temos o colapso do paradigma da revolução como única forma de mudar a ordem política em favor das maiorias oprimidas. Esse paradigma, presente desde a origem da organização política na forma do direito histórico dos povos de se insurgirem contra governos opressores ou despóticos, ganhou, pelas mãos de Marx, um novo estatuto a partir do conceito de exploração de classe e do direito das classes exploradas de expropriar os expropriadores por meios revolucionários. Isso não aconteceu nas sociedades industriais avançadas, onde as relações de classe estariam teoricamente maduras para tal, mas aconteceu de forma espetacular, sob a liderança de Lênin, na Rússia econômica, social e politicamente retardatária.

A revolução social abstrata continuou sendo justificada ideologicamente pelo marxismo, enquanto as revoluções concretas, como a da China, se adaptaram à realidade objetiva justificando-se na prática pelo nacionalismo e, em teoria, pelo enunciado leninista segundo o qual elas teriam de avançar nas nações que constituíam os elos mais fracos do capitalismo, antes que pelas contradições inerentes ao capitalismo maduro. O apelo político dessa ideologia, reforçado pelo sucesso da revolução russa e, posteriormente, da revolução maoísta, atraiu grande parte do mundo subdesenvolvido, ao ponto de colocar os Estados Unidos, em sua posição hegemônica no Ocidente do pós-guerra, na condição de ter que tolerar Cuba socialista a poucos quilômetros de sua linha costeira.

Com o colapso da União Soviética, que promoveu na base da força militar “revoluções” socialistas de fora para dentro no Leste Europeu ao final da Segunda Guerra, e que indiretamente sustentou regimes revolucionários na Ásia e na África, sem mencionar Cuba, o paradigma segundo o qual a revolução social no mundo avançaria pelos elos mais fracos ou pela imposição de potências externas também colapsou. Mas como não existe vácuos na história, a motivação política perdida com o fim do socialismo real volta-se gradualmente para um novo paradigma que, em perspectiva, tende a negar simultaneamente o totalitarismo socialista e o liberalismo exacerbado. É o paradigma da democracia de cidadania ampliada, cujo desafio consiste em refuncionalizar o capitalismo liberal no sentido do capitalismo regulado.

De fato, os movimentos insurgentes que subsistem ainda na Ásia, na América Latina e na África perderam totalmente o caráter social, caracterizando-se por simples luta pelo poder entre facções políticas ou tribos. É difícil reconhecer, por exemplo, nas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, FARC, um propósito genuíno de revolução social, não obstante uma retórica marxista. Além disso, as táticas de luta desses movimentos, devido a suas limitações militares, costumam derivar para ações de efeito simbólico que muitas vezes representam terríveis agressões aos direitos humanos de inocentes, como os sequestros e os bombardeios indiscriminados, o que lhes tira legitimidade e apoio das massas – algo essencial para o sucesso político e militar de qualquer insurgência.

No terreno propriamente militar, as revoluções esbarram em limites quase intransponíveis, pois os governos reconhecidos pela comunidade internacional como legítimos dispõem ou podem dispor de recursos inacessíveis aos revolucionários, agora que não há uma potência externa de suporte ideológico. A situação só se equilibraria caso, num país semi-industrializado, as forças revolucionárias se apoderassem de uma capacidade industrial relevante do país. Isso, contudo, determinaria o fim da revolução pelo caminho da dissuasão militar: da mesma forma que é impensável uma guerra entre potências nucleares, é impensável uma guerra civil até as últimas conseqüências dentro dos limites nacionais de um país entre facções armadas com o potencial destrutivo da indústria química, metalúrgica e eletrônica contemporânea.

Não mencionei a improbabilidade de revoluções sociais nos países industriais avançados. Isso foi feito magistralmente por Kautsky e Bernstein ainda no início do século passado, para grande desconforto dos marxistas ortodoxos. Com notável antevisão histórica, eles perceberam a emergência de amplas classes médias e as novas oportunidades de mobilidade social como fatores que reduziriam o potencial apoio das massas a projetos revolucionários. O mesmo acontece, embora em menor escala, mas de qualquer forma enquanto tendência irreversível, nos países periféricos. Numa perspectiva mundial, o tempo romântico das revoluções sociais armadas passou. O que não significa que passou a vontade e a necessidade da mudança social e política, que na prática vem se realizando pela via da democracia de cidadania ampliada ou de sua busca, como tem acontecido recentemente nos países mulçumanos do norte da África.

Na América Latina, os governos de Chávez, na Venezuela; Morales, na Bolívia; Corrêa, no Equador; Lugo, no Paraguay, e Mujica, no Uruguay (e com menor retórica Kirchner, na Argentina), invocam princípios revolucionários para conquistar o poder, mas todos eles, sem exceção, chegaram efetivamente ao poder por meios democráticos e permanecem neles por meios democráticos. No Brasil, o ex-metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva, líder de um partido que na sua infância usava uma retórica revolucionária, seguiu todas as regras do jogo democrático para chegar ao poder, e faz da defesa da democracia uma das âncoras das relações internas e externas do país. Assim, da revolução social marxista só restou um eco de retórica e a aura romântica do Che pintado nas camisetas coloridas ainda usadas por jovens do mundo todo.

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Passam quase despercebidas ao senso comum as fantásticas mudanças que ocorreram ao longo do século XX na esfera política, as quais se traduziram numa gradual e aparentemente irreversível marcha da democracia limitada das primeiras décadas para a democracia de cidadania ampliada nas últimas. Este é, sem qualquer possibilidade de dúvida, o principal salto de paradigma no mundo contemporâneo. Antes da Segunda Guerra, contavam-se menos de vinte países no regime democrático, assim mesmo numa democracia discricionária, que em muitos casos sequer admitia o voto da mulher, de pobres ou de minorias étnicas. Hoje, entre os grandes países, apenas a China não se conta entre as democracias de cidadania ampliada, embora haja sinais de abertura nessa direção.

