Redação

“O crack bota você para cima. A heroína derruba. São drogas diferentes, bem diferentes”, diz Tonya, enquanto acende o penúltimo Winston Red da carteira na ponta luminosa do cigarro anterior.

Desde os 16 anos, ela alterna momentos de intensidade e apatia pelas ruas da Skid Row, uma área de 54 quarteirões no centro de Los Angeles, a poucos passos dos cinemas e teatros do equivalente local da Broadway e dos arranha-céus de vidro do centro financeiro da cidade californiana.

UM RELATO – “Minha irmã me trouxe para cá, essa era a área dela. Ela era um ano mais velha que eu e me deu a primeira droga. Era heroína”, diz a descendente de mexicanos, hoje com 50 anos, enquanto ajeita uma manta empoeirada na cadeira de rodas que usa desde 2014, quando perdeu a perna direita por uma infecção vinda de uma agulha contaminada.

Pelo menos 4 mil pessoas dividem as ruas da Skid Row com Tonya – e a metade delas, estimam ONGs da região, usa drogas pesadas todos os dias.

A menos de meia hora de carro das mansões de Hollywood e da Calçada da Fama, a Skid Row reúne a maior concentração de pessoas em situação de rua dos Estados Unidos (a cracolândia de São Paulo, para efeito de comparação, tem em média 1.860 usuários, segundo um levantamento do governo do Estado publicado em 2017).

A VOLTA DA HEROINA – Depois de anos de predominância do crack, a heroína se tornou a droga mais popular da região, conta Santiago, que aplicou uma seringa com heroína pela primeira vez aos 13 anos. Há dez, ele dorme em uma das centenas de barracas que se aglomeram em frente a muros de transportadoras e grandes depósitos na região.

“Eu fui abusado quando criança. Eu fui para as drogas para diminuir a dor. Agora sou um viciado e preciso disso.”

Ele mostra uma seringa para a reportagem e fala sobre sua rotina. “Tem a picada do café da manhã, uma picada no almoço, uma no jantar e um picada à meia noite. Isso me faz funcionar.”

‘ÍMÃ’ DOS VULNERÁVEIS – No início do século 20, a Skid Row já era conhecida por reunir trabalhadores sem emprego fixo, alcoólatras e desempregados em uma das franjas do centro da cidade. O termo (caminho de derrapagem) surgiu no século 17, associado às áreas onde trabalhadores temporários organizavam o escoamento de troncos para a produção de madeira e celulose.

Desde então, áreas urbanas degradadas, em cujas ruas se reúnem pessoas em situação precária, ficaram conhecidas nos EUA como “skid rows” – a mais famosa dos Estados Unidos é a de Los Angeles, mas há outras grandes skid rows no país, como a de Chicago.

No fim dos anos 1980, o termo ficou conhecido internacionalmente por dar nome à banda de hair metal liderada por Sebastian Bach.

HÁ 40 ANOS – Em Los Angeles, apesar do crescimento acelerado nos últimos anos, acompanhando a epidemia de opióides (analgésicos altamente viciantes e derivados do ópio, incluindo heroína) que se espalha pelos EUA, a Skid Row ganhou seu principal impulso há quatro décadas.

Em 1976, o Conselho Municipal de Los Angeles lançou um plano urbanístico que mais tarde ficou conhecido como “política de contenção”. A estratégia da prefeitura consistia em concentrar em um único lugar da cidade toda a oferta de abrigos, refeições populares, ONGs de reabilitação e serviços para a população desempregada, sem moradia e com problemas de saúde mental. Depois do predominância do crack, usuários de drogas de Skid Row passaram a usar principalmente heroína

A área da Skid Row passaria a funcionar como um ímã para a população de rua da cidade, que encontraria serviços básicos apenas ali – deixando as outras áreas da cidade para a população de classe média e rica.