O fator geopoliticamente determinante dessa mudança teria sido o colapso da União Soviética, mas a força histórica que esteve sempre por trás dela, mesmo antes disso, foi, para usar o apropriado conceito marxista, o desenvolvimento contínuo das forças produtivas, primeiro nos países centrais, depois na órbita socialista, e, por fim, nos países da periferia. Não é apenas o direito de voto, a alternância do poder e a prevalência da maioria que caracterizam uma verdadeira democracia. É, sobretudo, a liberdade de opinião e a livre circulação de idéias, as quais efetivamente viabilizam aqueles atributos. Sem o rádio, a televisão e, mais recentemente, a internet, produtos massificados do capitalismo, o exercício da democracia de massas seria virtualmente impossível em países populosos e extensos. Com eles, é quase impossível governar sem democracia.

No curso da Guerra Fria, a democracia vagamente definida foi usada pelos Estados Unidos como instrumento ideológico de desqualificação da União Soviética e seus aliados, às vezes de forma fundamentalmente hipócrita, em razão do apoio norte-americano a regimes autoritários e fascistas que estavam em sua órbita de alianças geopolíticas e ligados aos interesses de suas corporações. O militarismo político sul americano foi um dos produtos dessa ambigüidade. Contudo, mesmo um regime militar autoritário, como o brasileiro entre meados das décadas de 60 e 80, usava, para justificar-se, uma retórica democrática e mesmo princípios democráticos, como alternância de poder, eleições periódicas e submissão das decisões de poder a uma formal maioria congressual. Faltava, obviamente, o atributo da liberdade política e de opinião, sem o qual não existe democracia verdadeira.

A entrada dos países numa etapa em que as necessidades mínimas da maioria da população são satisfeitas pelo aparelho produtivo, abrindo espaço para a melhoria dos padrões de vida e para a busca também de bens culturais, representa fator indutor decisivo da democracia de cidadania ampliada na civilização contemporânea. O primeiro passo efetivo nessa direção foi formalizado pela conquista do direito de voto por crescentes segmentos da população, mas isso teria sido impossível sem um movimento de massas que pressionasse as estruturas políticas de baixo para cima – sendo que a eficácia desses movimentos seria substancialmente limitada sem uma ampla circulação de informações e idéias possibilitada pelo desenvolvimento das forças produtivas no campo da comunicação. Um exemplo disso foi o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos nos anos 60, tardia manifestação da evolução política naquela que já era tida como a mais antiga democracia de massas no mundo moderno.

A força avassaladora da participação popular no processo político já havia sido demonstrada nos movimentos pela independência da Índia, a colônia inglesa que viria a ser a mais populosa democracia de massas do mundo. Nesse caso, a singularidade ficou por conta da forma de luta: em lugar da via revolucionária, que teria sido insuportavelmente destrutiva num país de centenas de milhões de habitantes, a independência foi arrancada dos ingleses por meio da não violência, a tática da desobediência civil. Entretanto, também nesse caso, líderes como Gandhi ou Nerhu teriam pouca chance de galvanizar as massas fora de um clima básico de liberdade de opinião e circulação livre de idéias, que os ingleses tiveram de tolerar num quadro típico de contradições de potências dominantes “democráticas”.

Os fatores objetivos que estiveram por trás dos processos de democratização de cidadania ampliada no fim do século XX são, pois, os fatores que impedem uma regressão nas décadas e séculos vindouros. Com o avanço da indústria de informação, a circulação livre de idéias e de opiniões tende a ampliar-se, não a retrair-se. É verdade que a China ainda concilia progresso material e controle da informação, inclusive com filtros notavelmente eficientes na internet, mas sua irreversível interconexão com o resto do mundo, representada por um comércio exterior que constitui grande parte do seu PIB, a expõe inexoravelmente a influências externas em todos os campos, inclusive no campo cultural e político.

Além disso, a natureza complexa da sociedade chinesa aconselha cuidado em qualquer movimento brusco no campo político. A estabilidade da China, com seu bilhão e trezentos milhões de habitantes, interessa ao mundo e à estabilidade global. Uma passagem desastrosa para a democracia de cidadania ampliada poderia abalar todo o planeta. Por enquanto, a liderança comunista chinesa, ao contrário da soviética – que tentou promover a glasnost simultaneamente com a perestroika -, está ministrando a democracia de forma equilibrada, procurando primeiro melhorar as condições materiais do povo. Em qualquer hipótese, como criação da crise, o mais provável é uma síntese entre a China e os países democráticos, pela qual a China avançará no rumo democrático, em política, enquanto os países democráticos avançarão no rumo do planejamento e da regulação do capitalismo à maneira chinesa, na economia.

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Se a democracia de cidadania ampliada é o paradigma político do futuro, firmemente ancorado no desenvolvimento de forças produtivas insusceptíveis de reversão, é a ele que deverá se referir, inelutavelmente, a reorganização dos velhos paradigmas que colapsaram em razão da crise mundial, ou cujo colapso ficou evidente em face da crise. A história em geral não improvisa, exceto nas revoluções. O que veremos adiante é um progressivo alinhamento de vários vetores da civilização convergindo para o mesmo rumo, sob o impulso e o condicionamento fundamental da democracia de cidadania ampliada. Uma visão realista desse processo deve partir de uma pergunta básica a propósito dos paradigmas que colapsaram, a saber, que tipo de paradigmas novos vão substituí-los?

Como já observado, na economia o paradigma do liberalismo econômico, na sua antiga forma ou na forma neoliberal, está inexoravelmente morto. Depois do estrago provocado pela crise em termos de queda de emprego e de produção, e da brutal carga tributária imposta a contribuintes de todo o mundo para tentar salvar instituições financeiras falidas – as mesmas que, ganhadoras na especulação, foram responsáveis pela crise -, não resta muito espaço para a defesa dos princípios da auto-regulação do mercado financeiro, do Estado mínimo, das finanças “saudáveis” ou da liquidação do Estado do bem-estar social – os alvos, por mais de três décadas, da ideologia neoliberal. Portanto, não apenas em sua forma, mas também no conteúdo, o liberalismo econômico vai para o lixo da história.

Entretanto, relações econômicas dentro e entre os países vão continuar existindo, e elas terão de ser ordenadas segundo algum princípio. No fim da Segunda Guerra, o princípio ordenador foi o incontestável poder econômico, militar e político norte-americano. Em décadas e séculos anteriores, sempre houve uma potência hegemônica, ou um condomínio estreito de potências que regulava a ordem econômica internacional. Isso faz com que muitos historiadores e cientistas políticos olhem com perplexidade para a situação atual, seja identificando os Estados Unidos com um tipo de poder hegemônico que ele já não tem, seja buscando em torno do planeta hegemonias concorrentes que ainda não se afirmaram, como a China. Para Kissinger, por exemplo, não pode haver um mundo apolar; no entanto, tudo indica que é para algo similar que caminhamos.

Esse debate está fortemente velado por pressupostos ideológicos frágeis. A primeira questão a decidir é quanto ao significado da palavra hegemonia: se for no sentido grego clássico (ou gramsciano) de liderança consentida, os Estados Unidos certamente preservarão por muito tempo seu papel de potência hegemônica no mundo. São os maiores relativamente em potência econômica e militar, e, de longe, os mais influentes em matéria política. É difícil imaginar algum campo de interesse estratégico dos Estados Unidos em que eles cederiam espaço a uma potência estrangeira sem resistência. Em razão disso, e por sua posição militante na defesa da democracia e dos direitos humanos (eventualmente falsa), o país estaria em melhor situação para liderar a recuperação mundial do que qualquer outro no planeta. Entretanto, basta ver as querelas em torno do orçamento fiscal entre democratas e republicanos, assim como os conflitos de interesse objetivos entre suas corporações e bancos em rede mundial, para concluir que os Estados Unidos, assim como a União Européia, dificilmente terão unidade interna para fazer valer suas posições externas.

Por outro lado, há um sentido vulgar da palavra hegemonia que significa poder de império. Nesse caso, os Estados Unidos já foram hegemônicos, assim como a Inglaterra, porém apenas num curto espaço de tempo, mas não são mais. Não podem impor sua vontade unilateralmente à Rússia, à China, à França, ou a qualquer outra potência ou subpotência nuclear. Não podem impor sua vontade sequer aos aliados estratégicos dessas potências, sem colocar em risco a estabilidade geopolítica do mundo. Sobretudo, para o que interessa aqui, em relação à crise econômica, já não podem fazer, para o bem ou para o mal, o que fizeram em Bretton Woods: impor uma ordem econômica e financeira mundial segundo seus próprios interesses, sem maiores considerações com o resto do mundo. Seria igualmente implausível supor que a China, com uma economia que é um terço da norte-americana (por enquanto), venha a substituir os Estados Unidos, a curto prazo, em seu papel hegemônico. Já o Japão, terceira economia mundial, está à volta com sua longa estagnação e seus desastres climáticos.

Contudo, a ausência eventual de um poder hegemônico imperial, à imagem de processos passados, não significa que o planeta não poderá sobreviver sem um no futuro. Num mundo de interconexões e de interdependência econômicas, a reação à crise, na ausência de um poder regulador singular, passa necessariamente pelo imperativo da cooperação. Isso não significa que os Estados Unidos atuarão em igualdade de condições com outros parceiros, mas supõe alguma forma de hegemonia benigna que leve em conta o interesse do outro. A contrapartida óbvia disso é que o outro terá de levar em conta os interesses básicos norte-americanos. Em síntese, como o Governo norte-americano entendeu mesmo antes da posse de Barak Obama, e que ficou ainda mais claro depois dela, nenhum país do mundo, sequer o mais poderoso economicamente, poderá sair da crise fora de uma agenda de cooperação mundial.

Se a cooperação é a saída para a crise, a democracia de cidadania ampliada é a força motora da cooperação. Nenhuma democracia contemporânea pode se dar o luxo da indiferença em relação ao aumento escalar do desemprego e da queda recorrente da produção: a instabilidade política certamente se imporia e os governos seriam substituídos em respeito ao princípio da alternância do poder. É em razão disso que, no início da crise, e em todo o mundo, inclusive na China não formalmente democrática mas muito cônscia do controle político de seus cidadãos, foram tomadas fortes iniciativas para debelá-la, na forma de grandiosos pacotes de natureza monetária e fiscal. Houve uma coordenação implícita ou explícita dessas iniciativas, com a marca universal da rejeição ao protecionismo, como se verá adiante. A reunião do G-20, em Londres, em abril de 2009, constituiu o marco histórico inicial dessa tendência; compromissos cooperativos ainda mais claros foram assumidos na reunião de Pittsburg, no mesmo ano; contudo, como a história nunca avança simetricamente, a reunião do G-20 no Canadá, no início de 2010, marcou um recuo na direção da retirada dos incentivos fiscais e no sentido da imposição generalizada de ajustes nos países desenvolvidos, colocando o mundo novamente na perspectiva de um segundo mergulho que só será evitado, desta vez, mediante uma estratégia mais objetiva de cooperação pela retomada do crescimento sobretudo na zona do euro.