CICLO VICIOSO – O resultado, dizem especialistas, foi um perverso ciclo vicioso: com a população mais vulnerável nas ruas, albergues e pequenos hotéis da região, a oferta de drogas cresceu muito mais rápido do que a de empregos ou serviços de saúde.

Assim, o consumo de substâncias pesadas e a população da área explodiram – sobrecarregando as ONGs e órgãos públicos que se instalaram na região com a premissa de contê-lo.

“Ninguém nunca sonhou em ser sem-teto, esse não é o sonho de ninguém. As pessoas que estão vivendo nas ruas somos nós. Não são nós e eles. Só há nós. Eles são você e eu – divididos por alguma circunstância”, diz Georgia Berkovich, diretora da Midnight Mission, misto de abrigo e clínica de recuperação que existe há mais de 100 anos.

ELEGÂNCIA E EFICIÊNCIA – Quem vê de tailleur vermelho, maquiagem pesada e cabelos escovados caminhando apressada de uma reunião para outra em um dos casarões da região pode questionar seu conhecimento de causa.

A própria Georgia Berkovich explica. “Eu era uma criança solitária, criada por uma mãe solteira. Então, comecei a beber muito jovem. A ficar bem louca”, diz, enquanto olha, do terraço da ONG, um grupo vendendo isqueiros e cachimbos para crack em uma esquina próxima.

“O que aconteceu comigo também acontece com muita gente, mas, como sou alcoólatra, isso me trouxe, aos 24 anos, para o crack.” Em 2018, ela completou 25 anos sóbria. “O que é algo grande, pelo menos para uma garota como eu”, ela diz.

ERRO DO GOVERNO – Para Georgia Berkovich, o poder público erra ao se concentrar em remediar a falta de casas e o abuso de substâncias proibidas.

“Estamos tentando parar o sangramento, em vez lidar com o que causa a falta de moradia, que é nosso sistema de adoções, os sistemas prisional, educacional, de moradia, de doenças mentais, de abusos de drogas e álcool. Todas essas coisas estão alimentando a falta de moradias e precisam ser corrigidas.”

Entre os principais desafios para os abrigos e programas sociais locais estão a “tentação” durante a processo de reabilitação, seja pela oferta e ou pela convivência com drogas pesadas, e a escolha, por alguns, de simplesmente continuar consumindo as substâncias nas ruas da área.

REABILITAÇÃO – Para ter acesso à maioria dos programas de moradia ou desintoxicação da região, os pacientes precisam se comprometer a abandonar completamente a droga antes de iniciar o tratamento – o que afasta muitos potenciais candidatos ou gera desistências e pacientes reincidentes.

Algumas instituições, como a Homeless Health Care Los Angeles, financiada por dinheiro público e de doadores, recorrem a técnicas menos radicais, como a conhecida como “redução de danos”.

Desde 1985, a ONG já reverteu mais de 400 overdoses com a aplicação de remédios, e distribuiu milhares de seringas, agulhas, kits de esterilização e piteiras para cachimbos, enquanto mantém serviços de desintoxicação, testes de doenças transmissíveis por sangue ou via sexual e encaminhamento para programas de moradia da prefeitura.

AGULHAS SUJAS – “Não queremos que el es usem agulhas sujas ou as dividam com seus amigos, porque elas podem espalhar HIV, hepatite C e outras doenças”, explica um funcionário, enquanto prepara um kit para uma jovem de menos de 20 anos com o pescoço, os braços e as pernas cobertos de cicatrizes.

Ele ressalta que a ideia não é manter as pessoas no vício, mas ajudá-los a reduzir sua exposição a doenças e overdoses enquanto eles se preparam para o processo de desintoxicação.

“Nosso serviço não depende da abstinência de drogas. Nós não tentamos subestimar os riscos potenciais delas. Ao contrário, queremos tentar reduzir as consequências negativas que surgem durante o uso de drogas injetáveis para que as metas de reabilitação sejam realistas e alcançáveis.”


Fonte: BBC News Brasil