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No campo geopolítico, se a potência hegemônica não pode impor sua vontade a supostos adversários nuclearizados, ela também não pode simplesmente ignorá-los. Numa perspectiva de futuro, o acúmulo indefinido de arsenais nucleares por diferentes potências constitui um risco por si mesmo, para todas elas e para a humanidade. O Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares é insuficiente e injusto, pois não cuida de desarmar as atuais potências, mas apenas de impedir o armamento nuclear de novas candidatas. Assim mesmo, foi um primeiro passo. E aponta o caminho a seguir, numa perspectiva mais abrangente, sobretudo depois que o Presidente Obama assumiu, na Europa, o compromisso público de lutar pelo banimento completo dos arsenais nucleares.

Onde não pode haver confronto nem indiferença, a segurança recíproca impõe a cooperação. Com efeito, os Estados Unidos ofereceram e efetivamente estão dando assistência direta à guarda e ao controle político-militar dos arsenais nucleares russos. Não é um ato generoso voltado principalmente para garantir a segurança russa: é para garantir a segurança norte-americana. No curso do caótico período de transição da Rússia socialista para a democracia, caracterizado pela anarquia e pela corrupção, estrategistas e políticos responsáveis de todo o mundo experimentaram uma sensação de aguda insegurança em relação ao controle desses arsenais, não obstante as reiteradas assertivas de autoridades russas de que estavam sob guarda responsável.

A questão nuclear é apenas a ponta do iceberg de um conceito mais profundo de cooperação que tende a abarcar a totalidade das relações políticas e diplomáticas entre as grandes potências desde já e para o futuro. Isso supõe uma virada secular ou mesmo milenar nos conceitos de Geopolítica. As grandes nações terão de ajustar seus interesses e suas pretensões aos interesses e pretensões das outras numa mesa de negociações, e não num campo de guerra. E as médias e pequenas nações, cujas pretensões são, por definição, limitadas, se beneficiarão do mesmo princípio na defesa de seus interesses, na medida em que a cooperação se torne a base de reordenamento das relações internacionais como valor universal.

Insista-se que não se trata de uma questão moral. As lideranças políticas do Ocidente ou do Oriente não são moralmente nem melhores nem piores hoje do que o eram antes da Segunda Guerra Mundial. A questão é de possibilidades concretas. O fato de que existem terroristas suicidas, no plano individual e de facções, não implica que existam nações suicidas dispostas a travar guerras não obstante as conseqüências catastróficas para o resto da humanidade e para si mesmas. O elemento de controle, que é o principal fator reordenador, já mencionado, de outros paradigmas colapsados, é a democracia de cidadania ampliada. A iniciativa de uma guerra nuclear ou de uma guerra convencional que possa levar a ela é simplesmente impensável numa democracia real em face da reação da opinião pública.

Recorde-se que, no contexto da Guerra Fria, o cientista político Raymond Aron colocava em dúvida a possibilidade de um acordo de efetivo desarmamento nuclear dos Estados Unidos com a União Soviética, basicamente porque não acreditava que o Senado norte-americano aprovasse um tratado desse tipo com uma ditadura sujeita a mudanças aleatórias de poder que pudessem subvertê-lo. Ele tinha razão. Por contraposição, hoje, pode-se concluir que, em se tratando de democracias, a credibilidade dos acordos repousa justamente na aversão à guerra, em especial a uma guerra nuclear com risco de generalização, da maioria da população civil de qualquer potência onde o poder popular se manifesta livremente.

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Não existe nenhum outro campo da civilização contemporânea onde o imperativo da cooperação se apresenta de forma tão objetiva quanto o das mudanças climáticas dado o caráter universal das relações atmosféricas. A humanidade defronta-se com a realidade inquestionável de que atingiu o limite, se não o ultrapassou, da exploração predatória da natureza. As interações climáticas, descritas de forma metafórica no alvorecer da Teoria do Caos – “uma borboleta que bate asas na Patagônia provoca um tufão na Califórnia” -, perdeu toda a sua carga poética. Agora, é o aquecimento provocado por uma termelétrica a carvão na Califórnia que contribui para derreter uma parte da calota polar, provocando o aumento do nível do mar no Atlântico e submergindo ilhas e praias no Pacífico! Nenhuma iniciativa de um país isolado pode fazer parar ou reverter esse processo. Pela própria natureza das interações climáticas, elas transcendem fronteiras geográficas e políticas. Um programa contra as causas do aquecimento global terá de ser necessariamente coletivo, na verdade mundial. E também aqui a crise econômica precipitou as iniciativas: era virtualmente impossível conter a expansão da indústria automobilística global, altamente poluidora, na ausência de uma crise de demanda, pois os governos, a exemplo do de George Bush filho nos Estados Unidos, alegavam que qualquer medida nesse sentido, restringindo um setor vital na geração de emprego e renda, prejudicaria a economia nacional.

Se a crise deu uma parada por conta própria na indústria automobilística, ou pelo menos mudando seu foco para o carro elétrico, é o paradigma de uma nova responsabilidade ambiental que está presidindo os esforços para sua recuperação. Também aqui o programa do Presidente Obama surge como expressão de hegemonia benigna: no seu rastro, como já mencionado, China, Japão e outros países industrializados vêm apoiando seus programas de recuperação econômica em projetos de economia energética e combate à poluição.

Tudo isso teria sido impensável apenas algumas décadas atrás, em especial nos tempos da Guerra Fria. Agora, em tempos de democracia de cidadania ampliada numa escala quase universal, a indiferença em relação aos problemas humanitários suscitados pelas mudanças climáticas de curto prazo (para distingui-las das resultantes de processos naturais seculares ou milenares) torna-se intolerável para a opinião pública. Organizações mundiais e nacionais de vigilância, partidos verdes e ativistas sociais adquiriram um peso específico considerável no cenário político, tornando insustentável a indiferença dos governos e irrelevantes os lobbies dos poluidores. Ao contrário, todas as grandes corporações tratam de adaptar-se aos novos tempos, mediante a instituição de órgãos próprios de responsabilidade ambiental e social.

O mais importante, porém, é que poucos estão usando a crise como pretexto para contornar ou retardar iniciativas de proteção ambiental. No paradigma anterior da exploração predatória da natureza, uma crise abrangente, como a do petróleo em 1973, suscitou a expansão em larga escala das termelétricas a carvão em várias partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos – sem qualquer preocupação com as conseqüências para o meio ambiente. O programa “verde” de Obama segue o caminho oposto, não obstante seu compromisso com a auto-suficiência energética em dez anos. É fato que, na matriz energética norte-americana, o carvão continuará sendo essencial. Contudo, os controles de poluição tendem a tornar as usinas tão “limpas” quanto as de óleo combustível, ou ainda mais.

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Finalmente, temos o campo da Genética humana: se a Ciência gozou, desde o início da Idade Moderna, de um estatuto de liberdade ilimitada para seu desenvolvimento, somente o princípio da cooperação entre nações e comunidades científicas pode conciliar o progresso nesse campo com as limitações impostas pela Ética e pela nova moral universal. Aqui, obviamente, entrelaçam-se questões tecnológicas, morais e religiosas. Trata-se da vida, e da vida humana. Nenhuma teoria científica, a não ser uma extrapolação simplesmente inaceitável de Darwin, dá conta da explicação do aparecimento da vida na terra, e é provável que nunca dará. Para muitos, a vida é sagrada. Para uma minoria, é um enigma. Em qualquer hipótese, repugna à moral média dos povos violar os princípios basilares da vida.

Por certo que há pensadores que acreditam que a vida é simples interação dos elementos materiais produzidos inicialmente pelo Big Bang ao longo de um tempo extremamente longo, mas o fato é que a esmagadora maioria da humanidade acredita numa força independente, metafísica, fora do tempo e do espaço, que criou a vida e deu ao homem os atributos peculiares que o distinguem dos animais – inteligência, abstração, emoções e, para os metafísicos, alma ou self. Para estes, religiosos ou não, a vida é uma expressão do sagrado. Interferir nos processos da vida elementar, em especial da vida humana, seria, pois, um ato inaceitável.

É possível que mesmo para um materialista convicto a manipulação da Genética humana, por processos de tentativa e erro, visando a algum propósito de descoberta casual, seja inaceitável por razões éticas. Mesmo que não tenha origem divina, o homem tem um status especial na natureza, não apenas no aspecto físico quanto no psicológico. Diferentemente dos animais, que provavelmente não têm uma consciência de animalidade, o homem partilha com seus semelhantes uma consciência de humanidade, que se traduz, em última instância, no respeito pelo outro (aliás, um princípio da democracia grega, isotimia). Este outro pode ser tanto um homem ou mulher formados, uma criança, ou um óvulo fecundado.

É em nome de uma ética humanitária, não apenas de princípios religiosos, que deve se estabelecer limites para a pesquisa genética. Princípios religiosos também contam, pois a maioria da humanidade segue alguma religião ou princípio metafísico, e não pode ser simplesmente ignorada pela minoria. Por outro lado, a tremenda contribuição que a Genética está dando e ainda pode dar à Medicina aconselha a continuidade das pesquisas científicas, em benefício sobretudo daqueles que sofrem. É o equilíbrio entre essas posições que deve ser buscado. E não há outro caminho, em democracias de cidadania ampliada, senão o da cooperação.

Em termos práticos, a cooperação para estabelecer regras e limites objetivos à pesquisa genética terá de materializar-se através de acordos entre Estados-nação, com assessoria das comunidades científicas, sem submissão a nenhum outro paradigma senão a ética humanitária, embora levando em conta as religiões. A pesquisa é cada vez mais um trabalho coletivo comandado, financiado ou supervisionado por governos. Isso dá eficácia ao controle democrático. Por outro lado, a própria comunidade científica internacional tem formas poderosas de auto-controle, inclusive pela restrição da publicação de pesquisas consideradas inaceitáveis, e de repreensão pública dos transgressores.

Questões como essas foram levantadas no curso do Projeto Genoma, que sequenciou a totalidade da linha genética humana. Inicialmente um programa governamental norte-americano com apoio de laboratórios oficiais em outros países, ele foi desafiado por uma empresa privada, que alegava ter descoberto um método mais rápido e eficiente de identificação dos genes. Travou-se uma controvérsia, e como subproduto dela a reivindicação de patenteamento de genes mesmo antes de se descobrirem suas funções. Neste caso, o patenteamento foi finalmente descartado pelo Governo norte-americano, levando a um acordo internacional nesse sentido, e a ameaça de competição pelo sequenciamento também terminou em acordo, a que aderiu a União Européia. Como preliminar, foi uma vitória da cooperação.

É importante notar que os dilemas aqui colocados não são especulações fúteis. Quando um pesquisador exibicionista sul-coreano anunciou, alguns anos atrás, que tinha clonado um ser humano, o maior espanto não decorreu do anúncio da clonagem em si – afinal, uma ovelha havia sido clonada antes, e tem um organismo biológico tão complexo quanto o do homem -, mas o fato de ter sido clonado um humano. Era uma farsa, mas poucos duvidam das possibilidades práticas disso em prazo relativamente curto. O que pode impedir não é a tecnologia, mas a ética. E a ética, numa democracia de cidadania ampliada, tem que estar alinhada ao pensamento médio da maioria da população para ser eficaz, inspirando um controle cooperativo das pesquisas.

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Num nível filosófico mais profundo pode-se perceber que, por trás dos paradigmas em colapso, e apontando na direção de sua superação, sucumbe o paradigma fundamental que foi o esteio básico das grandes revoluções culturais, políticas e econômicas da Idade Moderna, a saber, o paradigma da liberdade individual ilimitada, fundamento do liberalismo clássico e reeditado nas últimas décadas pelo neoliberalismo. O homem moderno superou as limitações teológicas e metafísicas da Idade Média dando livre curso à especulação científica, antropológica e política como expressão de seus atributos individuais. Ele sacudiu de sua consciência todos os resquícios de superstição e de dogmas, confiando plenamente na razão e na liberdade de pensamento e de iniciativa para estabelecer crenças laicas.

Essa postura filosófica teve conseqüências na política (abolição das monarquias de direito divino e afirmação dos ideais republicanos), na economia (concorrência em mercados livres), na produção (exploração predatória da natureza) e nas ciências (liberdade ilimitada da pesquisa). Tudo isso ruiu, ou está ruindo. E o desmoronamento comum aponta para a mesma direção: todos esses paradigmas são filiados ao princípio ancestral da liberdade individual sem limites, isto é, da liberdade que não leva em conta a presença, os interesses ou o direito do outro. É claro que é muito desagradável para um homem ou uma mulher laicos do século XXI admitir limites a sua liberdade individual. Contudo, eles realmente não têm escolha.

Homens e mulheres contemporâneos estão inseridos num contexto social e político que não lhes deixa opção livre para um individualismo exacerbado: se não o limitarem segundo princípios éticos amplamente aceitos a partir de uma opção voluntária, a limitação lhes será imposta por coerção coletiva de fora para dentro. Este, aliás, no plano político, é o princípio da democracia, onde as leis decididas por uma maioria impõem deveres, mesmo involuntários, a todos. Na economia, onde o liberalismo militante sempre usou uma citação fora do contexto de Adam Smith segundo a qual a busca do interesse individual promove o interesse coletivo, estamos claramente numa situação inversa, na qual é a busca do interesse coletivo o único caminho para promover o interesse individual. Na verdade, o que seria do interesse individual de milhões de acionistas, aplicadores e correntistas dos bancos ocidentais caso os respectivos governos, no interesse da sociedade como um todo, não os salvassem?

O princípio da liberdade individual ilimitada colapsa também, com clareza ainda maior, no que diz respeito a ações que repercutem nas mudanças climáticas e, como visto, na linhagem genética humana. Aqui quase todos estariam de acordo em que a liberdade individual, de produção ou de pesquisa, tem que ter limites. De uma forma indireta, igualmente a liberdade dos Estados de promoverem a guerra está hoje condicionada e limitada pelas conseqüências inevitáveis para a espécie de uma guerra nuclear generalizada. Contudo, se a liberdade individual tem sido tão importante nas ciências e na economia para o progresso humano, o que irá substituí-la como motor do desenvolvimento civilizatório?

O presidente do Banco Mundial, Robert Zoelik, antes um apóstolo da imperial ALCA (Associação de Livre Comércio das Américas), expôs num artigo no “Finantial Times”, tratando dos esforços para a superação da crise mundial, o conceito de que entramos na Idade da Responsabilidade. Isso implica um limite à liberdade individual, uma vez que responsabilidade supõe consideração dos efeitos da própria ação sobre o outro. Entretanto, responsabilidade pode representar também uma ação unilateral, na qual o efeito sobre o outro é, sim, considerado, porém avaliado de forma centrada nos próprios valores do agente (como costumava fazer a diplomacia norte-americana). Por isso, adotei o conceito de Idade da Cooperação como basilar dos novos tempos, tendo em vista o imperativo de superar de forma não unilateral a crise que atravessamos.

Além disso, responsabilidade pode ter um sentido estático, enquanto cooperação implica um processo contínuo, próprio de uma dinâmica histórica. E enquanto pode haver responsabilidade sem necessariamente cooperação, cooperação implica necessariamente responsabilidade recíproca. Portanto, se a nova ordem depender, como parece, de decisões cooperativas, o princípio da liberdade individual ilimitada, em suas diferentes formas na economia, na política, na geopolítica, nas questões ambientais, cederá lugar a uma ideologia que corresponda à liberdade individual limitada por uma nova ética em construção. Especificamente na economia, isso significa capitalismo limitado, ou regulado, condicionado à cooperação entre os países e dentro dos países.

Mas não significa que a concorrência de mercado, tão fundamental para o funcionamento do capitalismo, venha a ser abolida. Ela simplesmente tomará uma forma de menor agressividade. Não era necessária a crise para demonstrar que muitas empresas e bancos são grandes demais para quebrar dentro das estruturas da economia contemporânea. O estrago social seria intolerável. O preço para que não quebrem é a crescente regulação, inclusive a estatização parcial ou total, que supõe um limite a sua liberdade operacional. Nesse sentido, é possível antever que, em oposição direta ao ideário neoliberal, o mundo pós-crise caminha mais em direção a formas de planejamento governamental do que para a busca ilimitada de lucro e de conquista de parcelas crescentes nos mercados. Seria a Nêmesis do socialismo!

A integração da América do Sul no contexto da cooperação internacional

A cooperação não é um objetivo em si. É um instrumento das nações para enfrentarem ameaças comuns e para criarem oportunidades de desenvolvimento econômico e social para seus povos. Contudo, em face de disparidades e assimetrias sócio-econômicas nacionais, só se alcançará um padrão mundial de efetiva cooperação por passos sucessivos, segundo os níveis de afinidade dos países em campos específicos, os quais possibilitem, progressivamente, uma convergência global de meios e fins, assim como de justas compensações para parceiros mais frágeis. É nesse sentido que importa conceber o projeto de integração econômica da América do Sul: um caminho de ação regional na busca do aumento do bem-estar no continente que convirja, de forma sustentável, para níveis superiores de cooperação no mundo em sintonia com os novos tempos.

Pela primeira vez em séculos os sul-americanos nada podem esperar, no tempo presente, de modelos políticos cooperativos que venham do primeiro mundo tendo em vista a crise política européia e norte-americana cujo esgotamento não está à vista. Ao contrário, no curto prazo, o exemplo, sobretudo europeu, é negativo. Os compromissos iniciais do G-20 de solução da crise financeira e fiscal pela via da cooperação não foram cumpridos. Na realidade, houve um recuo para políticas nacionais e regionais que perderam a perspectiva do caráter global da crise que, por isso mesmo, teriam de levar em conta uma solução também global. Os norte-americanos partiram para uma regulação fraca do sistema financeiro, os europeus tomaram suas próprias iniciativas, e a quase totalidade dos países mais desenvolvidos, de forma patética, regrediu para políticas de austeridade autofágicas.

Isso não significa que a proposta primordial de cooperação fracassou. O que fracassou foi a política que pretendeu abster-se dela. Depois de décadas de bombardeio ideológico neoliberal, seria realmente surpreendente que, na primeira crise, por mais profunda que fosse, seus arautos e beneficiários o renegassem. Haverá inevitavelmente avanços e recuos pois a História nunca segue um curso linear. Contudo, por tudo que foi anteriormente exposto, o que podemos saber com certeza é que não há saída possível para a crise fora do marco da cooperação. Para a Europa, isso significa um tesouro, um sistema tributário e um emissor de títulos comum (eurobônus), uma autoridade única fiscal, um programa de expansão de gastos públicos comum para ancorar o investimento, o emprego e o sistema de bem-estar social; enfim, em lugar do fantasma da implosão do euro, teria de se avançar rumo aos Estados Unidos da Europa que respondam não apenas à segurança dos investidores, que terão de suportar perdas mediante programas de reestruturação de dívidas públicas controladas, mas às demandas sociais dos povos europeus. Como tudo isso demandará tempo, a América do Sul não pode esperar pelo exemplo de fora. Ao contrário, compete-lhe dar o exemplo pelo aprofundamento da integração, talvez inspirando a Europa a tomar caminho similar.

Há décadas que se propõe a integração sul-americana. A idéia começou a tomar corpo com a instituição do Pacto Andino nos anos 70 e do Mercosul nos anos 80, o primeiro reunindo países dos Andes e este limitado a quatro países no sul do continente e focado nos aspectos de liberação comercial e tarifa externa comum. Mais recentemente, nos anos 2000, criou-se a Unasul, abrangendo todos os países da América do Sul, inicialmente focada sobretudo em aspectos políticos e de segurança. Posteriormente, a Unasul absorveu a IIRSA, uma iniciativa de planejamento da infra-estrutura logística da região, e, neste ano, foi estabelecido o Conselho de Ministros de Finanças e Presidente de Bancos Centrais no âmbito da Unasul com o fim de discutir convergências nas políticas macroeconômicas.

O tempo está maduro, pois, para um passo mais ambicioso: o aprofundamento da integração econômica visando a constituição de um bloco produtivo. Isso não é mais um sonho de idealistas. É um imperativo de circunstâncias. A integração econômica é o caminho mais eficaz para a região enfrentar a curto, médio e longo prazos os desafios e ameaças suscitados pela crise financeira em curso nos países industrializados avançados e que põe em risco a estabilidade econômica do mundo. Ao mesmo tempo, a integração possibilitará aos países sul-americanos explorar oportunidades de desenvolvimento econômico e social que dificilmente poderiam ser aproveitadas numa base individual pois esta não possibilitaria a exploração de complementaridades de suas economias e de suas sociedades.

A principal ameaça que empurra a América do Sul para a integração não é tanto a crise em si dos países avançados mas as escolhas deliberadas de políticas econômicas não-cooperativas que, na União Européia e mais recentemente também nos Estados Unidos, apontam na direção de um prolongado processo de ajuste fiscal inibidor da retomada do crescimento sustentável em escala global. A cooperação com vistas ao socorro dos sistemas financeiros norte-americano e europeu durou apenas o tempo necessário para uma aparente recuperação da crise de 2008/2009; deixou, porém, como legado uma crise fiscal de grandes proporções a qual suscitou crescente reação das forças conservadoras dos dois lados do Atlântico que pressionaram histericamente pela retirada dos estímulos fiscais num tempo que logo se revelou precipitado.

Os ajustes fiscais impostos a Grécia, Irlanda e Portugal, os países europeus marcados pelo mercado como na fronteira da crise fiscal, são de natureza estritamente contracionista pois os pacotes financeiros de socorro visam essencialmente a rolar as dívidas públicas antigas sem liberar dinheiro novo para investimentos e gastos. Ao contrário, os gastos públicos são severamente reduzidos com o intuito de contrair o mercado interno, deixando como única válvula de escape para o crescimento o aumento da demanda vinculada à suposta realização de excedentes exportáveis num momento em que a crise mundial força todos os países a buscar exportar mais e importar menos. Passados mais de um ano da aplicação dessa panaceia, seu fracasso fica estampado na forte contração do PIB que se verifica nesses países, tendo chegado, na Grécia, à faixa de menos 7% numa base anual.

O mesmo padrão de ajuste imposto como condicionalidade nos socorros a Grécia, Irlanda e Portugal está sendo auto-imposto por Espanha, Bélgica e Itália – nesses casos, numa vã tentativa de escapar do rebaixamento de seus títulos públicos pelas agências de risco -, e, fora da zona do euro, pela Inglaterra. Todos, sem exceção, encontram-se em recessão ou estagnados. Toda a zona do euro, portanto, só tem como saída para retomar algum crescimento no futuro, enquanto durar essa política coordenada pelo conservadorismo, a expansão das exportações, como observado acima. Seu alvo, não podendo ser ela mesma, são os mercados emergentes e dos países em desenvolvimento que acumularam reservas. Em síntese, com grande destaque, os países da América do Sul.

Uma estratégia de defesa pelos países sul-americanos, que devem confrontar-se também com a intenção norte-americana de dobrar suas exportações em cinco anos a partir de 2010, não pode ser simplesmente levantar barreiras protecionistas individuais. Isso pode ser um expediente temporário, mas seria ineficaz dinamicamente. A defesa dinâmica é o aprofundamento da integração econômica no sentido de expandir o mercado comum a partir da exploração de nichos complementares, cruzamento de cadeias produtivas, especialização industrial, transformação local da ampla base de recursos naturais existente no continente, sendo que a maioria destes é ainda hoje exportada in natura.

É preciso notar que não só os países que têm uma base industrial mais avançada, como Brasil e Argentina, têm a perder com a ameaça de dumping comercial que vem da Europa, dos Estados Unidos e também do Japão – neste caso a partir de uma advertência oficial às grandes corporações do país, feita pelo Ministro da Fazenda, para que reorientassem suas exportações para os países emergentes diante da estagnação dos mais desenvolvidos. A ameaça é também sobre os médios e pequenos países do continente que têm uma justa aspiração a industrializar-se num esquema de especialização a exemplo do que ocorreu nas pequenas nações do norte da Europa. E insista-se que a defesa e a busca da industrialização não são objetivos apenas econômicos: são o caminho mais seguro para melhorar direta e indiretamente, neste caso pelos serviços associados, os mercados de trabalho da região e os níveis de bem estar das coletividades.

O Tratado de Roma, instituindo o Mercado Comum Europeu nos anos 50, criou na Europa o mais avançado padrão de civilização de todo o mundo em todos os tempos, ancorado num pacto social virtuoso a partir de uma terceira via ideológica entre comunismo e liberalismo; infelizmente, a recidiva liberal agudizada pela atual crise está liquidando, dentro da institucionalidade regressiva da União Européia, o Estado de bem estar social europeu. É o MCE original que deve servir de inspiração para a integração sul-americana. Em seus primórdios teve grande peso a reação a uma ameaça geopolítica, o comunismo soviético; uma oportunidade, a união de forças produtivas do bloco inicial de seis países sob liderança franco-alemã, e um grande aliado externo, os Estados Unidos (também aqui por razões geopolíticas).

Se fosse apenas para reagir à mencionada ameaça de dumping, a integração sul-americana já se justificaria plenamente. Porém, a crise gerou uma oportunidade única de desenvolvimento econômico sustentável para a região: tornou extremamente baratos os investimentos em dinheiro na medida em que as taxas de juros permanecerão próximas de zero por tempo indefinido – ou pelo menos enquanto os países ricos não reorientarem suas políticas econômicas. Se, no contexto da integração, os países sul-americanos articularem empreendimentos produtivos rentáveis e politicamente seguros não lhes faltará financiamento externo, mesmo no mercado livre. Contudo, há uma oportunidade adicional, pois pode-se buscar para isso aliados estratégicos, á margem da ditadura das agências de risco.

O principal deles é a China. Ela poderá desempenhar para a América do Sul integrada o papel que os Estados Unidos desempenharam para o MCE. Com seu volume de reservas acima de 3,2 trilhões de dólares, a China tem razões estratégicas para investir em empreendimentos econômicos, primeiro, de desenvolvimento local de recursos naturais visando a seu próprio mercado; segundo, na medida da expansão inexorável de seu mercado interno também para produtos industrializados, ela poderá abrir-se para um comércio externo mais equilibrado com a América do Sul, assim como os Estados Unidos fizeram com a Europa Ocidental. O processo pode ser mais rápido que o europeu: não será deixado ao livre mercado, mas dirigido por razões estratégicas de parte a parte, sobretudo se a América do Sul promover um interlocutor comum para a tomada de decisões.

As sociedades europeias não deixarão que seus governos, por razões ideológicas espúrias, retardem indefinidamente a reorientação de suas economias. Quem conheceu regimes de bem-estar social não tolerará o liberalismo radical por muito tempo. Politicamente, há uma onda ideológica regressiva na Europa e nos Estados Unidos mas, cedo ou tarde, o jogo dialético lançará para o lixo da história desvios grotescos como o Tea Party norte-americano. Sinais disso já existem como, por exemplo, as pressões para a criação de um eurobônus na zona do euro, cujas virtualidades podem ser consideráveis caso não resulte apenas num instrumento estéril de segurança para aplicadores financeiros e permita o relançamento dos investimentos públicos na Europa Ocidental.

Na medida em que os países ricos se recuperem a partir de seus mercados internos o mundo estará preparado para uma cooperação econômica global. Não antes disso. Os países emergentes e em desenvolvimento não teriam legitimidade popular nem escala para reequilibrar as economias do primeiro mundo em termos liberais. Mas podem e devem cooperar no sentido de que sejam articuladas políticas econômicas convergentes de desenvolvimento econômico e social para além dos regressivos ajustes fiscais. O Brasil e a Argentina, os dois países mais avançados da América do Sul, devem assumir claramente a liderança do processo de integração em bases progressistas, com a plena consciência de que, sendo mais ricos, devem ser mais generosos.

Finalmente, sem uma base interna de cooperação nas sociedades, será muito mais difícil seguir o caminho da integração. Mais uma vez, a inspiração vem do Tratado de Roma: em seu capítulo III, dedicado à questão social, os seis signatários originais se comprometeram a fazer convergir suas políticas sociais em torno das que estivessem mais avançadas.

Esse é o espírito que deve presidir a busca da integração sul-americana no sentido, também aqui, da constituição de um grande pacto social que promova e ao mesmo tempo se aproveite do desenvolvimento econômico sustentável.

JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política; Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964; Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro; Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.


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